UMA EXPERIÊNCIA DO TEMPO
Para se ir para a guerra que mais me
interessa para este mês de Abril e ter a mais extensa experiência do tempo
podia-se fazer a viagem sozinho, de avião - a chamada rendição individual - podia
ir-se num navio fretado, integrado numa unidade. Era o mais frequente, julgo
eu. E antes da largada – passados os alvoroços e os prantos do cais, os
aerogramas, as esferográficas e os maços de tabaco do Movimento Nacional
Feminino - oficiais e sargentos podiam ser reunidos num salão do navio para
ouvir a prédica de um general: aqueles mancebos tinham a honra de pertencer à
geração que na História pátria só achava paralelo nas linhagens do pessoal dos
Descobrimentos, os desgraçados peões da História que tinham sulcado os mares e
passado medos, fomes e escorbuto, levando a fé e o império aos lugares ignotos.
E depois saía-se a barra. O olhar
dos mancebos deslumbrava-se com a vista de Lisboa, com a cenografia de brancos
que parecia ter sido montada durante a noite, de propósito para eles. Por mim,
deslumbrei-me, nesse dia, sim senhor, e foi como se nunca tivesse visto o
esplendor da minha cidade, de Lisboa, em manhã de outono claro. Nessa altura
podíamos disfarçar uma lágrima.
Toda a conveniente experiência do
tempo comporta, de resto, algumas lágrimas.
E passados dez dias de navegação, ao
largo de invisíveis e extravagantes costas hostis, em mares chuvosos de peixes voadores,
entrava-se numa baía de palmeiras e falésias de terra vermelha, viam-se lindas
mulheres a praticar ski aquático e a acenar ao navio agreste e apinhado que se
aproximava do porto.
A noite nos restaurantes, bares e
cafés de Luanda era muito movimentada e prenunciadora de primeiros calafrios,
com as narrativas lúgubres dos que já lá estavam há tempo – ou seja, dos que já
tinham alguma experiência do tempo. Emboscadas, ataques, operações, russos, chineses,
cubanos, fome, fartura, granadas, morteiros, minas, feridos, helicópteros,
evacuações. Mortos.
Nos clubes nocturnos da Ilha,
abertos até de manhã, o ambiente era aparentemente distendido. Comia-se,
bebia-se, via-se um show de
variedades que incluía, já então, transformismo. Dançava-se – se se tivesse com
quem. Podia sair-se ao romper do sol directamente para debaixo dos coqueiros,
almoçar por ali, e ficar na praia até ao cair da noite seguinte. Toda a guerra
que se preze tem as suas oportunidades de boa vida.
Depois, podiam acontecer dois dias e
uma noite de excelente comboio, de carruagens antigas e bem europeias onde não
faltava o vagão restaurante, atravessando o território a toda a largura, matas
e planuras infindáveis, em direcção às terras do fim do mundo, aos quintos do
inferno do Leste. Vá lá, vá lá: era um pouco menos mau do que a Guiné.
A cada centena de quilómetros
galgados, a cada paragem de estranha designação, o comboio metia homens
armados, espécie de milícias, e era dito aos rapazes que daí em diante começava
a ser perigoso, daí em diante a realidade poderia tornar-se demasiado forte e a
experiência do tempo mais aguçada.
Até que se chegava a um destino
provisório. Uma cidade fronteiriça em que do outro lado estava o Congo
ex-belga, ou a República do Zaire, ou o Congo-Kinshasa, ou algo assim, visto
que mudou algumas vezes de nome.
Uma chegada pela noite, na indescritível confusão
de homens, mulheres e crianças civís belgas e franceses em fuga, atravessando a
fronteira aos magotes só com a roupa que tinham no corpo, gente simples, porque
só a gente simples é apanhada pelas guerras. Lembro-me de que havia muitas
freiras de cara resignada, onde o pânico se disfarçava civilizadamente de
serenidade e reconciliação. A noite era agitada pelo constante e longínquo
ribombar.
Os civis eram, muitos deles,
funcionários da belga Union Miniére e fugiam da riquíssima província congolesa
do Katanga, porque as ambições independentistas de Moisés Tchombé se haviam
declarado.
Tchombé, então grande amigo de
Portugal e de Salazar, tinha no terreno os seus mercenários e enfrentava as
forças talvez não menos mercenárias de Mobutu. Mobutu que, se não estou em
erro, acabava de chegar ao poder.
Os jactos da Força Aérea portuguesa
silvavam insistentemente sobre os telhados da cidade, logo de manhã muito cedo,
com rumo leste, largavam as suas bombas nos territórios estrangeiros em guerra
e regressavam. Salazar mandava dizer na
ONU que a não interferência das forças armadas portuguesas no conflito do Katanga
era rigorosa, e os mancebos acabados de chegar começavam por aí a perceber
alguma coisa de política, tinham a sua primeira lição prática de estratégia e
diplomacia. Começavam a conhecer o tempo. E alguma inocência e idealismo
perdiam.
Perante o espectáculo das centenas
de civis pálidos e desesperados, mas vivos, que continuavam a entrar a
fronteira, os mancebos viviam os dias do seu primeiro medo – outra das formas
de experimentar o tempo.
Quem estará a sofrer, a viver e a
morrer a meia dúzia de quilómetros daqui? Eram coisas que se tinham visto na
televisão e no cinema. Eram coisas que nunca se tinham apreciado de tão perto.
É então isto a guerra? É então este
o mais profundo sentido do tempo?
Era. A guerra. A guerra de guerrilhas. A guerra política. A guerra de libertação dos povos colonizados.
E viveriam de seguida
outra poderosa experiência do tempo. A picada. Naquele teatro de hostilidades a
picada era uma categoria de contagem e vivência do tempo e correlativas
surpresas. Viaturas militares a escoltar viaturas civis carregadas de material
e abastecimentos, vinte, trinta camiões: a chamada coluna. Dias de caminho sob
o sol que fere logo às primeiras horas do dia, sob a chuva repentina que se
despenha de um céu de cores impossíveis, evidentemente misturadas por um
daltónico. E sempre, mais aqui ou mais ali, hoje, amanhã, para o mês que vem,
numa qualquer nesga esquecida da eternidade, a iminência da emboscada, o medo.
Aquela concreta picada de que me
recordo, onde os mais pesados carros ressaltavam a cada buraco ou se enterravam
no piso de areia empapada pela chuva, era um segmento de infinito, fora rasgada
no mato pelos séculos, desbravada pelas vidas, dizia-se que vinha do tempo dos
primeiros exploradores; dizia-se que começava no Atlântico, à saída do mar de Benguela;
dizia-se que atravessava toda a Angola, às vezes disfarçada de asfaltos ou de
gravilhas, a maior parte do tempo arenosa, sinuosa, fervilhante de perigos, bordejando o
Zambeze; dizia-se que errava Zâmbia dentro, que riscava Moçambique a
toda a largura e que acabava num porto do Índico. Mas o mais certo era essa
infernal picada ter-se gerado e definido a si própria e ter existido sempre,
como a selva que a continha.
Ao longo dessa picada, e nos séculos
de antanho, tinham-se amontoado milhões de almas, centenas e centenas de
povoações. Por ela, nos séculos, passara todo o tipo de contrabandos e centenas
de milhar de cabeças de escravos acorrentados. Àquela picada, desértica no seu
trajecto angolano dos anos 60, por causa da guerra, chamavam os zambianos Hell’s Run, caminho do inferno, porque
tudo o que havia de violento ou de infame nela tinha ocorrido, guerras tribais,
fugas e capturas de escravos, deserções e traições, dramáticas, canibalismos,
assassínios, trabalhos de soberania, confrontos militares. Aquela picada era o
traço do tempo e da vida esforçada, violenta, dos homens.
Por essa picada podia ir-se dar a
uma descomunal e antiga construção fechada na sombra secreta dos arvoredos, invisível
por terra ou pelo ar, que não há muito tempo fora uma leprosaria e que naquela
segunda metade dos anos 60 abrigava outros hóspedes, cerca de 2.000 homens negros
do exército mercenário de Tchombé, prontos e agressivos no combate, passeando
aos pares de namorados nas horas pacíficas, mão na mão, beijando-se apaixonadamente na boca e
alimentando-se sobretudo de amendoins cozidos.
Chegava-se naquele tempo de sobressaltos
a um destacamento do exército português isoladíssimo no confim da selva,
rés-vés à fronteira com o Congo-Kinshasa. O fluxo de fugitivos militares tinha
sido grande nos dias precedentes. A confusão ainda era muita. A chuva
impressionava.
- Estão cá os mercenários – diz
alguém. Só o nome arrepiava um ex-civil. - Está cá o Bob Dénard.
O sanguinário chefe de mercenários,
o lendário aventureiro de uma quantidade de golpes de Estado pelo mundo
terceiro, o famoso cabo de todas as guerras clandestinas, inconfessáveis – um
dos mais duros da vida e da lenda do mundo dos anos 60 - que em tempos
atentara, suspeitava-se, contra o próprio general De Gaulle, e que atentara de
facto contra um 1º ministro, Pierre Mendés-France. Todos querem espreitar o
aventureiro. Janta em sombrio silêncio com os seus ajudantes numa dependência
reservada do pequeno destacamento. Tomara o partido de Tchombé. Tinha perdido
muitos homens. Acabava de entrar em território português, escorraçado pelo
exército de Mobutu. Ninguém podia aproximar-se dele, excepto aquele civil com
ar estrangeirado e aquele inspector da PIDE. Ninguém podia saber que ele estava
em território nacional. Ninguém podia saber que ele era ele.
Dénard coxeava um pouco, arrastava
uma perna. Tinha (dizia-se) há anos uma bala alojada na cabeça. Por tudo e por
nada, para pagar fosse o que fosse, aqueles soldados da fortuna puxavam de
saquetas de seda cheias de diamantes agenciados no saque às terras e às casas
onde entravam – o que fazia parte do seu contrato. As mulheres deles estavam a
comer à parte, numa espécie de barracão. Eram negras esculturais, de cabelos
finamente entrançados e luxuosamente vestidas à mais espampanante moda
africana.
E na manhã seguinte todos tinham
desaparecido. Só a chuva e as explosões distantes ficavam.
A chuva caía com força dias
inteiros, noites inteiras. O céu fendia-se em festivais de fogo. A terra tremia
das bombas e das tempestades sucessivas. Um helicóptero desce entre a chuva e
recolhe dois volumes inertes encharcados de sangue.
Era muita realidade para quem apenas
um mês antes cirandava pelo Rossio, tomava café e ia ao cinema, e não sabia que
outra vida pudesse ser vivida.
A experiência do tempo tem
forçosamente que ser também uma experiência do caos.
A picada aprofunda-se no mato, pertence-lhe, retira dele todos os sentidos. O percurso de
dias de picada é uma viagem que o mancebo faz ao seu íntimo e comporta toda a
dor e todo o conhecimento de si e do seu “coração das trevas”.
No primeiro jantar no aquartelamento
onde passará os próximos dois anos da sua vida, senta-se num recinto coberto
por um telhado de zinco e aberto dos lados. A cobertura é apoiada por seis
pilares e cada um desses pilares comporta um pequeno nicho com qualquer coisa
branca lá cuidadosamente posta. O mancebo afirma o olhar. Quatro santinhos?
Quatro nossas senhoras? É bem possível. Não. Quatro caveiras humanas
resplandecentes de brancura.
Era mais um passo na sua iniciação
às ruínas aventurosas do tempo.
A chuva preside a todos os festejos
de guerra, a todas as bebedeiras. Pode desmaiar-se de whisky. Pode ter que se ser reanimado à força de coraminas
injectadas directamente na veia.
A experiência do tempo é a
experiência da chuva, do álcool e do fogo. O mancebo que tivesse a experiência
do fogo inimigo sobre si teria a real experiência do tempo, poderia figurar
como testemunha numa equação de Einstein. Trinta segundos sob o fogo inimigo
são tudo quanto é preciso para uma experiência da eternidade e da dúvida, são
uma peregrinação pelas lonjuras da vida e da morte. A consciência flutua no
cheiro do aço quente e da pólvora. Há clarões rápidos. Há estrondos a sufocar
os tímpanos. Há grandes árvores partidas e capins que se incendeiam. Há roçagar
de folhagens bruscas. Há o sibilar indistinto do espaço. Há muita compreensão
de si e dos outros, finalmente, e um esquecido carinho de mãe. Pode haver uma
experiência do sangue, do próprio sangue. Pode haver o desespero ou a
inutilidade de todo o amor e de toda a ternura. Pode haver um minuto
irreparável da existência. Há por certo imprecações e terríveis ofensas sobre
cada momento que nunca se soube se era presente ou passado. Teve-se uma visão
do Aleph. Cada coisa contém tudo. O universo pode conter-se num único objecto. Percebeu-se
no fogo a sombra de Deus. Segue-se um silêncio. O eco de uma injúria. Um jovem
pode estar a soluçar em qualquer parte daquilo que deixou de existir e que
nunca existiu tanto.
(Este texto pode ser violento, e
possivelmente incorrecto… mas, fala-se tão pouco, tão depressa e tão
envergonhadamente – ou tão politicamente – destas coisas… da mais profunda e
pessoal verdade que pode haver nestas coisas…)
“Esquece, vá, esquece depressa quem
és e o que amas e só assim poderás compreender a tua guerra. Esquece. Só assim
te será concedido o dom do tempo”.
A chuva castiga a picada tornando-a
quase intransitável durante semanas. Mas a logística não pode parar. Avistam-se
as pontes partidas por onde é imperioso passar de noite enfiando os rodados de
grandes viaturas em placas compridas, estreitas, escorregadias, que vergam por cima de um rio rápido de crocodilos.
Lençóis de chuva e a
fissura explosiva dos céus negros: tudo o que aumenta num homem a experiência
do medo.
Por causa de uma mulata, debaixo de
chuva, um camionista mata outro à facada na picada do inferno. Tudo se passa
diante de um jovem alferes imberbe e humanista que era estudante de Farmácia.
Chuva. Pistas de aterragem que são
quase areias movediças, impossibilitando os abastecimentos. Pode passar-se de
repente a comer o mínimo dos mínimos. Massa com chouriço preto. Arroz com
chouriço preto. Feijão com chouriço preto. Dobrada de lata. Conforme o
isolamento e a chuva pode passar-se lentamente pela experiência da fome, espaço
incontornável da experiência do tempo. Podem acordar-se muitas madrugadas com
caimbras no estômago. Pode sofrer-se de fome sabendo que não se vai comer a
sério nos próximos dias, ou semanas. Pode engordar-se de fome, e comendo apenas
latas de fruta em calda, porque se enjoou tudo o resto. Até ao dia em que se
está gordo e se enjoam as latas de fruta em calda.
Nas duras caminhadas de dias no
mato, em patrulhamentos e operações, há a experiência da sede, mais dura do que
a da fome.
São quatro horas da manhã e
ordeno-te que bebas dois cálices deste bagaço forte, por causa da chuva, e para
teres coragem, e aqui tens cinco, dez homens negros, amarrados de pés e mãos
com arames, e sou eu que te digo: estes são os teus inimigos, leva-os contigo e
mata-os, fá-los desaparecer, e não tenhas pejo nem arrependimento porque já te
disse, estes são os teus inimigos e se não os matas hoje a eles matam-te eles a
ti amanhã, porque aqui é esta a moral.
Que fazem os meus lá longe, a esta
hora da noite de Natal? Que pensam? Pensam em mim? Poderão eles imaginar a
minha experiência desta hora?
Os que estão cá longe, os
familiares, os amigos, os pais, preferem sempre imaginar que os seus filhos e
amigos tiveram a sorte inaudita de ficar a escrever à máquina no ar
condicionado de uma qualquer secretaria.
Todas as manhãs no posto médico do
destacamento um cabo brutamontes e analfabeto pratica a sua acção psico-social
com as populações. Os naturais fazem fila para serem atendidos por um homem que
não lhes compreende a fala e cuja fala eles também não compreendem. O cabo
brutamontes ouve-lhes a algaraviada das queixas que não entende e fornece
invariavelmente todos os dias os mesmos comprimidos aos mesmos pacientes que
batem no peito a agradecer.
- Quanto queres pela vaca? - pergunta o mal
encarado soldado.
- Dois conto - responde o negro dono
da vaca, a desfazer-se em salamaleques.
- És doido? Dou-te 500 paus.
O dono da vaca recusa sorridente,
não vende a sua vaca por preço tão baixo. O soldado, já então embrutecido pelo
tempo e pela chuva, manda afastar os companheiros, põe a arma em posição de
fogo e despeja uma rajada sobre a vaca.
- Pronto. Finalmente podemos comer
um bife - e vira-se para o dono da vaca:
- Vês? Agora, já nem 500 paus ela vale.
Digo estas coisas aqui – e apenas
muito parcialmente – por uma questão de moral. Mas talvez não o devesse fazer.
A experiência dos limites do tempo não é para ser revelada aos profanos que
jamais o poderão compreender.
São duas e meia da manhã e do
aquartelamento, um dos mais isolados, fugiu um soldado. Ter-se-à metido para o
mato. Há que o procurar antes de dar dele baixa como desertor.
- Aquilo deixou-se dormir na palhota
de uma mulher da povoação - arrisca um camarada.
- Ou tinha gente à espera dele e
desertou, e vai voltar para França onde já esteve emigrado - sugere outro.
E em França já o desaparecido tivera
a melhor experiência possível do tempo, conforme se gabava, ao pernoitar
continuadamente na mesma cama com uma mãe e com uma filha.
As povoações em volta são passadas a
pente fino por duas secções de atiradores. Quatro da manhã. As portas das
palhotas são arrombadas a pontapé e focos de luz são disparados para o
interior.
- Aquilo embebedou-se e está para aí
caído.
- Aquilo estava bêbedo e apanhado da
cabeça e atirou-se mas foi ao Zambeze.
As bermas da pista de aterragem e
das picadas em redor são varridas pelos faróis ao máximo de uma Berliet.
Às quatro de todas as madrugadas do
mato há um frio mau que se mete no corpo e caustica os ossos.
- Desertou - decreta o comandante da
companhia.
Segue a mensagem cifrada pelo rádio: uma baixa por deserção,
soldado fulano de tal.
Ao amanhecer alguém atravessa a
pista de aterragem a assobiar. O desertor.
- Então que é feito de si, homem?
- Fui dar uma volta por aí.
Anulada a nota de deserção. Uma guia
de marcha. O soldado seguirá na próxima coluna para Luanda, para o serviço de
psiquiatria do Hospital Militar.
Por entre os cheiros naturais da
chuva, da terra molhada, da mandioca moída, os destinos individuais continuam a
perfumar-se de Old Spice.
A chuva não parara em todo o dia.
Agora, meia noite e pouco, com o canto da metralha que vem dos lados do
mangueiral de baixo, o destacamento agita-se em sombras. É o rescaldo de um
domingo de Páscoa. Sombras ofegantes que correm, escorregam, tropeçam, caem.
Responder ao fogo inimigo. Um ataque. Não pensar em mais nada. O inimigo está
muito perto do arame farpado. Soltam-se as mais formidáveis injúrias. Os dois
amigos e companheiros inseparáveis rastejam na lama até ao abrigo da metralhadora
pesada.
O morteiro. Espera-se que uma ou
duas granadas de morteiro possam salvar a situação. A metralhadora. Quando é
que a metralhadora começa a cantar? Não há ar que baste para as necessidades
dos mancebos em pânico. Havia meses que esperavam aquele ataque e já duvidavam
dele. Domingo de Páscoa. Nunca se sabe, mas desconfia-se sempre. Gritos
desgarrados. Ordens. Sombras.
Os dois amigos inseparáveis
chapinham no abrigo da
metralhadora. Há cavalos de fogo a galopar nos horizontes negros
do céu, por cima da copa das árvores. A primeira fita de munição encravou. Uma
explosão para o lado das cozinhas. Choques. Injúrias. O clarão da granada
inimiga, mesmo na sua frente, encandeou-os e deixaram de respirar. Nenhum deles
acredita poder sobreviver àquela noite. A segunda fita está preparada. As mãos
do moço municiador não lhe obedecem. Ordens gritadas. A metralhadora pesada tem
de começar a fazer fogo! Entra a segunda fita de balas. Os dois companheiros e
amigos insultam-se. O gatilho emperra. O municiador treme. O apontador seu melhor
amigo ofende-o. O inimigo parecia ter ganho uma posição de flanco.
Pressentem-se na confusão duas frentes de fogo inimigo. Há um grito de dor. Há
rajadas que vêm dos lados do campo de futebol. O morteiro ainda não disparou. A
chuva é mais forte. Alguém recomenda um very
light. As vozes mecânicas do rádio soltam-se e confundem ainda mais os
espíritos da noite e do pânico.
Os dois amigos inseparáveis,
apontador e municiador da metralhadora pesada Dreyse continuam a insultar-se. Se sobreviverem nunca mais
dirigirão a palavra um ao outro. Entra nova fita de munição. A metralhadora dá
fogo, meio minuto de fogo. Volta a encravar. O apontador grita, vê a sombra do
amigo a soluçar perante a metralhadora encravada. As balas inimigas assobiam em
volta. Nenhum deles passará daquela noite. Uma noite que de súbito se pusera
imaculadamente branca nos olhos do apontador. Branca e silenciosa. Um vómito de
morte varou-lhe o estômago ao ver o amigo paralizado de medo, em pranto
convulsivo. Naquele amigo e companheiro de tantas horas de picada começou a ver
um inimigo, e quando disparou sobre ele meia fita de balas, tinha o espírito
descansado sobre ínfimas e imaculadas partículas do tempo, compreendendo embora
que, se sobrevivesse a essa noite, teria de prestar contas a um tribunal de
guerra e que tinha a vida desgraçada.
A uma escassa semana da
transferência para zona mais pacífica,
os cinco mancebos vão banhar-se na torrente do Zambeze como todos os dias
haviam feito ao longo de 15 meses. São soldados experimentados. Despem-se e
deixam as roupas e as armas encostadas a uma certa árvore da margem. E
mergulham. E nadam, deliciados.
Das moitas em volta surgem três
sombras. Um dos soldados que nada na corrente dá por isso e começa a gritar. De
nada serve. As três sombras empunham as próprias armas dos soldados, apontam ao
rio e disparam, disparam, rajada sobre rajada. E depois, como sempre, o
silêncio. Os cadáveres dos cinco soldados são levados na corrente, para todo o
sempre desaparecidos. As três sombras confundiram-se com a folhagem, levaram as
armas e os camuflados dos cinco soldados.
E ao acordar certa manhã, espreito
pela vigia e vejo os oficiais de bordo vestidos de peliça azul-escura. Os
Açores. A chuva, outra chuva. O frio. O
regresso.
O tempo, para mim, de regressar a
uma Lisboa que em Janeiro e Fevereiro de 1970 esteve deprimente e cinzenta, sem
um sol que brilhasse para todos nós, como mais tarde nos disseram que era
possível acontecer.
.
A realidade é muitas coisas, muitas horas e muita gente. Muito medo. Melhor falar dele, os de olhos brancos não falam mais. Melhor que falemos nós. Um testemunho íntimo da guerra que NÃO quisemos. Mas ainda hoje não queremos... e ela anda, ali adiante, outros corpos, outros diamantes com sangue, outros euros roubados à penúria dos países que nos fizeram a História.
ResponderEliminarAprender, sempre.
Emendar, sempre.
Falar, sempre.
Abç
Sem palavras. Obrigado.
ResponderEliminarE continue, por favor.
Muito agradeço a partilha e a ilustração! Bem haja!
ResponderEliminarMeu caro Joel Costa
ResponderEliminarEste post esta de facto muito bem contado, sem dúvida, umas nuvens que por aqui andavam no meu espírito dissiparam-se ao ler estas linhas...
Quando se deu o 25 de Abril, eu levava ano e meio em Moçambique.
Assisti a histórias incríveis, uns que quando foram para a cama dormir eram portugueses, e quando acordaram no dia seguinte eram moçambicanos, os primeiros contactos com a Frelimo, os comícios da Frelimo, conversas com elementos da Frelimo, que mais tarde identifiquei que já estariam na Renamo, daria para um outro post, o que diga-se de passagem na parte que me toca seria muito bem vindo. Alias, eu já seguia as suas questões de moral na 2 e sou um seguidor das questões de moral escritas desde a primeira hora.
Bem haja e vá nos deixando estas pérolas de vez em quando.