O TIO WOLF
Acho
pilhas de piada: o barítono que estava contratado pelo Festival de Bayreuth do
ano passado para cantar a parte do Holandês (o protagonista) no Navio Fantasma
foi despedido. Porquê?
Por ser
um cão como cantor? Não.
Por ser
russo (Evgeny Nikitin, um dos mais
reputados wagnerianos da actualidade)? Também não.
Então
porquê?
Porque
lhe descobriram uma suástica tatuada no peito.
Quem o
manda despir-se à frente de toda a gente?
Ou será
que os cantores agora, em Bayreuth, vão à inspecção como se fosse na tropa?
O que aquela casa foi e o que aquela casa é…
Mas já
que me lembrei da inspecção para a tropa – e já que continuamos em ano de
Wagner - não calha mal alinhar aqui um arrazoado sobre precisamente o que
aquela casa foi. Sim, o Festival de Bayreuth, o templo sagrado do wagnerismo…
Temos
que ir ao Hitler, desculpem lá os mais sensíveis…
E se
Hitler considerava ter tido como mestre também Richard Wagner, e se Hitler
distinguira em Wagner a maior figura de profeta da Alemanha, o grande
inspirador da sua cosmovisão e o maior cantor das virtudes alemãs, é justo que
se fale das relações de Hitler com Wagner, com o wagnerismo, com o santuário de
Bayreuth e com a família Wagner.
Houston
Stewart Chamberlain (já falei dele aqui), fanático de Wagner, era um inglês
acirradamente anti semita que casou em 1908 com Eva, uma das filhas de Cosima,
passando desde então a integrar o núcleo fechado de Wahnfried (a casa de
família) e a marcar profundamente a ideologia familiar.
Chamberlain
fora inclusivamente autor de um dos livros que mais impressionou as
mentalidades racistas do princípio do século, Os Fundamentos do Século XIX. Era ele uma das razões da afinidade
de Hitler com Bayreuth e com a família do mestre, se bem que Chamberlain tivesse
morrido antes de os nazis chegarem ao poder.
Havia
também o herdeiro, o filho primogénito – estou farto de falar nele -, Siegfried
Wagner, bom tipo, um cosmopolita e um estrangeirado, personalidade diz-se que algo
frouxa que gostava de líderes políticos fortes – ao ponto de ter chegado a
comparar Mussolini a Napoleão. Era ele a cabeça da família e o organizador dos
festivais, dirigindo a orquestra, desenhando os cenários e encenando as
óperas. Goebbels definiu-o com
originalidade e pouca simpatia como uma pessoa sem espinha dorsal. Uma pessoa
cobardemente artística. E feminino. Mas de bom coração. E decadente. Justamente
a antítese do bom nacional-socialista.
E mais gritante ainda quando comparado
com a personalidade intensa e apaixonada da mulher, Winifred, inglesa (Winifred
Williams, tornada pelo casamento Winifred Wagner), fervorosa adepta dos nazis.
Aliás, logo que se perceberam os
tempestuosos afloramentos do nazismo na arqui-conservadora família Wagner, que pendeu imediatamente para esse lado, recebendo
em Wahnfried todas as personalidades do partido emergente na vida política
alemã.
Consta
nos anais que Hitler é apresentado aos grandes iniciados de Thule e outros
próceres do recém criado Partido Nazi precisamente na casa dos Wagner, em
Wahnfried. Permitem-lhe aceder ao quarto do mestre, tocar os objectos do
mestre, cheirar as relíquias mais pessoais do mestre, prosternar-se, olhos
rasos de água, ante o túmulo do mestre. E desde então, os laços estabelecidos
com aquela família foram muito fortes. Hitler encontrara nos Wagner uma nova
família, ou a sua verdadeira família.
Em
1933, Hitler sobe ao poder e começa o processo profundo de nazificação de
Bayreuth, de nazificação de Wagner. Outros poderiam ao invés chamar-lhe a
wagnerização do nazismo. Ia dar no mesmo.
“O
teatro da corte de Hitler”, chamaria Thomas Mann à Bayreuth dessa época.
Peregrinação
nazi a Bayreuth em tempo de festival. Verão de 33: centenas e centenas de
forasteiros com bandeiras da suástica desfilam nas ruas; tropas de assalto S.A.
circulam agressivamente pelas ruas e pelos cafés; fanáticos não param de cantar
o Horst Wessel Lied (o hino do partido); as lojas e livrarias retiraram
dos escaparates o Mein Leben (as memórias de Wagner) e substituiram-no
pelo Mein Kampf; os bustos e as gravuras vendidas deixaram de ser os de
Wagner, começavam a ser os de Hitler; os quartos dos hotéis e pensões estão
cheios de propaganda do partido; Adolf Hitler Strasse, era, daí em diante, o
nome da avenida principal da pequena cidade.
Mais
papistas que o papa, todos. Porque seria o próprio Hitler a observar em tudo
aquilo um perigo para a pureza artística do festival.
Dentro
do próprio teatro do festival e no fim de cada representação a assistência
cantava o Horst Wessel Lied e o Deutschland Über Alles. Foi
preciso fazer uma recomendação em nome do Führer para que tal não voltasse a
acontecer.
O
catálogo do Festival de Bayreuth de 1933 não foi uma publicação de exegese
wagneriana. Foi uma comemoração de Hitler – era aliás o retrato de Hitler que
figurava no frontespício, em lugar do de Wagner. E na parte literária dizia-se
que viria a ser Hitler “o criador de uma nova Alemanha, o agente da renovação
moral dos alemães”
.
Na
imprensa da cidade poderia até ler-se que milhares de milhões de alemães tinham
sido convertidos à música de Wagner graças a Hitler, por intermediação de
Hitler e do Mein Kampf. Quem queira entender o nacional socialismo
tem de conhecer Wagner - frase plausivelmente atribuída ao próprio Hitler.
Wagner era uma justificação moral do nazismo, de tudo o que ele já representava
e de tudo o que ele pudesse vir a representar. No plano estrictamente cultural
e artístico foram tempos de quase desastre para Wagner, para a obra de Wagner e
para o próprio festival. Inclusivé os arquivos de Wagner, pelo que leio, foram
manipulados, ou mesmo saqueados, no sentido mais conveniente para o regime e
para a ideologia dominante.
Mas, em
Bayreuth e em Wahnfried, Hitler sentia-se mais em sua casa do que em qualquer
outro lugar. Entre 1933 e 1939, Hitler passa boa parte do seu verão em
Bayreuth, hóspede de Winifred Wagner, assistindo aos espectáculos no antigo
camarote reservado ao rei Ludwig.
Hitler era extremamente simpático,
amável e terno para com aquela família. Adorava as crianças, Wieland e
Wolfgang, nomeadamente, os filhos de Winifred e Siegfried. O próprio Wieland
Wagner chegaria mais tarde a dizer que Hitler, o tio Wolf, poderia ter sido seu
pai, assim como o seu verdadeiro pai poderia ter sido seu tio. Aquela família e
aquelas crianças eram das pouquíssimas pessoas no mundo autorizadas a tratar
Hitler pelo diminutivo, Wolf. O tio Wolf. Uma família, a dos Wagner, um clã,
que Karl Marx achava tão bizarro como os próprios Nibelungos e merecedores por
igual de uma saga de quatro óperas.
Winifred
Wagner nutria, evidentemente, grande
admiração por Hitler. Eu julgo as pessoas pela forma como me trataram quando
eu estava em dificuldades, diria ela. E Winifred era uma das quatro
mulheres que Hitler mais admirava.
Segundo
as memórias de um dos últimos ministros do Reich, o arquitecto Albert Speer –
um dos condenados de Nuremberga – Hitler sentia-se lindamente em Wahnfried
talvez por ser esse o único lugar onde estava a salvo das compulsões do poder e
da sua representação. Em Wahnfried podia deixar-se ser um pequeno burguês
divertido, paternal com os miúdos, muito prestável e obsequioso com a família,
em particular com Winifred.
Segundo
Speer, Hitler, apadrinhando o festival e gozando da intimidade dos Wagner,
estaria a realizar um sonho de juventude, um sonho que nunca, na juventude, lhe
poderia ter passado pela cabeça realizar – ou o sonho que, na juventude, talvez
nem sequer lhe fosse permitido ter, digo eu.
Mas as
coisas entre Wagner (nomeadamente a música de Wagner) e o partido nazi e seus
chefes, não eram tão idílicas assim. Há quem diga que a maior parte dos chefes
e funcionários nazis eram socialmente uns carroceiros incultos. De qualquer
modo, não seriam especialmente melómanos, e muito menos apóstolos da
complexidade sacral da música de Richard Wagner. Hitler, talvez se possa dizer,
era o único furioso wagneromano do círculo nazi.
Ainda
assim, para Goebbels, Wagner era, antes de tudo o mais, um maravilhoso
instrumento cultural de propaganda. Para outros, menos culturalmente
sofisticados, resumia-se à obrigação social que era preciso aguentar.
O pior
- ou o melhor – é que, como qualquer fundamentalista, Hitler entendia que todos
tinham a obrigação de gostar daquilo de que ele próprio gostava. E então, por
ocasião daquelas célebres marchas-comício de Nuremberga, Hitler ordenava que
das festividades pagãs fizesse parte uma ópera de Wagner. Os Mestres
Cantores, já se deixa ver. E lá tinha que vir a orquestra e a companhia da
ópera de Berlim, lá tinham que vir os maiores cantores wagnerianos. Lá tinha
que vir Furtwängler e todas essas coisas…
Pérolas
a porcos, foi mais ou menos o que escreveu Speer. Todo o pessoal do partido,
homens que puxavam da pistola logo que ouviam falar de cultura, depois de um
dia inteiro de festanças, comícios, discursos, manifestações, salsichas e
cervejolas, lá teriam de ir, à noite, a toque de caixa, ouvir Wagner, Mestres
Cantores, cinco horas de música. Havia patrulhas específicas na cidade a
controlar quem estava e quem não estava, e onde, na hora de Wagner, e a
compelir os refractários…
Na
imprensa de Bayreuth era um forrobodó. Finalmente, a Alemanha tem um
chanceler que ama Wagner, compreende a cultura alemã e nem tem medo de mexer na
questão judaica, escrevia-se. Era o sétimo céu. Bayreuth passaria a ser o
centro de cultura de uma Alemanha finalmente regenerada.
Havia
no partido os de vistas curtas, que consideravam Parsifal ideologicamente
inaceitável, e havia até, mais surpreendente ainda, o cultíssimo Alfred
Rosenberg, o filósofo do hitlerismo, a considerar o ciclo do Anel do
Nibelungo pouco heróico e fracamente germânico. A
secretária de Winifred chegaria ingenuamente a escrever que o poder das trevas
estava instalado no partido e consubstanciava-se na aversão de muitos à música
do mestre.
Mas a
fidelíssima protecção de Hitler garantia a sobrevivência de Bayreuth e do culto
wagneriano. E mais: a gestão do festival estava posta fora do controlo
esmagador do partido nazi, fora das garras de Goebbels: Goebbels, o todo
poderoso ministro dos assuntos culturais nada podia sobre Bayreuth. Winifred
conseguiu mesmo convencer Hitler a admitir cantores judeus nos elencos, os
baixos Alexander Kipnis e Emanuel List, designadamente, mais o famoso Heldenbaríton Friedrich Schorr.
Política
avisada e a favorecer de facto a sobrevivência do festival. Não era avisado
esquecer que uma grandíssima parte do público germânico da ópera e do concerto
era de ascendência judaica, e um anti-semitismo muito militante em Bayreuth
iria repelir muito público e comprometer o festival – um paradoxo moral bem
interessante, por acaso …
Bayreuth
era um reino espiritual, era uma dinastia. Morto o primogénito, Siegfried
Wagner, em 1930, é Winifred quem assume o comando das operações. Winifred que,
aliás, recorre a Hitler nalguns apertos, nos momentos financeiros mais críticos
do festival, à medida que o regime se ia fortalecendo, que a qualidade de vida
ia piorando e que as núvens ameaçadoras de guerra se faziam sentir.
Hitler
ordenava ao partido que adquirisse bilhetes e ao governo que prodigalizasse
subsídios a novas produções. Hitler, enfim, também se tinha como mecenas
estatal. Nada menos do que um continuador da acção do rei Ludwig.
Goebbels
é que considerava intolerável a independência político-económica de Bayreuth.
Winifred Wagner e as suas relações excepcionais com o Führer faziam-lhe inveja.
Afinal de contas, para ele, o festival de Bayreuth era um pequeno negócio
privado, uma intriga de família, um culto de seita que só tinha a ganhar se
fosse arrancado às mãos dos Wagner. E ainda por cima tendo uma mulher à testa
dos assuntos! E Goebbels não deixava de encher os ouvidos do seu Führer:
Bayreuth, além do mais, era um cóio de homossexualidade que andava a precisar
de uma limpeza, mas de uma senhora limpeza…
Dou uma
ideia da generosidade de Hitler para com o festival de Bayreuth a cada nova
produção de uma das sete eternas óperas do cardápio wagneriano. Números. O
exército dos Gibichungs, do Crepúsculo, que no tempo de Wagner levava um
pelotão de 26 coristas, nos anos 30 não se fazia por menos de uma companhia de
101 homens. Elsa e Lohengrin, entre coristas e comparsas, estavam rodeados em
cena por 300 almas, descontando os 70 pagens empunhando festivos archotes. 24
flores tentavam Parsifal nos dias da estreia absoluta, ainda Wagner era vivo,
passando as tentadoras do herói a 48 em tempos hitlerianos. Em 1938, no final
dos Mestres Cantores, chegaram a estar em cena 800 figuras.
Até que
se chegou à conclusão de que era demais, tocava as raias do mau gosto, era
demasiado parecido com uma cena de Cecil B. de Mille.
Era o
estilo nazi da estética wagneriana. Era uma fase, uma idade. Que aliás parecia
aos velhos wagnerianos por demais inovadora em termos de cenografia e
guarda-roupa, um atentado à memória do adorado mestre. Por outro lado, os
wagnerianos nazis não descansariam enquanto não vissem centenas de flâmulas com
a suástica agitadas no final dos Mestres Cantores; ou do Parsifal,
a estender o braço diante das cintilações do Graal. Mas, ao contrário de outras
casas de ópera da Alemanha de então, Bayreuth nunca chegou a exibir no edifício
as bandeiras e os símbolos nazis.
A cada
nova produção a planificar, Winifred alargava-se em conversas telefónicas com o
Führer sobre pormenores de cenografia, maestros e cantores a contratar. E,
regra geral, vinham de Hitler as melhores sugestões quanto a elencos e
movimentações cénicas. Mas depois veio a guerra.
Já em
14-18, Europa em guerra, fora impossível
manter o teatro do festival aberto. E em 39, Winifred preparava-se para fechar
a loja. E tê-lo-ia feito se Hitler não interviesse energicamente. O festival
teria de continuar.
Sim, meu Führer, pode ter-lhe dito Winifred, mas com que
orquestra, com que coro, com que solistas, com que pessoal de cena, se está
tudo envolvido no esforço de guerra e vai tudo dar com os costados na tropa não
tarda nada? Não senhora, terá respondido Hitler, nenhum do seu
pessoal vai para a tropa coisíssima nenhuma! Winifred que lhe mandasse
imediatamente a lista do pessoal que era preciso. Todos ficariam livres do
serviço militar por ordem expressa e pessoal do tio Wolf.
Mais
tarde, muito mais tarde, em entrevista concedida ao realizador cinematográfico Hans
Jürgen Syberberg, Winifred Wagner diria que, como toda a gente, Hitler tinha um
lado obscuro e um lado luminoso, e que ela apenas tinha conhecido dele o lado
melhor, o lado luminoso. Terá sido das poucas pessoas que conheceu
verdadeiramente o tio Wolf, e, apesar das contingências da vida e da História,
nunca quis deixar de ser fiel a essa memória.
E
estaria tudo muito bem assim e com muita moralidade. O que não era preciso era
Winifred, já com 70 anos, em 1968, ostensivamente convidar para o camarote da
família Wagner, em Bayreuth, as amigas Edda e Ilse, que eram nem mais nem menos
do que, respectivamente, a filha de Göring e a mulher de Hess, para além de,
nessa mesma ocasião, ter igualmente convidado uma sobrinha de Himmler e o então
chefe do partido neo-nazi.
Nas
vésperas da temporada de 1940, Hitler decide: os festivais de Bayreuth, a
partir desse dia seriam considerados festivais de guerra; o festival será
aberto, e, mais, terá como assistência um certo número de pessoas a ser
consideradas “convidados do Führer”.
Quem
eram esses convidados especiais? Soldados e operários das fábricas de armamento.
Podiam ir a Bayreuth organizadamente, e com todas as despesas a correr por conta
do Estado.
E além
disso, em tempo de guerra, a organização e administração do festival de
Bayreuth passariam directamente para as mãos do Führer.
Os
soldados alemães, por essa época, ainda corriam os campos de batalha da Europa
de vitória em vitória, exterminando os que a imprensa alemã chamavam de
“judaico-bolchevistas inimigos do mundo”. Com as armas, os canhões e os
tanques, a cultura alemã era para ser expandida triunfalmente por toda a
Europa.
Uma
palavra de ordem aos soldados do Reich: matem… matem por Wagner e pela Pátria.
A
falange numerosa dos convidados do Führer aos festivais de Bayreuth constituíam
um contingente de wagnerianos compulsivos. Eram obrigados a ir à ópera quando,
nuns poucos dias de folga, teriam preferido estar com a família. Mas tinham que
ir a Bayreuth e tinham que gramar a
pastilha de quase cinco horas de Valquíria ou de Mestres Cantores.
Eram transportados no chamado Comboio da Música do Reich. Chegavam por volta
das seis, eram aquartelados nas redondezas e iam em formatura até uns enormes
hangares onde lhes davam de jantar e lhes forneciam um cartão que dava direito
a cerveja extra, cigarros e uma noite de ópera. No teatro entregavam-lhes
brochuras acerca de Wagner e da sua música. Na manhã seguinte eram metidos no
comboio e regressavam às suas unidades. Às seis dessa tarde chegavam outros.
Hitler
visita Bayreuth e tem o seu último encontro com Winifred Wagner poucos dias
depois do violento atentado à bomba que o maltratou, em Julho de 44. Winifred
diria, após as despedidas, que tinha sentido o roçar das asas da deusa da
vitória. E no entanto, tudo se estava a desfazer em cinzas na Alemanha
.
Já em
45, depois de Estalinegrado e da catástrofe já desencadeada, o tio Wolf
telefonou a Winifred, preocupado com os planos para o festival desse verão de
45 – não sei se o tio Wolf já tinha posto na ideia suicidar-se antes que esse
verão de 45 fosse chegado.
Valho-me
uma vez mais do testemunho do arquitecto Albert Speer, ex-ministro de Hitler,
para dizer, um: que o primeiro edifício oficial que o Führer exigiu visitar
quando da sua viagem de Estado a Paris foi a Opera; e dois: que o primeiro dos
ideais de vida do tio Wolf teria sido o ser cenógrafo, encenador ou director
geral de um teatro de ópera. Uma pena não o ter sido. De resto, não foi só em
Bayreuth que Hitler se meteu nos negócios da lírica. Em Berlim, mais perto de
casa, na ópera estadual, gastava horas intermináveis a discutir encenações e
luminotecní
as com o seu cenógrafo preferido, Benno Arendt.
Poucas
semanas antes do fim, já Hitler estava com um pé no bunker subterrâneo da Berlim destroçada, onde se suicidaria, e
Wieland Wagner, um dos netos do mestre, procura-o, em desespero. A destruição
era total por todo o país e Wieland suplicava ao bom tio Wolf certa caixa de
manuscritos que um grupo de industriais lhe oferecera em 1939. Esses
manuscritos eram um velho fundo do rei Ludwig, o celebérrimo protector de
Wagner. Constava de partituras originais das primeiras operas, cópias
originais de outras óperas, o Ouro do Reno, a Valquíria, e
esboços de orquestração do Crepúsculo dos Deuses e do Navio Fantasma.
Em face da situação do país, Wieland implorava ao tio Wolf a guarda dessas
preciosidades para as pôr a salvo da hecatombe – provavelmente sabedor de que
já muito pouco tempo de vida restaria ao tio Wolf. Mas o tio Wolf deu-lhe uma
nega. Recusou entregar-lhe os manuscritos. Que descansasse. Essas relíquias
estavam a salvo, em lugar seguro.
Claro
que as preciosidades desapareceram.
Mas
Bayreuth era misteriosamente poupada aos bombardeamentos aliados. Não se
explicava porquê, uma vez que aqueles edifícios não figuravam na lista de
edifícios protegidos dos bombardeiros aliados.
Só
mesmo no fim da guerra as bombas caíram. Wahnfried foi destruída. O teatro do
festival foi mais ou menos poupado.
Os
aliados entraram na Alemanha. As tropas chegaram ao edifício, ao
Festespielhaus, e o lugar sagrado dos iniciados wagnerianos estava aberto,
abandonado. Foi ocupado por prisioneiros aliados e por refugiados de guerra.
Esses ficaram lá a viver um tempo e devassaram a casa de alto a baixo - no palco ainda estava montada a cena final de
Mestres Cantores.
Quando
os refugiados e prisioneiros chegaram aos armazéns do guarda-roupa foi a
alegria para uma gente coberta de andrajos e cheia de frio. O assalto foi em
grande. Os fatos de cena foram roubados e durante bastante tempo, nas ruas de
Bayreuth e por muitas milhas em redor, eram vistas grandes quantidades de desgraçados
vestidos ou com uma capa de Wotan, ou com o capote de Hunding, ou com as peles
de Siegfried, com o vestido de Isolda ou com o capacete de uma valquíria.
Os
americanos, ocupando o teatro, começaram a organizar operetas, variedades e
comédias ligeiras para alegrar as tropas. Até que o novo mayor da cidade
resolveu que era conveniente dar espectáculos mais respeitáveis.
E pela
única vez na sua História no teatro do Festival de Bayreuth foram montadas
óperas pouco sagradas tais como a Traviata
e a Madame Butterfly.
Sem comentários:
Enviar um comentário