A PROVIDÊNCIA (AINDA)
Eu,
babyboommer, lembro-me de em criança e adolescente ouvir os mais velhos – e
alguns mesmo muito velhos – discorrer sobre as obrigações inelutáveis do Estado
para a melhoria da vida.
Na verdade, naquele tempo, as carências de
toda a ordem eram de tal modo marcantes que, com a estagnação da economia
privada e com um capitalismo provinciano, não se via outra forma de acorrer aos
problemas senão clamando pela intervenção do Estado. E até porque ao Estado, em
ditadura, competia ser intervencionisa.
Qualquer coisa que estivesse mal… pois, o
Estado não quer saber de nada, não faz nada por isto… olha o Estado é que podia
tomar conta disto… o quê, fazer estas obras compete ao Estado…os comerciantes
queixavam-das contribuições que pagavam e outros queixavam-se da falta de ajuda
do Estado fosse para o que fosse.
Tínhamos há 40, 50 ou 60 anos um pensar miserabilista. É
verdade. Falo dos cidadãos mais comuns, como eu. Um pensar miserabilista que
nos era estimulado pela cultura mesma do regime. E que se arreigou em muitos de
nós até hoje e nos provoca a estranheza e o pavor pela sorte que nos espera
enquanto velhos se o Estado não tem vintém para nos valer quando já não lhe
podemos valer de nada.
Mas nos tempos da ditadura estavamos num
Estado providencia que sempre providenciou pouco e mal, e ficámos décadas,
gerações, na expectativa de uma regeneração desse Estado providência.
Regeneração que nunca chegou.
Claro que era o tempo de uma legislação
laboral incipiente e parca em regalias, e em que o funcionário público talvez
fosse o único dos trabalhadores a ter o seu empregozinho garantido até ao fim
da vida, e mesmo que ganhasse pouco enquanto activo podia esperar do Estado
providência a sua reformazinha que não era tão má como isso. Relativamente, já
se vê…
E até eu, em certo período profissionalmente
mais incerto da minha vida ainda jovem, acabei por ir trabalhar para o Estado,
e quando me falavam dessa mediocridade segura em que acabara de caír eu tinha
uma explicação ideológica e igualmente medíocre: trabalhando no Estado
trabalhava para a comunidade; a apropriação da mais valia do meu trabalho não era
para enriquecer um capitalista. Isto foi nos anos 70, e logo nos primeiros, nos
primeiros alvores do suave desenvolvimento marcelista de um capitalismo privado
português.
E trabalhando no Estado deparei-me com o
desconsolo dos técnicos mais qualificados – ou supostamente qualificados, ainda
que fossilizados na mediocridade estatal há demasiados anos –, porque esses
desprezavam o trabalho para o Estado e não se importavam nada de ser
capitalística e particularmente explorados, e era mesmo isso que ambicionavam, na
certeza de que o trabalho no Estado dera o que tinha a dar, não passava de uma
sonolência rotineira e mal paga, era uma estagnação profissional, e a
felicidade era trabalhar numa grande multinacional, e depois noutra, e noutra,
acção, dinamismo, instabilidade e bons ordenados.
E por aí se percebia como as mentalidades
estavam - aparentemente - a mudar. Mas,
com os primeiros tempos do 25 de Abril, regressava o mito do Estado. Um mito
então mais politica e ideologicamente enquadrado, claro está.
Hoje, o Estado foi desacreditado pelo furor
liberalizante. O Estado, aparentemente, por força de troikas e baldroikas governamentais,
já pouco poderá providenciar.
E é claro que em face dos impostos que hoje
precisamente pagamos, todos exigimos (para o boneco) do Estado algumas
contrapartidas. Que não vêm. Ou não vêm à altura dos impostos pagos. Ou, ainda
assim, podem vir muito mitigadamente.
Mas empresas há, e muitas, e negócios, que continuam a depender do Estado, não
obstante toda a campanha de opinião que se tem levantado contra a estadocracia,
contra o Estado providência que os liberais consideram obsoleto, claro.
Num Estado providência (agora chamar-se-á Estado
social) há uma enorme parcela da actividade governamental dedicada a assegurar
a previdência e a segurança social à frente de quaisquer outros objectivos.
Difícil será saber o exacto momento em que um Estado passa à condição de Estado
providência, e até porque, em 1910,
a Alemanha imperial, com a legislação social de Bismarck
a introduzir programas parecidos com os de um Estado providência, não poderia
ser considerada um Estado providência.
Há tempos caíu-me nas mãos um número antigo,
1993, da revista Análise Social, e nesse número um artigo de um mestre do
Instituto Universitário Europeu de Florença, chamado Esping-Andersen. A questão
dos orçamentos de Estado no seio das democracias e os trancos e barrancos do
tal Estado providência, no tocante a Portugal e à Espanha. Achei interessante.
Pois pelo meio do século XIX, na democratíssima
Inglaterra, 68% do total das despesas públicas eram afectados à defesa, à
polícia e à administração, enquanto em 1975 a mesma percentagem afectada no Orçamento de Estado a essas
instituições baixara para 16%, com as despesas de tipo social a representar
então 2/3 desse mesmo Orçamento de Estado. Isto é: a existência ou o grau de um
Estado providência, ou social, é
detectável à partida pelo exame das repartições de verbas no orçamento de um
país.
As questões orçamentais têm a ver com a
especificidade de cada país, é certo, e muito também, é óbvio, com cada
conjuntura histórica.Mas nos últimos cem anos o aumento da despesa pública
correspondeu a benefícios sociais maiores e a uma redistribuição de verbas que
subalternizou as instituições delas beneficiárias nos meados do século XIX,
como disse antes: as polícias, a forças armadas e a administração.
Pensava-se no século XIX que seria a
democratização a despoletar novas exigências de redistribuição financeira. O
que poria em causa a livre iniciativa. E por aqui se poderá compreender alguma
coisa do que se tem passado, e do que o homem da rua tem penado, quanto a
politicas orçamentais. Como é evidente,
as classes privilegiadas, ao verem perigar as regras da livre iniciativa,
insurgiram-se contra orçamentos de Estado excepcionalmente generosos para com o
social. E essas classes logo diligenciaram pôr um travão a uma democracia de
massas. As massas populares sem recursos tratariam de eleger democraticamente
os seus homens, e havia o sério risco de esses homens, apoderando-se dos
governos, irem naturalmente orientar a redistribuição da riqueza nacional em
favor dos menos bafejados pela fortuna. Deste simples e complexíssimo facto
decorreriam todos os entraves a sindicatos, a partidos, ao direito de voto em
que os ricos iriam afadigar-se até ao fim das suas vidas. Era preciso cavar um fosso
entre a massa eleitoral e os centros de poder. E havia uma solução extrema para
isso. A ditadura.
Claro que a tendência dos regimes
autoritários e pré-democráticos é canalizar mais verbas para a defesa e para a
manutenção da ordem pública, ao passo que em democracia a tendência
redistributiva descai muito mais para a previdência social e para a educação. Já
Tocqueville, já Stuart Mill diziam que em cada orçamento de Estado se
reflectiam os pesos específicos da preferência eleitoral, a tal clientela que
cada governo tem. O voto universal e os regimes parlamentares, obviamente,
produziram um perfil de redistribuição da riqueza que beneficiava a maioria. Aí
estava o Estado providência. Ou, se se quiser, o Estado social.
A democracia engendraria governos que
beneficiavam mais os pobres do que os ricos, pela meridiana razão de que os
pobres constituiriam sempre a maioria de uma nação - a maioria que elege, embora sejam os ricos a
pagar as campanhas dos que querem ser eleitos pela tal maioria desprotegida que
está destinada a eleger. E é aí que radicam os sentimentos anti-democráticos do
século XIX.
Portugal e Espanha não saíram muito
danificados pela guerra. E saíram da II Guerra com as respectivas ditaduras em
pleno funcionamento, e sem se poder dizer que tivessem sido beneficiados por
algo parecido com um Estado providência, o que explicará o atraso que levam
quando se tornam democracias, e por acaso - aparentemente - bem avançadas no
sentido político-ideológico.
As transições para a democracia em Portugal e Espanha
apresentam as diferenças consideráveis que todos conhecemos, agitada, altamente
reivindicativa e esquerdizada em Portugal; e relativamente serena,
centrista e controlada em Espanha. Mas o
objectivo digamos que era o mesmo: recuperar os atrasos, reparar as injustiças
da redistribuição em ditadura, desafogar tensões sociais por muito tempo
reprimidas.
Portugal e Espanha. Ditaduras. Estagnação
económica. Em 1945 e anos seguintes, finda a guerra, a expansão económica do
ocidente não os apanha. Só nos anos 60 será perceptível um progresso modesto
nesse sentido com a relativa abertura das respectivas economias nacionais.
Espanha. 1929: o PIB per capita equivale a 2/3 do da Alemanha e a metade do da
Inglaterra. Em 1960 é 2/3 do da Itália e menos de metade do da Alemanha.
Evidentemente que o caso dá muitas voltas e a especificação
miúda dessas voltas não cabe nem nas minhas competências, nem neste âmbito
generalista, e nem já pelo tempo/espaço que ocuparia, ou pela aridez e pela
especialização que requeria.
Quanto a Portugal, o atraso perante a Europa
sempre foi gritante, sabemo-lo, mesmo em relação à Espanha. O
PIB per capita português em 1929 era
ainda menos de metade do da Espanha. E aumenta para 2/3 na década de 50/60. E
atrasa-se mais quando a Espanha dá um impulso novo à economia. O PIB português
de 1973 é igual ao da Inglaterra de 1929, ao da Alemanha dos anos 50 e ao de
Itália de 1960. Não se podia falar em Estado providência. Mas em 1986, o PIB
português era igual ao da Espanha dos anos 60. Nem pensar em orçamentações
muito viradas para o social, e, por conseguinte, em 1986 os gastos sociais
portugueses são parecidos com os da Espanha de princípios de 1960.
A saída portuguesa da ditadura é comandada
pelos princípios socialistas, e até revolucionários. A democracia instalada é
inspirada pela esquerda e formatada segundo ideias socialistas. As políticas
sociais, como seria de esperar, pendem para algum radicalismo – com um
Orçamento de Estado executado sem aprovação parlamentar entre 1974 e 1976, (lembremo-nos
das nacionalizações em
massa). Mas são instituídos o subsídio de desemprego e o
Serviço Nacional de Saúde.
A nossa Constituição de 76 estipulava, como
se sabe, um percurso a caminho do socialismo e balizava os princípios globais
do Estado social, ou providência, em função dos direitos sociais dos cidadãos.
Segundo analistas internacionais, nunca se vira uma Constituição que desse
tanta força e legitimação às políticas sociais. Até que, em 79, a esquerda perde os
comandos da política portuguesa.
Até aos anos 70, as despesas públicas
portuguesas para efeitos de segurança social eram inferiores aos 20%,
aumentando radicalmente em meados desses mesmos anos 70 – e já se está mesmo a
ver porquê – até aos 35,7% de 1978, ano em
que estabilizou, ficando, ainda assim, a nível dos países europeus… mas dos
anos 50…
Economia atrasada e preponderantemente
agrícola no tempo de Salazar e uma política social assente num sistema muito
imperfeito de mutualidades. Mas em 35 sai uma Lei da Segurança Social que
mantinha porém os regimes da previdência sob a esfera do privado e do
corporativista, embora estabelecesse a obrigatoriedade da contribuição.
Em 62 dão-se passos no sentido da
consolidação e alargamento dos regimes corporativistas. Nada de espectacular no
entanto se passa até ao 25 de Abril de 74. Em 1960, a assistência
prestada com base nos rendimentos e os benefícios do funcionalismo público
representavam 50% das despesas públicas com a segurança social. Só 20% da
população estava abrangida pela segurança social, sendo mesmo assim muito
deficiente a protecção garantida, e com os beneficiários a terem que
desembolsar 30% dos custos hospitalares.
Bom. Por aqui se percebem as
particularidades reformistas e sociais da nossa primeira Constituição, porque
era este um dos principais tópicos que integravam a negregada “herança do
fascismo” que a esquerda tanto estigmatizou – e, pelo menos neste caso, com
razão, parece-me…
Em Espanha, as políticas sociais evoluíram gradualmente, se
bem que a política social da Espanha de Franco fosse mais avançada do que a do
Portugal de Salazar, estando embora as duas atrasadíssimas. Em 1950 as despesas
franquistas com a defesa eram 1/3 dos gastos públicos totais, com (interessante)
as transferências de verbas para a Igreja a equivalerem aos gastos com a saúde.
É que, nos começos da ditadura franquista,
as políticas sociais, segundo leio, inseriam-se numa tradição católica, as obras sociales, que dependiam dos fundos
corporativos da previdência e dos princípios da subsidiaridade e da caridade.
Os falangistas mais avançados preferiam-lhe um sistema centralizado e
estatizado. E o regime de pensões e de assistência na doença muda então em 39 e
em 42. Em 1972 a
Lei da Segurança Social (estamos em Espanha) aumenta significativamente as
despesas, sem embargo das deficiências (2/3 da população), que se manterão até
à instauração da democracia. É em 76/77 que as despesas espanholas com a
segurança social tocam o seu pico, vindo desde aí a decaír.
E interessante é saber também que os gastos
sociais espanhóis (fora os subsídios de desemprego) não foram aumentados pelos
governos de inspiração socialista, que reorientaram o crescimento orçamental
para outros fins, para fins puramente económicos.
Os socialistas espanhóis privilegiaram políticas
anti-inflacção, prejudicando as políticas ditas de cidadania social. É o que
dizem. Eu não sei, não estava lá. Mas mesmo por isso não se pode comparar a democracia espanhola, em termos de Estado
social, com as democracias sociais do norte da Europa. Daí o levantamento
sindicalista contra o governo em 1988.
Os tão falados Orçamentos de Estado não são
portanto, e apenas, manipulações de ordem técnico-financeira. Pelo contrário,
compreendem um melindre social e uma carga política fundamental. Além de
relevarem do ideológico, e mesmo que esse ideológico seja muito disfarçado e
até abafado pela comunicação social e pelos governos em exercício. É na
redistribuição da riqueza nacional que reside sempre o centro da problemática
político-ideológica, fazendo-se crer ao pagode que o resto ou é conversa, ou
não são mais do que trabalhos de engenharia financeira. As polémicas anuais a
que as televisões concedem tanto tempo de antena quando é a hora da
apresentação de um Orçamento de Estado têm umbilicalmente que ver, segundo as
sensibilidades partidárias, com o modo como essa redistribuição é orientada a
cada ano de exercício.
A redistribuição anual da riqueza determina
a ideologia política de quem a faz e condiciona a opinião de quem a sofre. Será
a ideologia de um governo a determinar a orientação de um Orçamento de Estado
ou tratar-se-à de mero cálculo financeiro? Se fosse a ideologia a orientar
estas coisas seria sinal de que, no fim de contas, a ideologia ainda não
morrera…
As motivações e receios das ditaduras
portuguesa e espanhola não tinham muito a ver com a reivindicação dos povos
quanto á redistribuição da riqueza e à previdência. E todavia, a definição
desses dois factores marcou as políticas de ambas as ditaduras, e sendo ambas
pouco atreitas a reformas sociais e não lhes dando a questão social grandes
cuidados.
Mas nos anos 70 tudo mudava – ou alguma
coisa mudava para que tudo ficasse na mesma, como dizia o outro, não sei…
Nos anos 70 tudo mudava porquê? Devido a um
novo dinamismo económico? Devido a processos - às vezes inconsequentes – de
liberalização política? Devido à ambição nova de fazerem parte do clube
europeu? Devido ao perigo que, finalmente, se apresentava de um forte e mais
activo e militante descontentamento social? Devido a todas estas coisas, ainda
que em partes desproporcionais?
E enfim… os saudosistas do pensamento anti-democrático do
século anterior – e do seguinte, e do presente – acabaram por não se temer
assim tanto da realidade da democratização e do risco dos radicalismos na
redistribuição da riqueza nacional. No que nos toca, o radicalismo esquerdista
e revolucionário de 74 viria a desvanecer-se sob a influência poderosíssima da
classe média do eleitorado e da sua invencível sede de consumo privado.
E assim se tornou comum por esse mundo fora
os estados deixarem de ser providência para os menos favorecidos e os governos
apelarem à classe média, ao centro, todos a dizerem-se centristas, todos a
governarem ao centro para adular a classe média e ganhar eleições, e para mais
quando já deixou de existir proletariado e parece que já todos são favorecidos.
E, não contando com os ricos que estão bem longe de deixar de existir – e que,
antes pelo contrário, cada vez são mais - já tudo é classe média.
E não se vêem jeitos de sair disto, e parece ser mais fácil
e cómodo pensar que esta é a última etapa da vida das nações no que toca ao
social e ao político, porque atingimos finalmente a perfeição no governo da
pólis.
Considerando os gastos sociais como
percentagem dos gastos públicos totais, estamos na problemática da
democratização e do sentido do poder, de um poder, e na expectativa de que a
democracia e o poder dos partidos de trabalhadores levem as massas eleitorais e
laborais a conduzir o Estado e o governo instituindo princípios de redistribuição
da riqueza mais consoantes com os fins desses partidos e dessas massas
eleitorais.
A opção mais corrente para uma análise do
carácter providencial de um Estado em termos de despesas sociais como
percentagem do PIB, dizem os técnicos,
assentava na premissa falsa de que tais despesas representavam esforços do
governo quanto ao social. Por outro lado, se esse governo despender uma
proporção ainda maior do PIB com a tropa e as polícias, concluir-se-á que esse
esforço relativo ao social é anulado pelas preocupações de tipo militar. Mas
isto são metodologias científicas…
Metodologias científicas que se reflectem na
opinião pública, é certo, e que às vezes fazem uma realidade parecer aquilo que
não é mas a qual é preciso que todos acreditem que seja. Não vamos por aí.
Basta-nos a noção de que a democracia eleitoral pode salvar as sociedades das
políticas extremistas.
O que seria um bem inestimável se tal fosse possível. Se
tal fosse exequível sendo a realidade aquela que é.
E quanto tempo mais de vida será preciso para percebermos que não é o povo quem mais ordena e que o povo, mesmo unido, acabará sempre vencido?
Muito bom!
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