JESUS VON
NAZARETH
Foi em Janeiro de 1849 que Wagner começou a esboçar um projecto
de drama lírico, enquanto deixava cristalizar as ideias que mais tarde seriam
concretizadas na saga dos Nibelungos. Naquele mês de Janeiro de 1849, depois de
ter sido apresentado ao chefe anarquista Bakunin, antes de assinar artigos de
retórica socialista, antes de se meter ao fabrico caseiro de granadas de mão,
antes de se envolver em insurreições, antes de ser procurado pela polícia e ter
escapado por uma unha negra à prisão, antes de ser obrigado a exilar-se na
Suiça, a ideia que lhe ocorreu para uma ópera chamava-se Jesus Von Nazareth.
Um libreto em cinco actos e, ao que dizem os exegetas, ainda dele sobreviveram
alguns esquiços musicais.
Seria mesmo uma
ópera? Podia ser.
Mas podia ser uma oratória. Ou qualquer forma mista, ou
intermédia.
Não exactamente
Jesus, o Cristo, o Messias, o salvador das almas, a força espiritual que lhe
servia de base à concepção da obra e para efeitos dramáticos. Não era a força
espiritual de Jesus, era a materialização dessa força o que mais interessava
Wagner. O Jesus de Nazaré de Wagner era o activista revolucionário, o homem
politico, futura vítima não das autoridades de Roma, sim das classes
aristocráticas da Judeia. Quando o amor se submete à força do dinheiro, o
resultado é a miséria, a desgraça – pensava ele.
Para o projecto de Jesus Von Nazareth Wagner devia alguma
coisa à influência de dois jovens neo-hegelianos, de seus nomes David Friedrich
Strauss e Bruno Bauer. Tinham esses recentemente dado à estampa trabalhos em
que se questionava a credibilidade dos episódios narrados nos evangelhos. Mas
Feuerbach teria tido também a sua influência no espírito de Wagner – a natureza
profunda do amor comportaria o auto-sacrifício, o qual derivaria de uma vontade
de liberdade, e no qual estaria bem patente a essência divina do Homem; e
afinal, invertendo o dogma, Deus não era mais do que uma projecção da vontade
humana, fantasma criado pelo Homem à sua imagem e semelhança.
Os teóricos
anarquistas (fala-se de Proudhon) teriam tido ainda uma palavra forte a dizer
na concepção wagneriana da figura de Cristo. A propriedade era um roubo. A protecção da propriedade era de considerar
um crime contra a própria natureza, porque sem a maléfica instituição da
propriedade não ocorreriam crimes contra essa mesma propriedade. E lá
dissera Jesus: “não ajunteis tesouros na terra onde os ladrões minam e roubam
(cito de memória), ajuntai antes tesouros no céu, onde os ladrões não minam nem
roubam”. Quem para si se apropria de valores e bens que a natureza mesma
ofereceu à comunidade inteira é que é o verdadeiro ladrão. Quem é de facto o
ladrão, é o que rouba ao proprietário para matar a fome, ou o que possui bens
que não lhe fazem falta?
Mas os mais modernos dos estudiosos de Wagner podem sugerir que afinal a leitura que ele fazia da
mensagem bíblica e da figura de Jesus não andaria, no fundo, e bem vistas as
coisas fora do contexto político, assim tão fora do entendimento comum e do
padrão consagrado.
Sim, talvez os evangelhos não especificassem muito bem o
perigoso (ou duvidoso?) facto de os romanos terem executado Jesus pelo crime de
sedição. Jesus teria a dimensão de um chefe revolucionário. Jesus seria uma
ameaça para a casta dominante dos judeus, polícias do seu próprio povo, um povo
que conspirava contra a ocupação romana. E assim porque entre os discípulos de
Jesus se contavam alguns zelotas – seita de militantes da resistência armada ao
ocupante – e que pelo menos um deles era geralmente tido como terrorista:
Pedro.
Por esse tempo,
1849, Wagner era amigo de um chefe de orquestra, August Röckel, demitido de
todos os cargos que ocupava por actividades subversivas e que no ano anterior
começara a editar um semanário republicano, Volksblätter,
em que Wagner, sob anonimato, chegou a escrever alguns artigos contra os
príncipes (o que é a vida!), contra os privilégios, contra as desigualdades.
Wagner e Röckel debateram bastante o projecto Jesus Von Nazareth, e o republicanismo, e o socialismo, mas a
ideia de uma ópera directamente sobre a figura e a vida de Jesus abortou. E se
alguma influência por assim dizer cristológica reapareceu na obra de Wagner, ainda que sob tintas e roupagens
diversas, místicas, esotéricas, podemos falar de Parsifal.
Wagner voltaria à
figura de Jesus mas não por música. Só em forma literária. No ensaio Arte e Religião. Muito curioso.
Atribuindo a Jesus uma exortação aos discípulos para que tornassem vegetarianos,
dado que oferecera a sua carne e o seu sangue em expiação de culpas e pecados
gravíssimos e originais – “tomai e comei, este é o meu corpo; tomai e bebei,
este é o meu sangue”, na simbologia do pão e do vinho da ceia memorial.
A causa primeira –
diz Wagner – da decadência da Cristandade residiria na recusa dos fiéis em absterem-se
de comer animais. Jesus teria sido erradamente identificado com o Pai judeu,
criador dos céus e da terra, e além disso - Wagner a recair num tema que lhe
era muito caro – era mais do que duvidoso que Jesus fosse um judeu. O sangue do
Salvador era puro, significava o mais alto patamar de perfeição da espécie
humana.
O regresso à
alimentação natural seria o pressuposto único para uma regeneração do género
humano. Vegetarianos e amigos dos animais deveriam unir forças às
sociedades de temperança e aos socialistas, em ordem a tal regeneração, e
porque tal regeneração da espécie humana seria o solo onde frutificaria a
verdadeira religião.
A religião
convencional não passava de um artifício, deixara-se aprisionar pelos dogmas, e
só a arte poderia funcionar como meio de comunicação das verdades vegetarianas,
naturistas e regeneradoras da Humanidade. E essas ideias, e a essência de uma
verdadeira religião, só poderiam ser conveniente e eficazmente expressas pela
simbologia e pelo mito. Quer dizer: pela Arte.
Que interessante, não fazia Wagner nada assim...O ser humano é sempre uma surpresa...
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