UM
PENSAMENTO LOUCAMENTE POSITIVO
Portugal é
um dos dez países que mais ameaçam o resto do mundo com as suas severas
atribulações orçamentais – dito pelo FMI.
Mas vá lá, por uma vez estamos bem
acompanhados, EUA, Reino Unido, Japão, França, Itália… é verdade, mas com a
vida dos outros podemos nós bem…
Sim, eu sei, isto de finanças públicas,
macro-economias e sociologias não é para amadores…
Ou é?
Estou a ver que é. Que também é. Por
aquilo que se tem lido, visto e ouvido, e pelos tantos palpites contraditórios
de especialistas, começo a crer que aquelas disciplinas tão intimidantes para o
homem da rua podem ser uma questão de fézada. E começo a crer que os amadores
superficiais (eventualmente pessimistas) também podem ter direito a umas bocas
analíticas e a uns prognósticos. É de borla e não responsabiliza ninguém – o
que se enquadra perfeitamente na especialidade nacional, não responsabilizar
ninguém.
E quem foi o filósofo que disse que
prognósticos só no fim do jogo? E quem disse que não estamos mesmo mesmo a
chegar ao fim do jogo?
Bem, mas ao dizer amadores quero
referir-me ao tal homem da rua, ao tal cidadão especializado somente no senso
comum, e a que por isso mesmo se costuma chamar de cidadão comum, e em função
do qual existem finanças públicas, e em função do qual existe aquilo que de
mais melindroso pode existir e que se chama política. O especialista do senso
comum é o actor principal da comédia e da tragédia que pode representar-se na
vida pública e em nome de quem se fazem – e em grande parte dos casos não fazem
– as coisas. É ou não é? É.
É esse velho e memorialíssimo homem da
rua, rudimentar de educação e cultura, eleitor só porque sim, inefável e
rancoroso pagador de impostos, que lê nos jornais o estudo da Augusto Mateus
& Associados e fica sabedor de que Portugal recebeu (ou foi recebendo) em
fundos comunitários, durante 25 anos, qualquer coisa como 9 (nove) milhões de
euros por dia, destinados a orientar-lhe um pensamento loucamente positivo quanto
à sua vida, a presente e a futura. E se lhe perguntarem por que razão ele (e os
seus parentes, amigos e conhecidos) com tanta injecção de dinheiro não está hoje
a viver melhor do que na verdade vive, ele não sabe responder e fica confundido,
e o pensamento dele do positivo passa depressa ao negativo.
O cidadão da rua sente-se a viver de
calças na mão e fica confundido com a desorientação e os cálculos
sistematicamente errados dos seus maiores, governo, parlamento, presidente da
república, depois do formidável abanão civilizacional que foi a entrada plena
na U.E. em 86.
Pois foram justamente esses milhões
fáceis, caídos do céu aos trambolhões e em barda, os chamados milhões da CEE,
que criaram no português desprevenido a
ilusão de que, passados os míseros fadunchos do salazarismo, era chegada a hora
da prosperidade, da modernidade de vida, do optimismo desmedido. E assim estava
instituída a moral inescapável do pensamento positivo. Loucamente positivo.
Ainda me lembro, pois lembro, de um 1º
ministro Cavaco Silva muito ufano, a gabar-se de Portugal estar a ser visto na
Europa à sua própria imagem (própria dele, sim, Cavaco) de bom aluno, o bom aluno que ele deve ter sido. A esta hora
talvez o presidente Cavaco não esteja tão ufano, nem se deva gabar da qualidade
do aluno europeu chamado Portugal.
Pois por ser bom aluno na Europa do
dinheiro essa Europa premiava Portugal com as tais injecções de capital que o
bom aluno, a cada vaca obesa que entrava a fronteira do Caia, insistia em
cultivar um pensamento loucamente positivo e ia perdendo a cabeça em shots atrás de shots de sucesso e empreendedorismo como numa sexta feira à noite
de Bairro Alto, mostrando-se mais vocacionado para desperdiçar o que não lhe
custou a adquirir do que a aproveitar a mão que se lhe estendia.
9.468 quilómetros de estradas na fase do
optimismo e do pensamento loucamente positivo que se inaugurara no país do
fado, do futebol e de Fátima e que fazia sonhar o cidadão comum beneficiado com
tanta fartura. Sonhar? Sim, sonhar. Com as
auto-estadas dignas do Ferrari que
estava em vésperas de ter (e com as casas de campo e praia que estava em
vésperas de comprar; e com as garinas brasileiras boas como o milho que estava
em vias de engatar). O Ferrari ainda não o tinha. Mas tinha que o ter quanto
antes, não podia deixar de o ter para poder voar naqueles 9.468 quilómetros de
estradas e auto-estradas.
Hoje, são 9.468 quilómetros de
auto-estradas por onde se passa pouco, e por onde o cidadão comum não voa. Não voa porque o que já voou foi o seu querido
Ferrari vermelho, e mesmo o modesto
FIAT está encostado lá na rua. Ou então não encostou nada o carro, o que não
está é para pagar as exorbitâncias de portagem e passou a transitar pelas
velhas, bucólicas e tradicionais estadas salazaristas – é o que se lê na
imprensa – e assim promove ele alguns rombos na economia das empresas chupistas
que lhe cobram as exorbitantes portagens.
26.000 milhões dispendidos em cursos de
formação profissional. O homem da rua
pergunta porque, com tanta guita, não formaram então gestores como devia ser,
honestos e competentes, que não levassem
milhares de empresas à falência, e directores que soubessem planear, prever, e gerir, e motivar a produtividade
dos seus dirigidos (loucamente embevecidos com o pensamento positivo a que os
dinheiros de Bruxelas obrigaram) com vista à máxima produtividade, à máxima
competitividade.
26.000 milhões! Então porque não se
formaram mentalidades políticas que tivessem sabido governar honestamente e
moderar os pensamentos loucamente positivos, por forma a que o país não
chegasse à situação em que está?
O que resultou de tão volumoso
investimento em cursos de formação foi uma maior qualificação de recursos
humanos para o mais impressionante nível de desemprego que alguma vez por aqui
se viu – 50 empregos por hora destruídos na economia portuguesa (5 de Junho).
Foi como se houvesse todos os dias e ao
desbarato larga oferta de lugares de administrador à espera dos candidatos
altamente qualificados. E deu como consequência a diabólica situação de um
homem (ou mulher) comum ficar com os seus atestados de alta qualificação
académica mas não conseguir com eles um emprego daqueles mais corriqueiros mas
que dão para ir comendo uma bucha, e exactamente por ter qualificações a mais
para o lugar e os patrões torcerem o nariz a doutores em certos lugares;
enquanto outros, os cábulas, também não conseguiam emprego de jeito por terem
qualificações a menos. Daqui se seguindo que, no fim das contas, o que mais
convinha para obter esses empregos não seriam tanto as qualificações
académicas, ou o alto potencial do candidato, seria, sim, ou um avental asseado
com um esquadro e um compasso bem desenhados, ou um rutilante cartão de sócio
do partido político mais empregador em cada conjuntura.
Altos níveis de qualificação académica
das novas gerações. Doutores, quer-se dizer. Doutores de matérias
irrelevantes, tantas vezes, mas doutores, complacentemente avaliados e
classificados pelo alto só porque convinha politicamente nivelar os
aproveitamentos escolares pelos índices europeus.
E concomitantemente à formação de
quadros superiores, há apoio europeu (entre 2000 e 2006) a 12.000 empresas
pequenas e/ou médias. Empresas essas, evidentemente, destinadas à falência em
2012, 2013…
Falando de doutores, não esquecer as
relvadas e loucamente positivas licenciaturas, as socráticas suspeitosas e
dominicais licenciaturas. Essas e outras que a gente não sabe.
(Ah, sim, amigos e amados irmãos, existe
mais aquilo que a gente não sabe do que aquilo que a gente sabe…)
E sem nunca se saber também ao certo (por não constar do
correctíssimo relatório) se se fez mesmo formação de quilate académico real, ou
se, pura e simplesmente (e loucamente), as universidades (as mais privadas
sobretudo) se limitaram a vender canudos
e a figurar na estatística.
Ou então 26.000 milhões de euros
aplicados em cursos de formação que formaram efectivamente técnicos
competentes, quem sabe se mesmo brilhantes, cujo destino era emigrar –
incentivados a isso pelo próprio governo – e pôr as suas prendas ao serviço de
países outros, enquanto por cá se cantava o facto-fado de não haver gente capaz
para levantar o país.
Foram milhões a facilitar. Milhões a
fomentar o optimismo parolo. Milhões a desencadear facilidades de vida. Milhões
em desprezo da qualidade real dos indivíduos e dos conhecimentos e a instaurar
o primado da quantidade. Milhões geradores da mediocridade que é mãe do feio e
do mau gosto; mau gosto que é pai da imbecilidade e tio da incivilidade, que é
a madrinha da anarquia, da impunidade e da irresponsabilidade, padroeiras por
sua vez da corrupção que é a raínha da descrença, da desconfiança civil e do
desinteresse nacional. Isto anda tudo ligado. Pois anda.
E estádios de futebol. Magnífico
investimento. O que não se sabe é se foi um investimento no desporto nacional
se foi um investimento indirecto no futebol sul-americano, visto que pouco
falta para o seleccionador nacional não ter por onde escolher entre
futebolistas portugueses acima da mediania e ter de naturalizar brasileiros – qualquer dia argentinos,
sérvios, eslavónios. Estádios que custaram os olhos das caras e que continuam, alguns, a
custar às respectivas câmaras os outros olhos que houver…5 milhões
de prejuízo.
Uma data de centros de saúde construídos
à pala dos milhões europeus. E aqui só me vem à ideia o meu próprio caso, sei
lá quantos anos à espera de ter médico de família, eu homem da rua, cidadão
militante do senso comum…
O nível de vida melhorou em Portugal em
consequência da injecção dos milhões europeus?
O relatório diz que sim. E diz que esse sim é um sim óbvio.
Que seja sim. Quem sou eu para
discordar? Que o seja assim tão óbvio já me causa alguns suores frios.
Que o nível de vida melhorou… o nível de
vida de quem? De quantos? Se o nível de vida melhorou, porque chegámos à tão
indigente situação em que o país está? É da conjuntura internacional. Pois
seja. Mas a melhoria que vinha de tão longe, 1986, não era brincadeira, podia
ter-se aguentado se fosse real. Mas talvez não fosse. Talvez o que tenha
melhorado tenha sido a concessão de crédito. E o crédito é mágico, disfarça a
realidade, pinta-a de cor-de-rosa: rosa flamejante, primeiro, e depois
rosa-chá, e por fim, no fecho das contas, rosa-velho.
Se a melhoria do nível de vida português
foi uma ilusão demoníaca, também não deixa de ser óbvio que o nível de vida de
alguns subiu, e muito, e de que maneira – BPN, BPP, parcerias, limas, loureiros, valeazevedos, isaltinos… já para não falar do nível de vida que honradamente aumentou rendimentos aos correctos belmiros, soares dos santos, espiritos santos, amorins e outros, muitos, e muitos mais do que aquelas poucas famílias do antigamente salazarista.
(Não digo nada sobre a rapaziada da ex-administração do BCP
que se reformou, e porque alguns deles estão indignados com os seus choradinhos
70.000 euros mensais de reforma.)
E os outros? E a generalidade? Ou a
melhoria do nível de vida nacional foi circunstancial (quando foi); ou ela se
ficou por um apelo desesperado ao pensamento positivo, loucamente positivo, em
que as derrotas, por uns bambúrrios de linguagem e de contabilidade, até se
pareceram com vitórias. Ou até se transformaram, pela manhã seguinte, em
vitórias.
Mas sim. Sim, o nível de vida deve ter
melhorado quando sabemos das loucas noites da juventude (alegadamente
desempregada) das sextas-feiras no Bairro Alto, entre shots variados, cerveja, erva, coca, ecstasy.
(O número de casais desempregados
cresceu desde o ano passado para 67%.)
Sabemos da melhoria do nível de vida
pelos grandes concertos de rock que
esgotam com rapidez, apesar dos preços proibitivos; e quando é evidente que a
grande afluência a esses concertos é de pessoal jovem que se queixa de não
conseguir arranjar emprego, pessoal jovem que se diz estar a ser financiado
pelos pais, que também começam a ver os seus empregos em perigo, ou que também
já perderam o emprego e estão por sua vez a ser financiados pelos respectivos
pais (avós dos jovens dos concertos de rock)
que vivem das suas pensões e reformas (algumas de miséria) e onde o governo
não cessa de sacar…
O grande sucesso na aplicação dos fundos
comunitários alimentou mais as estatísticas do que a realidade das coisas.
Foram um investimento no quantitativo em subalternização (senão em desprezo) da
qualidade das pessoas e das coisas, e sendo a estatística das quantidades o
mirabolante elixir que permite ganhar eleições. Claro. E sendo o ganhar de
eleições (que fornece cargos para distribuir pelos apaniguados) o escopo final
e privilegiado do sistema político português, desse sistema partidário em que
já ninguém acredita, do qual já (amargamente, desprezivelmente) a maioria dos
homens de bem e de senso comum troça cantando-lhes a Grândola Vila Morena.
Os milhões europeus incentivaram o
pessoal à produtividade? Ah, luxo, estatuto aparente, desfile de vaidades ocas,
isso sim. Trabalho? Está quieto. Trabalho e competência e rigor e estratégia e
produtividade: pouco.
Os milhões europeus foram mais um
afluente que calhou à maravilha ao nosso peculiar gosto de parecermos aquilo
que não somos: inteligentes, pelo menos razoavelmente letrados, finos e de boas
famílias, civilizados, modernos, bonitos, bem vestidos - mas sobretudo ricos.
O tal semi-falhanço de que falam os
comentários ao relatório da Augusto Mateus &Associados, pode ser semi, como
pode ser total. E citando o próprio Dr. Mateus: o roteiro prospectivo da convergência tem de começar a ser construído
na melhoria da qualidade das instituições e no reforço da democracia (…) para
garantir escolhas colectivas mais claras e acertadas e permitir políticas
públicas mais bem fundamentadas e mais eficazes na promoção do interesse geral.
Ora aí está, o interesse geral. E outra: depois de tantos
anos de milhões a chover o roteiro
prospectivo da convergência tem de começar a ser construído. Começar a ser.
Passados tantos anos há coisas decisivas que em Portugal ainda nem começaram a
ser. E coisas, bem entendido,que servirão ao colectivo, ao interesse geral,
mais do que aos interesses particulares.
Ao fim de tantos anos, as nossas
empresas ainda não são competitivas – se é que, por este andar, e passados
outros tantos anos, algum dia o cheguem a ser. No fim de contas, passados estes
anos, ainda não estamos preparados para enfrentar as concorrências em tempos
desapiedados de globalização. Mas quando o estaremos se a nossa produtividade
por hora trabalhada ainda não passa de metade da média europeia?
E neste soalheiro país é tudo pelo
contrário em matérias do social e do económico. Depois de tantos anos, a
respeito de competitividade, em vez de progredirmos, pelo contrário, estamos
sempre a descer. Desde 2006. Seis lugares no ranking competitivo do Forum Económico Mundial descemos nós…
Com Salazar é que estavamos bem? Com Salazar
estavamos a nossa dimensão natural? A preto e branco. Modestinhos. Pobretanas. Tristíssimos. Atrasados. Matarruanos. Socialmente inseguros. Tementes a Deus e à PIDE. De boca calada. Perdidos
em pensamentos loucamente negativos. Com medo do presente e com medo do futuro.
Com medo da vida. Era assim que estavamos bem?
Quem sabe se não era…
Fado, futebol e Fátima em tempos de
Salazar? Essa é boa. Se era assim que a economia crescia 7% ao ano, então, nos
dias de hoje, deviamos estar de cavalinho, pois nem ao Salazar lembrava
instituír a civilização do fado, do futebol e de Fátima em doses tão maciças e
mediáticas como hoje em dia, que quando crescemos 1% já abrimos uma garrafa de
champanhe.
Ao cidadão da rua e do senso comum que
frequenta os transportes públicos e ao qual, como digo, falham as bases
teóricas para o entendimento dos aspectos mais cripticamente técnicos do
relatório da Augusto Mateus & Associados, escapam grosso modo as melhorias mais espampanantes que os 25 anos de um
Portugal europeu nos acrescentaram.
A
gente lê e a nossa boca fica com um gosto húmido a abstracção e a minudência
académicas. Mas alguma coisa percebemos. Falta-nos isto e falta-nos aquilo; não
fomos capazes nem disto nem daquilo; falhámos aqui, ali e acolá: são os pontos
cruciais que neste país do fado, do futebol e da Senhora de Fátima conseguimos
reter com mais premência: onde falhámos, o que não pudemos, o que nos falta.
Lidos os jornais do dia, ouvidas as
tsf’s pela manhã, vistos os desmesurados telejornais da noite, conhecendo as
previsões da OCDE… percebe-se que Portugal pode ser um país inviável. Se não o
é já. Se não o foi sempre. Pois.
Portugal é um dos sete países onde mais
aumentam as tensões sociais – dito pela Organização Internacional do Trabalho.
Pudera!
O homem de senso comum que caminha
cabisbaixo pelas ruas ouve os receios expressos por alguns notáveis quanto à
probabilidade de, por força da crise, da austeridade, da recessão, dos
maximalismos da troika e das
canalhices sociais do governo, de um dia para o outro, perder as estribeiras e
o medo salazarista que ainda o arrefece por dentro, e vir por aí abaixo, e
passar à violência tipo Turquia destes últimos dias, enfrentar as forças
anti-motim, apedrejar, partir, incendiar, bater, matar e esfolar, firmado no
pensamento loucamente positivo de que assim resolveria alguma coisa da sua
triste vida.
Não resolvia nada, claro. Continuaria a
ser gozado, roubado, explorado. Mas vingava-se. De quem? Não importa. Talvez do
destino…
O que importa dizer é que o argumento da
violência social iminente é usado por alguns notáveis como incitamento ao
presidente para dissolver o parlamento, demitir o governo e convocar eleições
legislativas – que segundo as recentes sondagens (4 de Julho) por um lado daria
maioria absoluta aos partidos de esquerda, embora por outro gostasse de manter
o actual governo até ao fim do mandato, só com o quesito adicional de poder
mandar o ministro das Finanças para o olho da rua. É isto: no seu louco (e
novo, e ainda europeu) optimismo, a que os políticos oportunistas chamam sabedoria, o portuga deseja cada coisa e o
seu contrário, devia ser assim, mas também não era mau que fosse assado…
Mas o presidente Cavaco Silva não é
nenhum palhaço, não, não é, é preciso que se diga com toda a ênfase - porque
Miguel Sousa Tavares (parece impossível) seguramente não percebe nada de circo nem sabe da
humanidade, da solidariedade e da grandeza de alma das gentes do circo – e como
não é um palhaço (nunca poderia ser) não iria, não vai, na conversa desses
notáveis, porque também ele, tocado pelo seu pensamento loucamente positivo, crê que
não há paz nem salvação fora do quadro político vigente.
O presidente também lê jornais e vê
televisão e espreita pelos janelórios do palácio. E portanto sabe que quanto
mais apertada está a vida para o cidadão comum e quanto mais os espectros do
desemprego e da fome vão enegrecendo os horizontes do senso comum desse
cidadão, menos esse cidadão parece empenhado em alinhar em manifs, quanto mais
desatar a partir coisas, ir à cara da bófia ou deitar fogo a carros.
É um facto: desde a mastodôntica
manifestação de Setembro que passou, contra a TSU, a afluência às manifs tem
decrescido a olhos televistos. E, o mais cáustico, tem decrescido na razão
inversa do aumento das dificuldades da vida e da proximidade do que muitos
chamam de catástrofe social – se eu percebesse de sociologia saberia dizer
porquê…
Ora se o homem da rua nem para uma romântico-revolucionária
passeata de repúdio se mostra virado, que outro homem da rua, que outro cidadão
comum, que outro povo, podem fazer tremer o governo, o presidente ou o sistema
se a desgraçada situação que está a viver nem ao menos o mobiliza para um giro
gritado até S. Bento, até Belém ou até à Alameda?
O homem da rua e do senso comum começa a
desconfiar da viabilidade de Portugal como país soberano e independente no
actual quadro global, ultra-liberal (impiedosamente liberal) que o mundo lhe oferece.
Porque o homem da rua também leu umas coisas e ouviu umas bocas, e como tal
sabe das pimentas da Índia e dos ouros do Brasil, tanto quanto sabe dos euros
de Bruxelas. E pergunta-se: qual será a próxima sorte grande que nos pode sair, agora que depois da torrente
dos euros de Bruxelas o mapa dos nossos possíveis benfeitores e da quantidade
de benfeitorias de que sempre precisámos para viver foi drasticamente reduzido?
Subsidiómanos (para não dizer chulos)
que somos de pimentas, de ouros e de euros, teremos em nós forças, vitalidade, vontade,
fé, porventura talento, para empreendermos em nós uma mudança radical de vidas
e de pensamentos e assim escaparmos a um destino de dependências suseranas de
outros, justamente o estatuto que até aqui temos encarado alegremente e com um
pensamento loucamente positivo?
O século XXI, que não há muito era o
futuro (loucamente positivo), está a revelar-se-nos desastroso. Quando,
provincianos atrasados em tudo, partimos do quase-nada para paisagens
económicas europeias, crescemos, fomos o menino Isá, o bom aluno, atento
venerador e obrigado do que nos diziam os burocratas enevoados de Bruxelas, e
loucamente positivos progredimos o nosso bocadinho, até que, do quase-nada,
atingimos o alguma-coisita. E estagnámos. Embriagados. Loucamente positivos. A
pensar loucamente em positivo. E descansámos nesse pensamento, convencidos de
que tinhamos chegado. E não tinhamos. E estavamos ainda loucamente longe de ter
chegado.
Lembrei-me agora da cena bíblica. Fomos
levados pela Europa ao pináculo do templo e mostraram-nos o mundo, e
disseram-nos: “tudo isto será teu se prostrado me adorares”, e nós fomos
adorando, até que nos cansámos de adorar.
Ou como Mefistófeles acenando ao velho doutor Fausto com os deliciosos
esplendores da juventude de Margarida em troca da alma e incitando-o a assinar o pacto…
A Europa deu cabo da nossa alma de país
salazarista, sacral, tradicional, senhorial (que persistimos em continuar a ser
– um dos grandes problemas). E chegou a hora da cobrança. 25 anos depois.
Mas se não entrássemos na Europa ricalhaça e dela não
respeitássemos os ditames e as severidades, o que seríamos, quem nos valeria na
nossa gula dissipadora de quanto de valioso nos chega de fora, pimentas, ouros
ou euros?
É neste enguiço do “nem com ela nem sem
ela” que assenta o drama da nossa viabilidade como país soberano em democracia - vigiada.
ResponderEliminarPrometeram-nos o Céu na Terra, com a Europa e o Euro, e nós... acreditámos! De quem foi a maior culpa?
E protestar para quê, agora, se nos sentimos tão culpados (de ter acreditado, de ter consumido, de ter folgado, de ter esquecido os nossos deveres, de ter festejado o derrube do Sócrates, de ter votado no Cavaco, no Passos/Relvas e no Portas, ou de não ter ido sequer às urnas, de dar crédito aos papagaios das televisões mercantis e dos pasquins tablóides...)?