domingo, 28 de julho de 2013

                

                  

                  

                      MONÓLOGO DAS CINZAS


E  por isso te digo, irmão: mesmo que o não queiras ver-te-às forçado a admirar-lhes a convicção, ou o  tranquilo desespero, ou a teatralidade contida. A admirar-lhes a candura perversa, quando se trata de te dar a ideia de que são eles, naquele justo momento, a inventar a vida que tu mesmo haverás de viver.
Não sei, irmão, se vês e ouves neles o mesmo que eu, as areias esbranquiçadas do vento mais antigo, os sussurros de uma prédica de antanho; não sei se lhes reconheces os sorrisos em cicatriz…
Ainda há ideias novas no areópago? 
Ainda há modos bons de persuasão dos povos? 
Ainda há estratagemas disponíveis? 
Ainda haverá maquinaria de deuses a trabalhar no antigo terreiro da tragédia que os bárbaros devastaram? 
Restarão ainda no bolso fundo algumas magías nunca apresentadas ao povo do circo?
Executa a aritmética que te ensinaram teus mestres de pensar.


Daquele tempo para a lua de hoje, quantos anos te sobram? Quarenta? Quarenta anos de canseiras e sacrifícios em que, descaindo sobre a tua sinistra ou ameaçando-te à dextra, anafados ou esquálidos, secos e calvos fossem eles, ou ressumantes,  ungidos pelo santo gel, nas chuvas e nos estíos, em invectivas de punho alçado ou em amarguras de piedade catequista… tu, meu irmão, e eu, ao vê-los, acreditámos. 
Quarenta anos do caminho de espinhos do acreditar.


Que divisas tu na sepulcral distância? Que som?
Esta noite… espera, irmão… ouço ao longe a voz das cinzas…
E tu, meu irmão? Nas vozes de hoje não escutas as cinzas de uma melodia que outras vozes entoaram?
Não pressentes a imitação das lengalengas?
Não temes as apóstrofes?
Não desprezas os impossíveis sermões a que o tempo devassou os adjectivos?
Estás a ouvir a falsa nova que os breves mensageiros trazem à cidade?
Obedece-lhes, segue-os, se quiseres, esquecendo o que aprendeste, esquecendo o que te inculcaram acerca de um círculo que não pode ser quadrado.
Ouve a voz dos profetas das cinzas e crê neles, se quiseres. E renega-os depois. E arranca os cabelos da tua cabeça  e corta as tuas barbas e rasga as tuas vestes às portas da cidade.
Uma doce e enganosa melopeia atravessa pela tarde aquelas montanhas brancas e inacessíveis que tens na memória.
Pode ser que o vento só te traga a cinza da palavra que outrora te inflamou e que  hoje apenas brandamente te conduz à tristeza de um conceito que feneceu, de uma verdade ainda opaca, de uma cópia desmaiada.
Será este som o  clone de uma ideia gasta, fabricado em laboratório de brincar, ao fundo do quintal?


Ouve o que eles te pregam, compreende o que eles te dizem, regozija-te se podes, e medita, e espera, se queres, que seja verdade o que te prometem: regeneração! Regeneração para ti, que estás cansado e desenganado. Para ti, que de tão jovem já estás velho e por demais ouviste, e também tão pouco, em quarenta anos de jornada.


Como irão transfigurar-te esses pregadores que não trazem lume nos cabelos nem podem, com o gesto, governar o raio e o trovão?
Que tempo é este em que cinzas e apenas cinzas se movem na montanha?






2 comentários:

  1. Fico sem palavras perante um texto destes. Só posso guardá-lo preciosamente para o reler sempre, porque ele vem do fundo dos tempos e, por isso, é sempre actual.

    ResponderEliminar
  2. Fala fundo este perguntar.
    Um Requiem doloroso.

    E todavia a memória de um verde que haverá algures, depois do degelo nas montanhas. Enquanto tivermos consciência de que vivemos um tempo perverso. Não nos renderemos enquanto pensarmos. Nós e outros.
    Abç

    ResponderEliminar