MONÓLOGO DAS CINZAS
E por isso te digo, irmão: mesmo que o não
queiras ver-te-às forçado a admirar-lhes a convicção, ou o tranquilo desespero, ou a teatralidade
contida. A admirar-lhes a candura perversa, quando se trata de te dar a ideia
de que são eles, naquele justo momento, a inventar a vida que tu mesmo haverás
de viver.
Não sei, irmão, se vês e
ouves neles o mesmo que eu, as areias esbranquiçadas do vento mais antigo, os
sussurros de uma prédica de antanho; não sei se lhes reconheces os sorrisos em
cicatriz…
Ainda há ideias novas no
areópago?
Ainda há modos bons de persuasão dos povos?
Ainda há estratagemas
disponíveis?
Ainda haverá maquinaria de deuses a trabalhar no antigo terreiro
da tragédia que os bárbaros devastaram?
Restarão ainda no bolso fundo algumas
magías nunca apresentadas ao povo do circo?
Executa a aritmética que te
ensinaram teus mestres de pensar.
Daquele tempo para a lua de
hoje, quantos anos te sobram? Quarenta? Quarenta anos de canseiras e
sacrifícios em que, descaindo sobre a tua sinistra ou ameaçando-te à dextra,
anafados ou esquálidos, secos e calvos fossem eles, ou ressumantes, ungidos pelo santo gel, nas chuvas e nos
estíos, em invectivas de punho alçado ou em amarguras de piedade catequista…
tu, meu irmão, e eu, ao vê-los, acreditámos.
Quarenta anos do caminho de
espinhos do acreditar.
Que divisas tu na sepulcral
distância? Que som?
Esta noite… espera, irmão…
ouço ao longe a voz das cinzas…
E tu, meu irmão? Nas vozes
de hoje não escutas as cinzas de uma melodia que outras vozes entoaram?
Não pressentes a imitação
das lengalengas?
Não temes as apóstrofes?
Não desprezas os impossíveis
sermões a que o tempo devassou os adjectivos?
Estás a ouvir a falsa nova
que os breves mensageiros trazem à cidade?
Obedece-lhes, segue-os, se
quiseres, esquecendo o que aprendeste, esquecendo o que te inculcaram acerca de
um círculo que não pode ser quadrado.
Ouve a voz dos profetas das
cinzas e crê neles, se quiseres. E renega-os depois. E arranca os cabelos da
tua cabeça e corta as tuas barbas e
rasga as tuas vestes às portas da cidade.
Uma doce e enganosa melopeia
atravessa pela tarde aquelas montanhas brancas e inacessíveis que tens na
memória.
Pode ser que o vento só te
traga a cinza da palavra que outrora te inflamou e que hoje apenas brandamente te conduz à tristeza
de um conceito que feneceu, de uma verdade ainda opaca, de uma cópia desmaiada.
Será este som o clone de uma ideia gasta, fabricado em
laboratório de brincar, ao fundo do quintal?
Ouve o que eles te pregam,
compreende o que eles te dizem, regozija-te se podes, e medita, e espera, se
queres, que seja verdade o que te prometem: regeneração! Regeneração para ti,
que estás cansado e desenganado. Para ti, que de tão jovem já estás velho e por
demais ouviste, e também tão pouco, em quarenta anos de jornada.
Como irão transfigurar-te
esses pregadores que não trazem lume nos cabelos nem podem, com o gesto,
governar o raio e o trovão?
Que tempo é este em que cinzas e apenas cinzas se movem na montanha?
Fico sem palavras perante um texto destes. Só posso guardá-lo preciosamente para o reler sempre, porque ele vem do fundo dos tempos e, por isso, é sempre actual.
ResponderEliminarFala fundo este perguntar.
ResponderEliminarUm Requiem doloroso.
E todavia a memória de um verde que haverá algures, depois do degelo nas montanhas. Enquanto tivermos consciência de que vivemos um tempo perverso. Não nos renderemos enquanto pensarmos. Nós e outros.
Abç