MONÓLOGO A
FAVOR DE UM LICENCIADO
SEM EMPREGO
Pronto,
senhor doutor, aqui tem. Vá lá dez euritos para uma sopa. Não me agradeça. Eu
sou um privilegiado. Tenho só a antiga quarta classe. Está a ver. Mas… olhe, desculpe,
diga-me uma coisa…isto sem querer ser indiscreto…o senhor é doutor em quê?
Licenciado? Ah, bonito. Os meus parabéns. Mas licenciado em quê? Ah, sim, estou a ver, matéria finíssima. E
complexa. Sim, sim. Mas deixe lá. Não pense muito nisso. Melhores dias hão-de
vir. Não se esqueça de que eu, que já cá ando há uns anos, sempre ouvi dizer
que este era um país de doutores. Por isso…já vê…melhores dias hão-de vir. Mais
tarde ou mais cedo, o país dos doutores reconhecê-lo-à como um dos seus, e
recompensá-lo-à como mais um doutor. É do que o país precisa. De doutores, sim,
não tenha dúvidas. Isto é só uma questão de conjuntura. E bem vê, senhor doutor,
as coisas são como são, e mais pontapé daqui mais canelada dali, e se numa
volta da vida elas deixam de ser, sim, as coisas, acabam sempre por voltar a
ser o que são. As coisas, pois claro. A vida. Tudo. É verdade. Fique lá com os dez euritos. Vá comer a sopita e deixe-se de escrúpulos. Sabe, eu sou praticamente analfabeto, como lhe disse, a quarta
classe antiga, mas tenho o meu nível de vida. Ainda sou de outro tempo, do
tempo em que a gente se contentava com um emprego. E o que me faz espécie é o
senhor doutor ter andado a matar a cabeça tantos anos, a empinar coisas
complicadas…bom…é assim mesmo…coisas complicadas que, desculpe lá, vai-se a
ver, e não lhe estão a servir para nada. E já agora, desculpe-me outra coisa,
diga-me lá: como é que eu vou incentivar aqueles que tenho lá em casa para
estudar? Eles são espertos. A gente não os percebe, mas eles são espertos. Lêem
os jornais e alguma coisita compreendem. E já leram de certeza aquelas
estatísticas a respeito do desemprego entre licenciados. Há anos, aliás, que
andam a ler essas estatísticas, e a emigração dos cérebros e coisa e tal. De
forma que, qualquer dia, estou sujeito a que me respondam, sim, aqueles que lá
tenho em casa, que me respondam estudar,
nós?, estudar para quê?, desemprego por desemprego, tanto faz ser burro e
ignorante como doutor. Está o senhor doutor a ver o caso? Não vêem furo à
frente deles. Está o senhor doutor a compreender? Veja lá o meu mais velho. Não
quer ser nada. Nada. Já que não tem jeito para a bola nem para a política,
pronto, aí está, não quer ser nada. Diz que não vale a pena ser nada fora da
bola e da política. Estúpido! Nem doutor quer ser – onde iremos nós parar com
este andamento, quando a rapaziada começa a deixar até de querer ser doutor?
Mas a minha mais nova gosta de letras, o que é outra chatice, porque sempre ouvi
dizer que letras são tretas e o que dá é um cursozinho de economia (mesmo que
também digam que já não dá como deu). Ou de Direito. Que também me dizem que já
deu o que tinha a dar. Mas está bem. De qualquer das maneiras, gostava de a ver
tirar um cursozinho mais técnico, científico, uma coisa mais verdadeira, uma
coisa séria…agora cá letras…letras são tretas, sempre ouvi dizer, essa é que é
essa. e eu queria para eles um futuro. O futuro já acabou, diz o senhor doutor?
Ah sim? Bem, o senhor como é doutor saberá melhor do que eu. Eu? Eu queria para
eles uma especialidade que contribuísse para o desenvolvimento do país. E não
são as letras que desenvolvem um país, oh, não, não! Pois. Mas mesmo assim.
Mesmo a saber que os cursos mais técnicos também têm os seus quês com respeito
a empregos. Mesmo assim. E eu até me lembro do que se passou com um sobrinhito
meu que teve o azar de se formar em engenharia electromecânica no Técnico. Mas
numa altura bera, já lá vão uns aninhos. Sim, é verdade, todas as alturas têm
sido beras nesta terra, é verdade, mas aquela era particularmente bera, sabe. Uma
altura, veja bem, em que o mercado de trabalho, não sei porquê, até para
engenheiros estava pela hora da morte. Mas como eu ia a dizer… de forma que o
moço lá teve de se fazer à vida e começou a responder a anúncios, que os pais
não eram ricos, claro está, não podiam sustentar um matulão daqueles à boa
vida, jogador de râguebi, e ainda por cima engenheiro, – bem bastava já o
terem-lhe proporcionado o cursozinho. E vai daí, o rapaz, que era alto e muito
bem constituído e desempenado e jogador de râguebi, respondeu a um certo
anúncio. Foi a uma entrevista. O emprego, calcule o senhor doutor, era num
circo. O emprego, calcule, era enfiar uma pele e fazer de macaco, de gorila, e
andar aos saltos por aqueles cordames, por aqueles paus que há nos circos, a
entreter e a fazer rir o pagode, está o senhor doutor a compreender? E o rapaz,
claro está, torceu o nariz. Evidentemente. Um engenheiro electromecânico,
atleta de eleição, jogador de râguebi… a fazer de macaco de circo? Mas aquilo
não era (relativamente, já se vê), pois não, não era mal pago, e o moço
encheu-se de coragem. E lá foi. Lá foi ao primeiro ensaio. Não tinha saída,
coitado. Não tinha cunhas de qualidade nenhuma. Os pais, estupidamente… sim, o
meu irmão e a minha cunhada, muito parlapié e muita coisa, mas nunca lhe tinham
arranjado um cartãozito de um partido, a política deles era o trabalho, como
dizia o outro. Mas enfim. O rapaz lá foi. E eu lembro-me de que quando saíu de
casa, coitado, até ia branco. Mas lá foi e lá vestiu a pele. Ele era muito
ágil, um atleta, jogador de râguebi. E lá deu uns saltos como lhe ensinaram,
num número com um domador. Sobe pelas cordas. Faz para lá…agora é que se pode
dizer com propriedade…faz para lá umas macacadas…e nisto…quando está lá em
cima, ouve uma espécie de rugidos. E olha cá para baixo com a morte na alma, o
pobrezito. O que é que ele vê? Uma quantidade de leões muito agitados em volta
do homem, do domador, e todos a olharem para cima, para o macaco que lá andava
em cima, macaco esse que era o tal meu sobrinhito, o engenheiro, o jogador de
râguebi. O pobre do rapaz começa a encher-se de nervos e de suores frios, se eu
caio daqui abaixo estou feito num oito, os leões dão cabo de mim, de mim,
engenheiro electromecânico formado pelo Instituto Superior Técnico, um
engenheiro electromecânico e jogador de râguebi devorado por uma quantidade de
leões. Mas não se desmanchou. Continuou a pular de uma corda para a outra, de
um pau para uma corda, de uma corda para um pau. Queria diminuir o risco de se
estatelar cá em baixo, no meio das feras, está o senhor doutor a compreender? Foi
descendo. Foi descendo. Aos poucos e poucos. Um engenheiro electromecânico e
jogador de râguebi a fazer macacadas, uma vergonha! Um engenheiro
electromecânico, e ainda por cima jogador de râguebi, a morrer vestido de
macaco! (O que vale é que ninguém o conhecia vestido com aquela pele.) De forma
que… bem, chega cá abaixo, quase ao nível da pista. E é quando vê um leão vir
mesmo mesmo direito a ele, e depois outro, e outro, ai Jesus, agora é que é, e
os leões a chegarem-se todos ao pé dele e ele a ouvir uma voz que vem mesmo lá
do meio da chusma dos leões, uma voz que lhe diz estás
com medo?, eh pá, não tenhas medo que a gente não te faz mal nenhum. Nós também
somos malta do Técnico. E…pois é, é a vida, amigo. Como? Já conhecia o
caso? Conhecia-o como anedota? Talvez. Mas, ouça, não é anedota nenhuma,
afianço-lhe. Passou-se com o meu sobrinho Jorge. Ah, não. Não, não. Não chegou
a fazer carreira no circo. Hoje pertence ao conselho de administração de uma
multinacional alemã. É verdade. É isso mesmo, amigo! Vá com Deus. Desejo-lhe
tudo de bom para si e para os seus. Muita sorte. A vida não acaba amanhã. Mas…olhe…doutor!
Ó doutor! Então? Já não quer os dez euritos para a sopa?
Tantas vezes me faz rir (só me faltam a voz e as inflexões) com este deambular pelo (i)real!
ResponderEliminarAbç