VARIAÇÕES
(E FUGA) SOBRE UM
TEMA DE SCHOPENHAUER
Por detrás do mundo dos fenómenos oculta-se o mundo
verdadeiro, leia-se, a realidade, a existência das coisas em si, coisas em si
de que os fenómenos são a aparência, a representação.
A felicidade não a sentimos. Impossível. O que
sentimos é a falta dela, a ausência dela, porque só depois de os perdermos
estamos aptos a avaliar os bens que nos foram acrescentados.
E o conhecimento, vamos lá, não é arma que nos
conceda a hipótese de um triunfo sobre o mal. Até bem pelo contrário. O
conhecimento pode fornecer-nos a capacidade aumentada de sentir a infelicidade
e o mal, e desde logo porque nos aumenta a sensibilidade.
Mas o que me mais me interessa de momento reporta-se
à política, à economia, às finanças, à física e à metafísica. Ou à metafísica
mais directamente, enquanto conhecimento que ultrapassa a experiência do
concreto, do fenómeno, ao mesmo tempo que se esforça numa explicação sobre as
condicionantes da natureza, ou no que
poderá existir para além da natureza. Ou mais: com o que torna possível a
existência da própria natureza.
Temos passado os nossos últimos anos mediático-televisivos
mergulhados na multiplicação do fenómeno da crise, num enfatuamento de debates,
entrevistas e explicações económico-financeiras em que cada preopinante
apresenta os seus argumentos, os seus diagnósticos, e, muito mais raramente, as
suas soluções de saída para a crise.
Na realidade, ouvimos centenas de análises do
concreto, centenas de observações pertinentíssimas (e até inteligentes) sobre
os fenómenos de tipo económico-financeiro que compõem (e em que se decompõe) a
crise; centenas de previsões, prognósticos e recomendações com o fito de deitar
mãos eficazes à mesma crise, quer dizer, ao fenómeno. E espantamo-nos quando as
fenomenológicas previsões de um douto académico falham rotundamente, ou quando
as estratégias prosseguidas para debelar, ou pelo menos minorar, os efeitos do
fenómeno-crise-económico-financeira relevam da teoria e não produzem os efeitos
esperados - apesar de nos serem apresentados como teses de uma racionalidade
inatacável.
E se tempos houve em que o fenómeno económico-financeiro
obedecia estrictamente ao desígnio soberbo da política, esses tempos, fosse
pelo incremento da mundialização ou fosse lá pelo que fosse, pertencem a um
passado que até nos parece mais distante do que na verdade é. Hoje é a politica
que se inclina perante a racionalidade indestrutível do económico-financeiro.
Hoje é a economia em pleno fenómeno de crise que estipula quantos funcionários
há a despedir, quantos, e em que percentagens, os reformados deverão ser
taxados (espoliados), quantas instituições começam a não fazer sentido
(económico-financeiro) e estão condenadas à próxima extinção, quantos doentes
pobres têm direito a ser doentes pobres e quais deverão pagar a operação às
cataratas, ao apêndice ou à perna. E grande parte dessas recomendações-exigências
economicistas, razoáveis que sejam e racionais no terreno da fenomenologia
económica, não devem, ou não podem mesmo, ser activadas, concretizadas.
Porque a política ainda tem uma palavra a dizer.
Talvez não por muito mais tempo, mas ainda tem, e apesar de tudo. A práxis
cegamente quantitativa da economia acha ainda (e não por muito tempo mais) o
seu travão na conveniência política, na ética política, no bom senso que deve
orientar a política – a metafísica da vida pública. Para dizer rápida, despretensiosa
e ligeiramente, o quantificável objectivo imposto pela racionalidade
económico-financeira ainda pode esbarrar no qualitativo subjectivo e menos
puramente racional de uma decisão política. É bom? É mau? É destas coisas…
E daqui posso eu partir para uma convicção que a
metafísica de Schopenhauer me inspirou, e que é a das funções por assim dizer
supletivas de um fenómeno e do outro, a economia e a política, e sendo a
política o conteúdo poético da vida pública, espécie de metafísica da física
pura e dura que é a economia.
Os místicos cristãos podiam recusar a luz da razão (o
intelecto) na capacidade de apreender a verdadeira (e derradeira) essência das
coisas. Se fisicamente tudo seria explicável, para Schopenhauer, fisicamente,
nada era explicável.
Metafísicas populares também as há, a poesia, os
provérbios da sabedoria popular, alguns fenómenos não físicos, ou pouco apoiados
pela racionalidade e que encontram a sua força moral justamente na zona
complementar do espirito humano, o irracional, o improvável ou improvado
cientificamente.
Mas é a religião a mais efectiva das metafísicas
populares. A religião é património espiritual
de todos os povos à face da terra. A religião é a verdade que é revelada aos
povos a partir do exterior sobrenatural, na convicção improvável e improvada
das aparições sagradas e dos milagres. Ai dos cépticos, ai dos incréus. O
salário deles é a fogueira infernal,
improvável, improvada, metafísica, quando já em tempos foi a fogueira física,
concreta, objectivamente provável e provada.
Se a necessidade de uma metafísica é flagrante e
imperiosa para o espírito humano, sê-lo-ia igualmente, acho eu, para a vida das
nações. O homem singular achará na religião ou na poesia os espaços metafísicos
que lhe são indispensáveis à essência, enquanto as comunidades humanas acham na
política a metafísica que lhes governará os caminhos pedregosos da existência.
A metafísica impõe-se pela religião aos menos pensantes,
como a política se impõe a esses menos pensantes noutro território fenomenolgico.
Nunca passou pela cabeça de santo ou de profeta fundar uma religião com base na
razão. Seria pôr a metafísica no terreno especulativo que lhe é menos propício,
transformando-a em sistema filosófico, obrigando-a a lutar no dia-a-dia da
polémica racional e no plano argumentativo que duvidosamente lhe sustentaria a
validade. O mesmo poderá em certos momentos e em dadas circunstãncias
aplicar-se à política, e mais hoje do que ontem, quando os considerandos políticos
se esforçam para saltar fora da cadeia em que a razão do económico-financeiro
os sujeita.
Para Schopenhauer, o que distingue uma religião da
outra é a maneira de encarar o mundo, os homens, a vida: ou optimista, ou
pessimista. E se umas entendem a realidade do mundo como algo que bebe a sua
razão de ser nesse mesmo mundo sem outras interferências, outras haverá,
religiões, que acham a realidade desse mundo compreensível sómente por uma
expiação, como consequência de um pecado à espera de redenção, e sem razão de
ser fora desse complexo contexto.
O pessimismo pode, sem dúvida, triunfar do optimismo.
O cristianismo vingou pelo seu pessimismo atávico. Nem o judaísmo o venceu, nem
o paganismo greco-romano. Assim, só pela
consideração pessimista de um estado original de pecado, mesmo a pedir uma
redenção. Porque não é concebível uma redenção numa cosmogonia optimista,
isenta de culpa.
Mas a dor e o mal vêm-nos do mundo físico – do económico-financeiro
for instance. A redenção e o consolo
podem vir-nos da politica enquanto dado optimistico e no seu papel metafísico
em confronto com o físico economicista.
Será o razoável mundo físico do económico-financeiro
que nos dá a chave da inteligência de todas as questões, de todas as
suposições? Isso seria se o método científico fosse o único, o último, o
suficiente, o que de imediato nos conduzisse à solução do enigma que se encerra
nas coisas, à inteligência verdadeira e profunda do mundo. Mas não é.
A questão é que a explicação física
(económico-financeira, para o que de momento me interessa) carece, para uma
inteligência mais abrangente dos fenómenos e das coisas, da explicação metafísica
(a política), e sendo então que o método metafísico (se se lhe pode chamar
método) será obrigado a diferir substancialmente do método físico.
A metafísica (a política) pode aproximar-nos da coisa
em si. A física (o económico-financeiro) só pode dedicar-se ao fenómeno (a
crise) que a coisa em si segrega. O pior é se a coisa em si (como pensaria Kant
ao criticar a razão pura) não é esse absoluto explicável. Nesse caso não
haveria metafísica que nos valesse como contra-análise ao método físico.
E depois entra nas contas a vontade.
A vontade é um mal. A vontade está na orígem de todos
os males – e porque não de alguns, senão de todos, os bens?, perguntaria eu ao
Dr. Schopenhauer.
Ele responder-me-ia que o pensamento é um acidente da
vontade. Mas nos animais superiores, porque à medida que descemos às
inferioridades da vida a função do intelecto vai-se à viola, vai-se rarefazendo
sem, por outro lado, que a obscura agente da actividade, a vontade, deixe de se
manifestar em pleno.
Porém, o intelecto pode guiar a vontade, mas na
expressão de Schopenhauer a vontade pode ser o homem forte e cego que leva aos ombros o paralítico clarividente. Porque
só os impulsos do instinto fazem mover o homem. Os homens julgam-se puxados pela frente quando na verdade são impelidos
por trás; julgam-se arrastados pelo que vêem quando afinal são impelidos pelo
que sentem: instintos cuja influência lhes escapa na maior parte das vezes.
E depois chega-nos a liberdade. E depois a
necessidade.
Uma dada acção pode ser explicável enquanto consequência
necessária do carácter de quem a pratica, e também das influências sofridas,
dos conhecimentos adquiridos, das motivações que lhe solicitam a vontade. E
quando Schopenhauer lê Kant conclui da necessidade natural inerente a toda a
combinação possível de causas e efeitos no mundo que nos é sensível. Resta a
liberdade que se confere a causas que não tenham a qualidade de ser fenómenos.
Donde, a liberdade e a necessidade poderem ser conferidas ao mesmo objecto,
seja enquanto fenómeno, seja enquanto coisa em si.
O Corão, um exemplo, foi o livro que veio responder à
necessidade metafísica de milhões de seres humanos. O livro que funda por
conseguinte uma religião, e que fundando uma grande religião oferece fundamento
moral, inspira o desprezo pela morte, incita à guerra e às grandes conquistas.
E, enfim, agitações, guerras, revoluções na Europa,
entre os séculos VIII e XVIII, poucas se descortinam que não tenham tido nos
fundamentos e nos pretextos as encruzilhadas da fé. As problemáticas da
metafísica, dizendo melhor. Em nome da metafísica instigam-se os povos tanto
para as ruas da sublevação como para o puro campo de batalha. No outro prato da
balança talvez seja de colocar a quantidade de crimes que o cristianismo, uma
metafísica, evitou, e as boas coisas que inspirou.
Toda a coisa física (económico-financeira) terá a condição
de ser em simultâneo metafísica (política). E se assim não fosse, se uma física
fosse absoluta e sem o mais breve elemento de metafísica, essa física seria a
destruição de toda a ética. Ou de toda a moral. E sendo impossível de conceber
uma moral sem uma metafísica, ou uma doutrina que reconheça que a ordem da
natureza não pode ser a única, nem a mais sublime e absoluta ordem das coisas.
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