terça-feira, 13 de agosto de 2013

       VARIAÇÕES (E FUGA) SOBRE UM   
            TEMA DE  SCHOPENHAUER


Por detrás do mundo dos fenómenos oculta-se o mundo verdadeiro, leia-se, a realidade, a existência das coisas em si, coisas em si de que os fenómenos são a aparência, a representação.
A felicidade não a sentimos. Impossível. O que sentimos é a falta dela, a ausência dela, porque só depois de os perdermos estamos aptos a avaliar os bens que nos foram acrescentados.
E o conhecimento, vamos lá, não é arma que nos conceda a hipótese de um triunfo sobre o mal. Até bem pelo contrário. O conhecimento pode fornecer-nos a capacidade aumentada de sentir a infelicidade e o mal, e desde logo porque nos aumenta a sensibilidade.
Mas o que me mais me interessa de momento reporta-se à política, à economia, às finanças, à física e à metafísica. Ou à metafísica mais directamente, enquanto conhecimento que ultrapassa a experiência do concreto, do fenómeno, ao mesmo tempo que se esforça numa explicação sobre as condicionantes da natureza, ou  no que poderá existir para além da natureza. Ou mais: com o que torna possível a existência da própria natureza.
Temos passado os nossos últimos anos mediático-televisivos mergulhados na multiplicação do fenómeno da crise, num enfatuamento de debates, entrevistas e explicações económico-financeiras em que cada preopinante apresenta os seus argumentos, os seus diagnósticos, e, muito mais raramente, as suas soluções de saída para a crise.
Na realidade, ouvimos centenas de análises do concreto, centenas de observações pertinentíssimas (e até inteligentes) sobre os fenómenos de tipo económico-financeiro que compõem (e em que se decompõe) a crise; centenas de previsões, prognósticos e recomendações com o fito de deitar mãos eficazes à mesma crise, quer dizer, ao fenómeno. E espantamo-nos quando as fenomenológicas previsões de um douto académico falham rotundamente, ou quando as estratégias prosseguidas para debelar, ou pelo menos minorar, os efeitos do fenómeno-crise-económico-financeira relevam da teoria e não produzem os efeitos esperados - apesar de nos serem apresentados como teses de uma racionalidade inatacável.
E se tempos houve em que o fenómeno económico-financeiro obedecia estrictamente ao desígnio soberbo da política, esses tempos, fosse pelo incremento da mundialização ou fosse lá pelo que fosse, pertencem a um passado que até nos parece mais distante do que na verdade é. Hoje é a politica que se inclina perante a racionalidade indestrutível do económico-financeiro. Hoje é a economia em pleno fenómeno de crise que estipula quantos funcionários há a despedir, quantos, e em que percentagens, os reformados deverão ser taxados (espoliados), quantas instituições começam a não fazer sentido (económico-financeiro) e estão condenadas à próxima extinção, quantos doentes pobres têm direito a ser doentes pobres e quais deverão pagar a operação às cataratas, ao apêndice ou à perna. E grande parte dessas recomendações-exigências economicistas, razoáveis que sejam e racionais no terreno da fenomenologia económica, não devem, ou não podem mesmo, ser activadas, concretizadas.
Porque a política ainda tem uma palavra a dizer. Talvez não por muito mais tempo, mas ainda tem, e apesar de tudo. A práxis cegamente quantitativa da economia acha ainda (e não por muito tempo mais) o seu travão na conveniência política, na ética política, no bom senso que deve orientar a política – a metafísica da vida pública. Para dizer rápida, despretensiosa e ligeiramente, o quantificável objectivo imposto pela racionalidade económico-financeira ainda pode esbarrar no qualitativo subjectivo e menos puramente racional de uma decisão política. É bom? É mau? É destas coisas…
E daqui posso eu partir para uma convicção que a metafísica de Schopenhauer me inspirou, e que é a das funções por assim dizer supletivas de um fenómeno e do outro, a economia e a política, e sendo a política o conteúdo poético da vida pública, espécie de metafísica da física pura e dura que é a economia.
Os místicos cristãos podiam recusar a luz da razão (o intelecto) na capacidade de apreender a verdadeira (e derradeira) essência das coisas. Se fisicamente tudo seria explicável, para Schopenhauer, fisicamente, nada era explicável.
Metafísicas populares também as há, a poesia, os provérbios da sabedoria popular, alguns fenómenos não físicos, ou pouco apoiados pela racionalidade e que encontram a sua força moral justamente na zona complementar do espirito humano, o irracional, o improvável ou improvado cientificamente.
Mas é a religião a mais efectiva das metafísicas populares.  A religião é património espiritual de todos os povos à face da terra. A religião é a verdade que é revelada aos povos a partir do exterior sobrenatural, na convicção improvável e improvada das aparições sagradas e dos milagres. Ai dos cépticos, ai dos incréus. O salário deles é a  fogueira infernal, improvável, improvada, metafísica, quando já em tempos foi a fogueira física, concreta, objectivamente provável e provada.
Se a necessidade de uma metafísica é flagrante e imperiosa para o espírito humano, sê-lo-ia igualmente, acho eu, para a vida das nações. O homem singular achará na religião ou na poesia os espaços metafísicos que lhe são indispensáveis à essência, enquanto as comunidades humanas acham na política a metafísica que lhes governará os caminhos pedregosos da existência.
A metafísica impõe-se pela religião aos menos pensantes, como a política se impõe a esses menos pensantes noutro território fenomenolgico. Nunca passou pela cabeça de santo ou de profeta fundar uma religião com base na razão. Seria pôr a metafísica no terreno especulativo que lhe é menos propício, transformando-a em sistema filosófico, obrigando-a a lutar no dia-a-dia da polémica racional e no plano argumentativo que duvidosamente lhe sustentaria a validade. O mesmo poderá em certos momentos e em dadas circunstãncias aplicar-se à política, e mais hoje do que ontem, quando os considerandos políticos se esforçam para saltar fora da cadeia em que a razão do económico-financeiro os sujeita.
Para Schopenhauer, o que distingue uma religião da outra é a maneira de encarar o mundo, os homens, a vida: ou optimista, ou pessimista. E se umas entendem a realidade do mundo como algo que bebe a sua razão de ser nesse mesmo mundo sem outras interferências, outras haverá, religiões, que acham a realidade desse mundo compreensível sómente por uma expiação, como consequência de um pecado à espera de redenção, e sem razão de ser fora desse complexo contexto.
O pessimismo pode, sem dúvida, triunfar do optimismo. O cristianismo vingou pelo seu pessimismo atávico. Nem o judaísmo o venceu, nem o paganismo greco-romano.  Assim, só pela consideração pessimista de um estado original de pecado, mesmo a pedir uma redenção. Porque não é concebível uma redenção numa cosmogonia optimista, isenta de culpa.
Mas a dor e o mal vêm-nos do mundo físico – do económico-financeiro for instance. A redenção e o consolo podem vir-nos da politica enquanto dado optimistico e no seu papel metafísico em confronto com o físico economicista.
Será o razoável mundo físico do económico-financeiro que nos dá a chave da inteligência de todas as questões, de todas as suposições? Isso seria se o método científico fosse o único, o último, o suficiente, o que de imediato nos conduzisse à solução do enigma que se encerra nas coisas, à inteligência verdadeira e profunda do mundo. Mas não é.
A questão é que a explicação física (económico-financeira, para o que de momento me interessa) carece, para uma inteligência mais abrangente dos fenómenos e das coisas, da explicação metafísica (a política), e sendo então que o método metafísico (se se lhe pode chamar método) será obrigado a diferir substancialmente do método físico.
A metafísica (a política) pode aproximar-nos da coisa em si. A física (o económico-financeiro) só pode dedicar-se ao fenómeno (a crise) que a coisa em si segrega. O pior é se a coisa em si (como pensaria Kant ao criticar a razão pura) não é esse absoluto explicável. Nesse caso não haveria metafísica que nos valesse como contra-análise ao método  físico.
E depois entra nas contas a vontade.
A vontade é um mal. A vontade está na orígem de todos os males – e porque não de alguns, senão de todos, os bens?, perguntaria eu ao Dr. Schopenhauer.
Ele responder-me-ia que o pensamento é um acidente da vontade. Mas nos animais superiores, porque à medida que descemos às inferioridades da vida a função do intelecto vai-se à viola, vai-se rarefazendo sem, por outro lado, que a obscura agente da actividade, a vontade, deixe de se manifestar em pleno.
Porém, o intelecto pode guiar a vontade, mas na expressão de Schopenhauer a vontade pode ser o homem forte e cego que leva aos ombros o paralítico clarividente. Porque só os impulsos do instinto fazem mover o homem. Os homens julgam-se puxados pela frente quando na verdade são impelidos por trás; julgam-se arrastados pelo que vêem quando afinal são impelidos pelo que sentem: instintos cuja influência lhes escapa na maior parte das vezes.
E depois chega-nos a liberdade. E depois a necessidade.
Uma dada acção pode ser explicável enquanto consequência necessária do carácter de quem a pratica, e também das influências sofridas, dos conhecimentos adquiridos, das motivações que lhe solicitam a vontade. E quando Schopenhauer lê Kant conclui da necessidade natural inerente a toda a combinação possível de causas e efeitos no mundo que nos é sensível. Resta a liberdade que se confere a causas que não tenham a qualidade de ser fenómenos. Donde, a liberdade e a necessidade poderem ser conferidas ao mesmo objecto, seja enquanto fenómeno, seja enquanto coisa em si.
O Corão, um exemplo, foi o livro que veio responder à necessidade metafísica de milhões de seres humanos. O livro que funda por conseguinte uma religião, e que fundando uma grande religião oferece fundamento moral, inspira o desprezo pela morte, incita à guerra e às grandes conquistas.
E, enfim, agitações, guerras, revoluções na Europa, entre os séculos VIII e XVIII, poucas se descortinam que não tenham tido nos fundamentos e nos pretextos as encruzilhadas da fé. As problemáticas da metafísica, dizendo melhor. Em nome da metafísica instigam-se os povos tanto para as ruas da sublevação como para o puro campo de batalha. No outro prato da balança talvez seja de colocar a quantidade de crimes que o cristianismo, uma metafísica, evitou, e as boas coisas que inspirou.
        Toda a coisa física (económico-financeira) terá a condição de ser em simultâneo metafísica (política). E se assim não fosse, se uma física fosse absoluta e sem o mais breve elemento de metafísica, essa física seria a destruição de toda a ética. Ou de toda a moral. E sendo impossível de conceber uma moral sem uma metafísica, ou uma doutrina que reconheça que a ordem da natureza não pode ser a única, nem a mais sublime e absoluta ordem das coisas. 

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