ESTÁS NA MINHA LISTA NEGRA, DIZ A ZEBRA
PARA O MOSQUITO
(PARTE III)
- Compreendo,
senhor presidente, a filosofia que está na orígem da sua pergunta, mas gostaria
que o senhor compreendesse a minha – disse Arthur Miller no dia 21 de Junho de
1956.
- Estamos-lhe
muito agradecidos pelo seu testemunho desses encontros que teve com escritores
comunistas, mas só gostaríamos de saber quem participava neles, além de si,
senhor Miller…
Sim, um dos
mais famosos e importantes dramaturgos americanos e mundiais também não escapou
aos interrogatórios da Comissão para as Actividades Anti-Americanas.
Joseph McCarthy
caíra entretanto em desgraça mais a sua histérica campanha, que atingira os
suspeitos de anti-americanismo aos mais altos escalões do exército, e que foi
uma bomba na imprensa americana e mundial. Mas ainda que o mentor da campanha
anti-comunista estivesse a ser desacreditado, a Comissão tinha agendado novas e
numerosas audiências. E assestara os holofotes em Harvard – no mundo
universitário em geral, aliás -, na Broadway – onde alguns actores de Hollywood
tinham encontrado guarida para escapar ao interrogatório da Comissão -, e nos
ambientes da dança e do bailado.
E quem faltava
aparecer na liça do macarthismo e da lista negra? Albert Einstein. E Einstein
apareceu. Pequenos políticos
reaccionários conseguiram insinuar no público a suspeita sobre os intelectuais,
aterrorizando esse público com perigos inexistentes. Obtiveram sucesso e agora
aprestam-se para suprimir a liberdade de ensino e despedem e condenam à fome os
que não se lhes submetem. Que deve fazer a minoria dos intelectuais perante
esta vergonha? Uma revolução passiva, no sentido gandhiano. Mas a recusa de
testemunhar não deve escudar-se na Quinte Emenda e sim na ideia de que é
vergonhoso que cidadãos sem culpas sejam sujeitos a tão inconstitucional
inquisição. Se um bom número de pessoas estiverem dispostas a dar este duro
passo acabarão por vencer. Em caso contrário, não merecerão outra coisa a não
ser o estado de escravidão em que se procura colocá-las – New York Times, 12
de Junho de 1953. Era uma carta confidencial a um professor de liceu.
Saíra a público
o relatório dos trabalhos da Comissão para as Actividades Anti-Americanas
referente aos anos 1951/52. 58 testemunhas denunciaram um total de 902 dos seus
amigos e conhecidos; destes 902 nomes, 700 já haviam sido detectados pela
Comissão antes mesmo das denúncias. O recordista dos mais vezes denunciados era
o argumentista John Howard Lawson, 27 vezes citado como comunista. Segundo
estimativas do próprio Lawson, no momento
mais alto da sua expansão a lista negra compreendia cerca de 300 artistas. Adrian
Scott, outro dos Dez de Hollywood, era mais preciso: 214 artistas e outros
profissionais estavam votados ao ostracismo pelos estúdios, e entre eles 106
argumentistas, 36 actores, 3 bailarinos, 11 realizadores, 4 produtores
(independentes, depreende-se), 6 músicos, 4 desenhadores e mais outros 41
profissionais diversos.
Aumentara
desmedidamente o interesse das organizações políticas americanas pelo
“comunismo” de Hollywood. À frente dessas organizações perfilava-se a mais
influente, a American Legion, que aventava a séria possibilidade de boicotar em
toda a América os filmes em que tivessem colaborado algumas das testemunhas
hostis à Comissão para as Actividades Anti-Americanas. A Legião Americana tinha
em vista um programa de informação pública sobre as estruturas comunistas na
indústria do espectáculo. E a Legião Americana não sossegaria enquanto a
“limpeza” dos vermelhos de Hollywood não fosse total e completa, e feita
segundo as promessas contidas na Declaração do Waldorf de 1947, porque ainda
havia em 1951, e a trabalhar em Hollywood, 66 notórios comunistas.
Sem dúvida que
os produtores punham as mãos na cabeça ante a desgraçada perspectiva de um
boicote da Legião aos seus produtos. Não era brincadeira – 2.880.000 militantes
declarados e um milhão de simpatizantes. Seria a ruína das bilheteiras. E para
mais quando no início das audiências de 51 a crise da indústria do cinema
começava a preocupar, com uma queda de 40% em número de espectadores e com um
número crescente de salas a fechar portas por toda a América. E aí está porque
os produtores, ou os presidentes e vice-presidentes das majors, pedem um encontro com os homens da Legião Americana.
Pedia-se à
Legião que fornecesse às casas produtoras de Hollywood todas as informações que
arranjasse sobre alguns dos contratados pela indústria envolvidos com o
comunismo.
Os produtores
redigem então uma adenda à Declaração do Waldorf de 1947: não tencionavam
contratar nenhum reconhecido comunista, mas nos últimos anos ficara difícil
distinguir quem era comunista e quem não era, uma vez que muitíssimo poucos dos
chamados a depor na Comissão admitiram a sua qualidade de comunistas
militantes. E tudo porquê? Por causa da Quinta Emenda. A Quinta Emenda, que
lhes dava a faculdade constitucional inescapável de não responder claramente
quando indagados sobre as suas filiações políticas, estava a estragar tudo,
quer dizer, todos os planos de erradicação do comunismo
do mundo do cinema. Daqui decorre, e como recurso dos produtores para aquietar
a Legião Americana nas suas tenções de boicote, que todos os interrogados na
Comissão que se tivessem escudado na Quinta Emenda passariam, para efeitos de
Hollywood, a ser considerados comunistas, ou seja, postos numa lista negra e
despedidos sem apelo nem agravo.
Não se pode
esquecer, repito, que a crise na indústria era de meter medo. Basta ver que em
1945 os principais estúdios tinham sob contrato 804 actores, número reduzido,
dez anos passados, para 209. Os realizadores
contratados eram 152 em 1945 e 72 em 1955. O mesmo para os
argumentistas, que foi o grupo profissional do cinema que mais gente forneceu à
lista negra – 490 contratados em 45; 67 contratados em 55.
A crise. A
crise que logo a seguir à guerra afectou seriamente o cinema americano. E se a
Fox e a MGM e a Warner e a Paramount produziam os seus filmes e os distribuíam
e os projectavam em cinemas de sua propriedade, em 1949 a ordem governamental
foi para que as grandes casas produtoras vendessem as suas salas de cinema. Era
a regra anti-trust. E como deixava de haver garantias respeitantes a quantas e
quais salas iriam exibir os filmes produzidos, a quantidade de filmes
produzidos começou a decaír – e, por consequência, o emprego na indústria a
escassear.
A Legião ficou
satisfeita com os resultados da chantagem que fizera e rapidamente elaborou
para consulta das majors um elenco
negro de 300 pessoas ligadas a associações tidas como para-comunistas a
trabalhar em Hollywood.
A Legião funcionaria desde então como
agência de censura nos estúdios.
Mas não faltava
muito para a lista negra se alargar e bem aos que, não sendo comunistas nem
figurando nela, ajudavam a viver os que a indústria pusera à margem e condenara
ao desemprego. O guionista Ring Lardner Jr., por exemplo, trabalhou no
argumento de um filme a ser dirigido por Joseph Losey. Losey pagou-lhe o
trabalho do próprio bolso e em dinheiro contado, o que lhe valeu ver o seu nome
na lista negra. Alvah Bessie, outro dos Dez, trabalh0u num filme de Robert
Rossen, o que deu como resultado Rossen ser chamado à Comissão, apelar para a
Quinta Emenda, e acabar na lista negra. Desde aí, obviamente, nenhum dos Dez
encontrou em Hollywood alguém que o ajudasse a viver.
Particularidades
engraçadas da perfeita democracia liberal- (fascista) americana.
Esperava-se o rebentar de uma guerra com
a União Soviética e havia já destinados campos de detenção para os suspeitos de
comunismo e subversão.
Ser associado ao comunismo significava,
entre outras coisas, perder o direito a ser cumprimentado pelos vizinhos, ter
as janelas da casa constantemente estilhaçadas pelas pedras atiradas durante a
noite, encontrar no jardim cruzes em chamas (marca do Ku Klux Klan), ter de consolar os filhos que eram
humilhados na escola pelos companheiros, quando não pelos próprios professores
– fragmento da autobiografia de Lester Cole, argumentista, um dos Dez.
To be a commy– ser comuna – era uma
nódoa na reputação e extensiva a toda a família. E amizades velhas se
desfizeram naquela época, e já não por diferenças ideológicas, muito mais por
medo de se ser amigo de certa pessoa, se ver envolvido com comunistas e assim
arriscar o emprego e a sobrevivência. Sentia-me
a cair no mais fundo, passava na rua pelas pessoas que conhecia e baixava a
cabeça - contou o guionista comunista arrependido Guy Endore.
Mas tem graça
que uma das acusações da Comissão aos chamados comunistas de Hollywood era de
nepotismo. O que, por sinal, era verdade. Numa indústria em que a procura de
trabalho qualificado era grande o nepotismo era prática comum. Quem quisesse
trabalhar como argumentista (e provavelmente como outra coisa qualquer) em
Hollywood não se podia apresentar assim, de mãos a abanar de recomendações. Era
absolutamente indispensável ter uma connection
na indústria. E podia até nem ter a ver com afinidades políticas ou
ideológicas. Para ser admitido na indústria quem não tivesse as convenientes connections estava feito. Cada
argumentista mais conhecido tinha um círculo (ou uma corte) de amizades e todos
estavam permanentemente em contacto. E se um encargo era conferido a um famoso
que não o podia ou não o queria fazer o encargo era passado imediatamente a
outro membro do círculo (da seita) do famoso. Uma espécie de máfia, vamos lá…
E também é bom
que se diga que o Partido Comunista usou técnicas de isolamento social contra
os os antigos militantes delatores e emitiu directivas sobre o tratamento a dar
a um delator. A um delator e à respectiva mulher e respectivos filhos. Todos
eles deveriam ser alvos do boicote do Partido e deveriam sentir-se miseráveis a
cada instante das suas vidas. Era de organizar piquetes à porta das lojas ou dos
armazéns onde as mulheres dos delatores faziam as compras. Era de recomendar
aos filhos dos militantes que na escola fizessem pouco e maltratassem
psicologicamente os filhos dos traidores ou quaisquer outros alunos que
pertencessem à família de um delator, marginalizando-os, não falando com eles,
ou chamando-lhes espiões e bufos. Era de escrever a giz nas portas das casas do
delatores “o gajo que mora aqui é um espião”.
Mas adiante. Alguns argumentistas
trabalhavam clandestinamente, anonimamente, com recurso a testas de ferro que
lhes assinavam os trabalhos. Esperavam por tempos melhores.
Realizadores e argumentistas, vá lá, ainda
podiam contar com algumas saídas para o seu problema, o que não acontecia, ou
mais dificilmente acontecia, com os actores, os que tinham que dar a cara,
evidentemente. Realizadores e argumentistas podiam ir trabalhar para o
estrangeiro; podiam trabalhar em negro (como disse, escrever para outros
assinarem), trabalhar para a televisão enquanto a Comissão não virasse os
holofotes para aí, trabalhar por salários irrisórios para produtores
independentes, off-Hollywood, por
assim dizer. Ou viver e trabalhar num combinado destas situações.
Mas vamos lá a
ver as coisas como deve ser, Hollywood fechara-lhes as portas, falo dos
argumentistas, mas algumas alternativas de trabalho ainda havia para eles em
aberto e desvinculadas de qualquer servidão contratual a uma empresa. O teatro
– casos de Lester Cole, Ring Lardner Jr., Dalton Trumbo. A ficção romanesca - caso
de Albert Maltz. O ensaísmo – para
Samuel Ornitz, a trabalhar num estudo sobre as causas do anti-semitismo; ou
para John Howard Lawson, que tinha finalmente tempo para acabar um livro sobre
a escrita cinematográfica.
Depois de
averbar um considerável êxito na Broadway com a comédia The Biggest Thief in Town, em tom de bravata, Dalton Trumbo declarou
(em nome dos Dez): a Comissão fez o maior
favor que se podia fazer a cada um de nós, os Dez de Hollywood, levando-nos a
escrever romances e comédias e obter grandes sucessos.
Parece que, de
uma maneira geral, o sucesso deles na América não foi nada do outro mundo. Um
dos Dez, Alvah Bessie, caído na lista negra caíra também em funda depressão,
dias e dias a olhar fixamente um ponto para lá da janela de sua casa e sem saber o que fazer à vida.
Alguns partiram
para o estrangeiro. Estavam convencidos de que na América estava a despontar uma
nova modalidade de fascismo, que a lista negra não seria mera manobra
propagandística, e que era, sim, o começo de mais fortes acções repressivas. Um
novo totalitarismo, ensaiado e derrotado na Alemanha e na Itália, mas a caminho
de se transferir para os EUA.
Edward Dmytryk conta que quando estava
preso recebera a visita do escritor Howard Fast e que este lhe dissera em
segredo que dentro de pouco tempo eles seriam mudados da prisão para um dos
campos de concentração que se estavam a construir em Montana…
Corria também o boato de que até as
mulheres dos presos estariam em perigo e que os bens dos Dez de Hollywood iriam
em breve ser confiscados pelo governo – daí eles se terem apressado a pôr esses
bens em nome de pessoas que nada tinham com Hollywood. E na verdade, no condado
reaccionário de Los Angeles saía uma lei que obrigava os inscritos no Partido
Comunista a comunicar à policia sempre que quisessem viajar para fora da
cidade.
Joseph Losey foi a figura que concentrou
à sua volta os novos emigrantes do cinema americano que escolheram a Inglaterra
para continuar a trabalhar.
As dificuldades de Joseph Losey na
América, acusado na Comissão por uma única testemunha, em 1951, tinham começado
ainda nos anos 40, concretamente em 1948. Rodava ele o seu filme mais relevante
desse período, O Rapaz dos Cabelos
Verdes, quando o seu produtor, Adrian Scott (mais tarde um dos Dez) foi
parar a uma lista negra, e quando o milionário Howard Hughes pôs em acção uma
violenta campanha para enxotar dos quadros da RKO os suspeitos de comunismo. Ou
quando Hughes quis que Losey dirigisse um filme intitulado qualquer coisa como Casei com um Comunista. Losey recusara.
Ele e outros treze realizadores. E Losey ficou marcado – o cutelo estava a caír mesmo ao meu lado e eu tinha a certeza de que
não faltava muito para ser atingido. E como estava chapada no contrato dele
uma cláusula a dizer que se ele estivesse de algum modo envolvido politicamente
aquele contrato resultaria nulo para todos os efeitos, uma vez Losey denunciado
os contratos que tinha estavam automaticamente caducados. E Losey começa a
trabalhar sob diversos pseudónimos, Andrea Forzano, Victor Hanbury, Joseph
Walton. Virá a estabelecer-se em Londres em 1957. É considerado pelos ingleses
um mestre. Pode trabalhar com o verdadeiro nome. Pode empregar argumentistas
listados de negro na América. E tem grande sucesso na Europa.
Sucesso fora dos EUA também o conheceram
Edward Dmytryk e Jules Dassin.
Foi no seguimento da primeira audiênca a
que se apresentou, em 47, quando se portou mal perante a Comissão, não bufou
nomes e foi parar à lista negra, que Dmytryk se viu obrigado a emigrar.
Londres. Give Us This Day e Obsession. Mas um belo dia recebeu um
aviso do Departamento de Estado dos EUA: devia voltar à América para renovar o
passaporte – sem o passaporte em ordem os ingleses não o deixavam lá ficar a
trabalhar. Dmytryk não viu outro jeito senão o de cumprir a ordem e assim que
pôs os pés em solo americano os homens do FBI deitaram-lhe a luva e enfiaram-no
na pildra. Seis meses. Ultraje ao Congresso. Quando sai da prisão, já o
sabemos, o homem pensa duas vezes, para que é que eu me ando a armar em
revolucionário, o que eu quero é governar a minha vidinha, e implora à Comissão
nova audiência, e testemunha
amigavelmente, e dá uns nomes, e volta a trabalhar tranquilamente nos EUA – já
vimos isso na Parte II.
Mas essa do bloqueio dos passaportes foi uma
invenção de génio das autoridades americanas na luta contra os subversivos. E a
mesma sorte de Dmytryk tocou a Adrian Scott e a Ring Lardner Jr., um a
trabalhar em França e outro instalado na Suíça a escrever um argumento. Não é do interesse dos EUA que certas
pessoas vivam no estrangeiro, era a sentença das autoridades.
Um dos nomes de comunistas que Dmytryk
passa à Comissão é o do seu aluno de realização Jules Dassin. Dassin era uma
das mais risonhas promessas de Hollywood (Brute
Force e Naked City) antes de ser
denunciado pelo seu mestre. Ao ser denunciado pelo seu mestre, Jules Dassin
arranjou maneira de desandar para o estrangeiro antes que chovesse, e antes que
tivesse de seguir as pisadas do seu mestre e o pusessem a dizer se era
comunista ou não, e antes que também tivesse que pôr a boca no trombone a
acusar os seus amigos se quisesse continuar a trabalhar em Hollywood.
Dassin vai para Londres. The Night and the City. Depois vai até
Itália. Mas aí a notícia a dizer que ele tinha sido incluido na lista negra em
Hollywood prejudica-o, não consegue trabalho. E vai para Paris. Em Paris começa
a escrever para o teatro. Mas é em
Paris, em 1955, que Jules Dassin filma o thriller
de grande êxito Du Rififi Chez Les Hommes
– Palma de Ouro em Cannes. Filma na Grécia, Celui
qui Doit Mourir, em 1957, também com sucesso. E recebe ofertas de trabalho
nos EUA. Curioso, não é? É. Where the Hot
Wind Blows (em português Nunca ao
Domingo) – Palma de Ouro em Cannes outra vez, para a actriz principal,
Melina Mercouri, com quem Dassin se casaria. E era a fama mundial. Dassin deve
ter dado muitas gracinhas a Deus e à canalhice do seu mentor Edward
Dmytryk.
O México também foi um dos destinos de
emigração dos homens da lista negra – Mexico City e Cuernavaca principalmente.
Ajeitavam-se no espanhol, estavam relativamente perto de Hollywood, a vida era
barata.
Bom, ajeitavam-se no espanhol é como quem
diz. O espanhol deles não chegava para as encomendas. Eles só se ajeitavam. O
obstáculo da língua era impeditivo, ou quase impeditivo, de algum destino
reservado para eles no cinema mexicano. Mas como estavam perto de Hollywood
faziam trabalhos em negro, para o mercado negro do cinema americano.
No México tinham a vantagem de não ser
preciso terem passaporte em dia para lá viverem. Renovava-se a licença de
estadia a cada seis meses e estava a andar. Por lá passaram Dalton Trumbo, Ring
Lardner Jr., Robert Rossen, Hugo Butler.
Dalton Trumbo era um dos mais ansiosos
por regressar a casa e um dos que mais sentia a injustiça de que fora vítima.
Escrevia cartas a torto e direito, a toda a gente, influente ou não, e uma
delas, em Janeiro de 1957, ao presidente Eisenhower… condenado, multado, preso, de honra manchada como mentiroso, subversivo
e traidor, e imediatamente despedido da indústria cinematográfica, a não ser
que volte a comparecer perante a Comissão e a responder a todas as perguntas
inconstitucionais que me entendam fazer…senhor presidente, o senhor presidente,
que tem mais influência do que ninguém sobre os seus compatriotas, se acha que
o que escrevi na presente é verdade, bastará que diga publicamente uma palavra
para que a indústria do cinema abandone para sempre una prática que é odiosa
aos olhos do mundo inteiro… e nenhuma resposta assinada pelo punho do presidente
Eisenhower… terá respondido um conselheiro da presidência, a dizer que o
presidente não tinha comentários a fazer sobre aquela matéria, e a que Trumbo,
eu diria poeticamente, contra-respondeu…não
tendo o presidente comentários a fazer, é minha obrigação moral convidar os
intelectuais e artistas da Europa ocidental a resistirem com todas as forças às
políticas inquisitoriais, às prisões, ao ostracismo e à recusa de passaportes
que na América está a destruir centenas de artistas que vivem no medo…
- E queria
deixar bem claro a todos os presentes que não tenciono dar cobertura ou
protecção a quem é comunista, ou ao Partido Comunista Americano – continuava
Arthur Miller em 1956. – A única coisa que quero aqui proteger é uma certa
ideia que tenho de mim próprio. Não poderei dizer aqui nomes de ninguém. Se o
fizesse causaria grandes problemas às pessoas que mencionasse. Por isso lhe
digo, senhor presidente, que nestes encontros de que falei participaram
escritores e poetas… e olhe, tanto quanto sei, a vida de um escritor, apesar
das aparências, é já de si suficientemente dura… e eu não tenho nenhuma
intenção de a tornar mais dura ainda do que ela já é. É por isso que lhe peço
que não me pergunte nada que diga respeito a outras pessoas.
Era a linha de
defesa de Lillian Hellman – e de outros. No entanto, os contextos políticos, o
de 1951 e o de 1956, não eram comparáveis. Para dar uma nega à Comissão nos
tempos de 1951 era preciso ser-se muito mais corajoso do que em 1956. Isso não
tira, como é óbvio, a que os homens que interrogavam Miller não estivessem
ameaçadores e não lhe mostrassem má cara.
Claro que não
aceitaram as razões invocadas por Arthur Miller para não lhes fornecer nomes.
Se ele continuasse a recusar responder
às perguntas ficaria marcado por ultraje ao Congresso. Era um aviso que
lhe faziam.
- Veja lá bem,
senhor Miller… veja se se lembra se nesses encontros não estaria um homem
chamado Arnaud d’Usseau… era ele que presidia
a essas reuniões de escritores, muito próximas do Partido Comunista,
vamos lá…. reuniões em que o senhor mesmo, senhor Miller, tomou parte em 47…
- Tudo o que lhe posso dizer, senhor
presidente, é que a minha consciência não me permite citar o nome de qualquer
outra pessoa…
Já para o fim
da sessão, um dos comissários sacou de uma folha fotocopiada, uma página do
jornal Daily Worker – órgão do
Partido Comunista Americano – com publicidade a uma peça dele, You’re Next, um texto de 1946 que o
próprio partido Comunista patrocinara e fizera encenar. Tratava-se da
representação de um ritual de interrogatórios feito por uma certa Comissão, talvez
aquela mesma que lhe apertava agora os calos. Os comissários agitam a folha
como prova inequívoca da proximidade de Arthur Miller ao Partido Comunista.
- Oh, meus
senhores, os senhores não podem acusar-me disso! Os meus trabalhos têm corrido o
mundo inteiro. Fui representado em quase todos os países, e até o governo
franquista financiou uma montagem da Morte
de um Caixeiro Viajante num dos principais teatros do centro de Madrid. Bem
vêem que não posso ser responsável por quem leva ao palco as minhas peças,
tanto quanto a General Motors não é responsável por quem conduz um dos seus
Chevrolet.
Ficou nos anais
culturais e jurídicos americanos esta tirada.
Não me recordo
de ter lido que Arthur Miller tenha sido preso ou coisa parecida.
Mas mesmo assim
havia formas de sair da lista negra: ou por prestar declarações adicionais
satisfatórias para a Comissão depois de se terem prestado as insatisfatórias,
casos de Edward Dmytryk ou Robert Rossen; ou pagar uma soma a uma das agências
meio mafiosas que tratavam disso. Já para o fim da instituição das listas
negras bastava escrever uma declaração ajuramentada dirigida ao empregador. Só
ficariam na lista negra pelos séculos dos séculos os que não arredassem das
posições entrincheiradas na Quinta Emenda.
Em 1956, um
certo John Cogley publicou um livro Report
on Blacklisting, denunciando desde logo a existência de uma real lista
negra, e depois a existência de uma indústria dentro da indústria propriamente
dita do cinema que tornava possível a alguns limpar o nome dessa lista negra –
um processo a que chamaram clearance. O
autor, Cogley, foi chamado ao Congresso para se explicar e recusou divulgar as
suas fontes de informação. Fosse por isso, também não conseguiu demonstrar à
evidência o facto de alguns artistas não trabalharem há anos apenas por motivos
de ordem política; nem conseguiu convencer os congressistas de que por meio de
pagamento de certa soma (admissivelmente elevada) era possível limpar o nome da
lista negra e voltar a ser contratado pelos estúdios.
O homem pode
não ter convencido os congressistas, mas estava a falar verdade. Isto é, havia
agências que tratavam da limpeza das folhas, agências que eram indivíduos de
menos escrúpulos e aproveitadores dos dramas daqueles que se viam impedidos de
ganhar a vida.
American
Business Consultants – propriedade de três ex-agentes do FBI; publicava uma
revista que denunciava suspeitos e em contrapartida isentava de suspeitas os
que pagavam uma taxa; publicou uma “bíblia” das listas cinzentas em que
compareciam 151 artistas apontados como envolvidos em actividades
para-comunistas.
Wage Earners Commitee
– publicava um jornal National Wage Earner
que todos os meses denunciava novos subversivos e limpava a folha aos antigos
que entrassem com dinheiro.
E havia mais…
A Declaração do
Waldorf, enfim, tomava sentido nos perigos, nos riscos e nos medos. Palavra de
ordem: eliminar os subversivos e proteger
os inocentes.
Porque sabiam
haver inocentes na lista negra, gente que nunca na vida pensara ser comunista e
que tinha o nome marcado. E os inocentes podiam dividir-se em dois tipos:
pessoas que eram confundidas com outras; ou pessoas que pertencendo embora a
alguma das chamadas associações para-comunistas não estavam inscritas no
Partido Comunista. Inocentes havia que não encontravam trabalho, como inocentes
havia (os das listas cinzentas) a quem muitos dos estúdios não davam trabalho
só por prudência. E acabava tudo por desaguar na mesma dúvida essencial, e
existencial: que entidade se poderia arrogar o direito de estabelecer quem era
comunista e quem não era?
Pretendia-se
criar um sistema preciso, ou uma fórmula, por onde fosse possível detectar quem
era e quem não era comunista. Difícil. Impossível. Que funcionassem então os
boatos, os mexericos, as invejas caluniosas. Se muita gente tinha famas, ou de
alcoólico, ou de pederasta, ou de ninfomaníaca, ou de cocainómano, também
podiam correr as famas de comunista. Procurava-se era não despedir ninguém na
base de um mexerico.
O mercado
negro.
É bem que se
diga que foi calculado em 15% o total dos guiões que em Hollywood foram
escritos por gente da lista negra e chegados às produtoras sob o nome de testas
de ferro não integrantes da lista negra. Mas não há a certeza desta percentagem.
O segredo era muito espesso e guardado
sob juramento solene. Já Dalton Trumbo escrevia um artigo em 1957, revelando
que os produtores, respeitando embora a lista negra, não deixavam de comprar
histórias e guiões da autoria dos listados de negro. A reserva consistia em
ocultar os nomes dos verdadeiros autores.
Correu mesmo o
boato de ter sido Dalton Trumbo a escrever grande parte das melhores produções
de Hollywood desse período – e admitindo o próprio ter escrito uns trinta e
cinco argumentos durante a fase negra.
Trumbo veio-se
embora do México em 1954. Fez uma sociedade com outro da lista negra, Michael
Wilson. Um inventava a história e delineava o enredo e o outro encarregava-se
dos diálogos. Conseguiam fornecer a um produtor um guião completo em cinco
semanas. E por isso os investigadores de cinema teimaram em atribuír a Dalton
Trumbo ( a coberto de outros nomes) filmes, por exemplo, de Howard Hawks (Air Force), de Irving Rapper (The Brave One – com Óscar incluido), de
Robert Aldrich (The Last Sunset), e
de muitos outros de menor importância, e sendo o título mais famoso de todos o
do filme de William Wyler Roman Hollyday (Férias em Roma), com direito a Óscar a entregar a Ian McLellan
Hunter, o testa de ferro de serviço àquele trabalho.
A questão dos testas de ferro tinha que
se lhe dissesse. Era difícil para um homem da lista negra encontrar quem lhe
assinasse os trabalhos. Os produtores recebiam o texto original escrito, e
depois seguiam-se infindáveis reuniões com distribuidor, produtor, realizador,
director de fotografia, ou até com actores, e onde era naturalmente forçoso
aparecer também o autor do argumento. Alguém teria então de aparecer a essas
reuniões fazendo as vezes do guionista e já se vê que era um problema levado de
seiscentos diabos achar alguém que se prestasse a arriscar tanto. O escritor de
ficção científica Ray Bradbury foi, dos conhecidos, um dos que quis ajudar
alguns amigos da lista negra, assumindo-se como autor - o que não deu resultado não sei porquê,
talvez tenha sido desmascarado. E houve Leo Townsend, testemunha amigável da
Comissão e delator, que como favor pessoal assinou argumentos escritos por
outros, Lester Cole, ou mesmo Dalton Trumbo.
É no tocante filme The Front (na versão portuguesa O
Testa de Ferro), de 1976, que Hollywood toca na questão da
lista negra. É um filme magnífico, protagonizado por Woody Allen e Zero Mostel,
e realizado por Martin Ritt, e nele intervieram muitos dos homens em tempos
listados de negro pela indústria, incluindo Zero Mostel, que faz o seu próprio
papel, e o realizador Martin Ritt.
Outro item difícil de ultrapassar nesta
coisa do mercado negro dos argumentistas era a parte financeira. O negro, ou
testa de ferro, ficava de costume com 10% do cachet. Mas houve casos em que o testa de ferro mais ganancioso
exigiu 50%. Para piorar as coisas, diga-se que os argumentos em circulação no
mercado negro eram pagos muito abaixo do preço do argumento normalmente
apresentado pelo seu verdadeiro autor. E quando digo abaixo do preço digo menos
de metade. O caso do mais famoso argumentista, Dalton Trumbo (sempre ele) é bem
ilustrativo, pois vendeu o seu primeiro argumento “em negro” por 3.750 dólares,
enquanto o preço dele antes de ir parar à lista negra era de 75.000 dólares por
cada guião. É obra! E ainda quando ele, digamos, começou a emergir do seu sono
negro, em 1960, sob o seu verdadeiro nome, e escreveu para Otto Preminger o
filme Exodus, só recebeu 50.000
dólares, dois terços, portanto, da tarifa habitual. Não era muito em comparação
com os mais altos estipêndios hollywoodeanos, era fabuloso relativamente ao que
ele poderia ganhar através da intermediação de um testa de ferro.
John Howard Lawson, o recordista dos
denunciados, ganhava 2.500 dólares à semana quando trabalhava às claras. Depois
de metido na lista negra, a trabalhar em negro, o rendimento dele não passou
dos 50 dólares por semana.
Os produtores independentes, os que
poderiam pretender trabalhar fora do anel de fogo das majors, eram poucos e dificilmente arriscavam desafiar o estatuto
dos grandalhões, por exemplo, utilizando os serviços de um dos inscritos na
lista negra. Se tal viesse a lume era certo e sabido que a carreira desse
produtor poderia passar a não valer um tostão furado e ninguém lhe financiaria
a produção do próximo filme que produzisse, e esse filme só apanharia com
críticas desfavoráveis. Mas se por acaso esse produtor tivesse artes de
ultrapassar todos os ditos inconvenientes, ah, sim, seria certamente boicotado
nos cinemas pelo pessoal da Legião Americana. Foi esta a essencial razão pela
qual nenhum famoso produtor se arriscou a contratar alguém posto na lista
negra.
O entrar do ano
de 1960 abre boas perspectivas para o fim da instituição da lista negra. Alguns
dos intransigentes que se tinham mostrado hostis ao trabalho da Comissão
reapareceram de repente à luz do dia. Michael Wilson, Dalton Trumbo e Albert
Maltz são reabilitados em Hollywood. Publicamente reabilitados. Um Óscar é
entregue a um nome da lista negra e o público começa a perceber que a lista
negra e o mercado negro eram pesadelos de noites já passadas.
Facto
interessante que alguns comentadores assinalaram: os artistas que figuravam na
lista negra acusados de comunismo eram os que até então tinham conseguido os
maiores êxitos em Hollywood. Bastava comparar a quantidade de óscars e
nomeações para óscars que lhes foram atribuídos entre 1940 e 1959. Trumbo,
Butler, Bessie, Endore, Lillian Hellman, Ring Lardner Jr., Maltz, Abraham
Polonsky, Foreman, Michael Wilson… entre muitos outros.
A Academia dos
óscares andou por algum tempo de calças na mão sem saber o que decidir. Levou
críticas ferozes quando Michael Wilson (lista negra por apelo à Quinta Emenda)
ganhou um Óscar pelo guião de A Place in
the Sun. E calha que em 1957 o mesmo Michael Wilson é nomeado para outro
Óscar por Friendly Persuasion, de
William Wyler. E se em 52 a Academia não podia fazer nada, a partir de 54 já
havia um acordo firmado para a possibilidade de se omitir o nome do
argumentista do genérico do filme. Em 57 não era permitido premiar com um Óscar
alguém que estivesse na lista negra. Pois não. Quer dizer, o Óscar de Michael
Wilson em 57 não lhe poderia ser entregue. E não foi. Quem o ganhou foi um
certo senhor Robert Rich, que, não se soube porquê, nem se apresentou para
receber a estatueta.
Depois correram
insistentes boatos de que os verdadeiros autores do filme A Ponte do Rio Kwai, de David Lean (Óscar para o melhor argumento),
eram os “listas negras” Carl Foreman e Michael Wilson.
Enfim, uma
longa série de episódios do género marcaram o ano de 1959. Até um radialista de
Los Angeles vai ao ponto de comentar que a lista negra tinha acabado, não
porque os sentimentos anti-comunistas da indústria tivessem mudado ou as
acusações de anti-americanismo fossem infundadas, mas simplesmente porque Hollywood
precisava como pão para a boca de bons argumentos para serem filmados.
A Legião
Americana é que ainda intensificava a luta contra os subversivos de Hollywood.
E atirava-se à Academia por ter ignorado a proibição de dar óscares a gente
indesejável e inscrita na lista negra.
Tocava à
Academia e à associação dos produtores aplacar as iras da Legião, tal como os senhores, continuamos a querer
os subversivos fora de Hollywood -
dizem os produtores à Legião -, mas a
maior parte deles trabalha para pequenas companhias produtoras independentes…sim,
portanto façam o favor de não nos maçar e irem disparar as vossas balas contra
os produtores independentes e não contra a indústria de cinema no seu todo. E
assim foi. A Legião Americana passou a
elogiar as grandes companhias e a condenar os pequenos produtores independentes
que empregavam comunistas.
Mas… quem é que
chega a Hollywood em 1959 como convidado de grande honra? O maior comunista do
mundo de então: Nikita Krutchev, premier
soviético. Um grande jantar de gala a homenagear Krutchev com a presença de 400 das mais
importantes personalidades do espectáculo.
Então como era?
Os grandes
magnates da indústria queriam expulsar os comunistazinhos que ganhavam o seu
pãozinho em Hollywood e recebiam de braços escancarados o maior chefe comunista
do mundo numa cerimónia de boas-vindas como há muitos anos não se via por ali?
Como era?
Sim, como era
quando o governo dos EUA assinava um acordo de intercâmbio cultural com o
governo da URSS com particular incidência na produção cinematográfica?
Como era quando
o público americano estava a acolher tão bem os filmes produzidos na Rússia
comunista?
Como era e que
moral era quando na América se criticava duramente o ostracismo a que o
escritor Boris Pasternak fora votado na URSS por culpas de anti-sovietismo e em
Hollywood se perseguiam e ostracisavam os escritores americanos culpados de
anti-americanismo, como era?
Paradoxos e
contradições a raiar o ridículo que apareciam claramente aos olhos de todos.
Otto Preminger
será o primeiro dos realizadores de alta nomeada a provocar frontalmente a
Comissão e a instituição da lista negra quando anuncia no Variety que Dalton Trumbo será o argumentista do seu próximo filme, Exodus. Não quero andar a mentir ao público. Esconder o nome de um autor é uma maneira de enganar o público. A única
maneira honesta de trabalhar nestes tempos é dizer a verdade. O New York Times aplaude. E acrescenta:
toda a gente já sabia que tinha sido Trumbo a escrever o argumento de Spartacus (de Stanley Kubrick) e de Férias
em Roma.
Mas mesmo assim as majors fizeram finca-pé nas suas disposições de discriminar os suspeitos
de comunismo. E a inevitável Legião Americana deu por paus e por pedras com a
decisão de Preminger e declarou guerra de informação contra a imposição
disfarçada dos filmes feitos por homens doutrinados pelos soviéticos.
No dia 21 de Março de 1960, um dos
maiores ídolos da América identifica-se como produtor cinematográfico
independente e desafia a lista negra: Frank Sinatra. Quer produzir um filme
sobre o único soldado fuzilado por deserção durante a II Guerra e chama Albert
Maltz para lhe escrever o guião. O New
York Times torna a aplaudir: a contratação de Albert Maltz por Sinatra
minava os fundamentos lógicos da lista negra.
Mas Sinatra já está metido na política.
Em 1960 manifesta publicamente o seu apoio à candidatura à presidência de John
Kennedy.
A Catholic War Veterans anuncia o boicote
que fará ao filme de Sinatra, ter
contratado Maltz é uma afronta a todos os americanos. Não queremos que
americano algum vá ver o filme e pedimos ao senhor Sinatra para repensar a sua
atitude como verdadeiro americano.
E naquele tempo (não sei se ainda hoje)
se uma liga americana dizia “mata” outra liga americana dizia logo “esfola”, e
a secção da Califórnia de outra liga de veteranos de guerra os AmVets apoiou o
boicote ao filme, sim senhor, mas ainda foi mais longe, propôs um boicote a
todas as actividades de Frank Sinatra.
E Sinatra devolve os golpes: compra
espaço nos jornais, páginas inteiras, e assume as suas responsabilidades
declarando que o filme que pretende produzir está perfeitamente em linha com os
valores americanos, e até os exalta; dizendo ainda que o melhor seria que não
se fizessem juízos precipitados antes de se poder ver o filme. E diz mais, ou
insinua mais: talvez o estivessem a atacar a ele quando o verdadeiro alvo dos
ataques devia ser o senador e candidato John Fitzgerald Kennedy que ele
publicamente apoiava. Mas a verdade era que nem ele ensinava a Kennedy como
votar no Senado, nem Kennedy lhe recomendava quem devia ou não devia contratar
para lhe escrever o filme. Estou pronto a
defender os meus princípios e a esperar o veridicto do público americano
depois de ter visto The Execution of Private Slovik.
Foi uma batalha de duas semanas. Sinatra
acaba por ceder e despedir Albert Maltz. Por respeito ao povo americano,
argumenta. Defendi o trabalho de Maltz
porque o entendi consoante com os valores americanos. Mas uma vez que o público
americano pensa que o despedimento de Maltz é uma crucial questão de moral,
aceito a opinião da maioria.
E Maltz sai-se a público a declarar: para fazer mudar de ideias um homem tão
teimoso como Sinatra as pressões sobre ele devem ter sido realmente muito
fortes.
Pois parece evidente que valores mais
altos se levantaram e que Kennedy, por mais que estimasse o apoio de Sinatra,
não ia na conversa de poder perder votos por uma questão de moral americana.
Hedda Hopper vem a dizer que o exército e
o Departamento de Defesa se tinham recusado à colaboração que lhes tinha sido
solicitada para fazer o filme. E a jornalista Dorothy Kilgallen adiantava,
confirmando as mais óbvias suposições, que o próprio Kennedy acabara por
convencer Sinatra a desistir da ideia, pensando que aquela dura campanha contra
o cantor comprometeria as suas aspirações na corrida à Casa Branca.
O grande sucesso da estreia em Nova York
de Exodus (escrito, como disse, por
Dalton Trumbo) interpelou fortemente o público americano quanto à questão da
lista negra. Pelos vistos, resultava a bem da arte cinematográfica americana
pôr a trabalhar gente que apelara à Quinta Emenda, mesmo que fosse, ou só
tivesse sido, comunista, e até porque essa condição já nem tinha reflexos no box office.
Mas atenção que mesmo nos dias seguintes
à estreia de Exodus houve piquetes à
porta dos cinemas a protestar contra o nome de Dalton Trumbo no cartaz; ao
mesmo tempo que no interior dos cinemas quando o nome de Trumbo aparecia no
genérico rebentavam os aplausos. E na recepção que se seguiu à primeira
exibição do filme, no luxuoso restaurante Romanoff, Otto Preminger aparece de
braço dado com Trumbo e é ovacionado pelos presentes, Frank Sinatra e Peter
Lawford (cunhado de Kennedy) entre eles. E além deles, também, a aplaudir
calorosamente, um fervoroso anti-comunista,
uma das primeiras testemunhas amigáveis e favoráveis à expulsão dos
comunistas de Hollywood e à ilegalização do Partido Comunista Americano – Gary
Cooper.
Em 1961 principiava o regresso à ribalta
do espectáculo dos marcados pela lista negra. Lillian Hellman e Guy Endore vêem
os seus nomes nos genéricos. Em 62 é Morris Carnovsky, é Howard da Silva, é
Howard Koch. Hugo Butler em 63. Ring Lardner Jr. e Lionel Stander em 65.
Abraham Polonsky em 67.
A lista negra estava definitivamente
rasgada - a chegada de Kennedy à presidência começara a mudar mentalidades e
com essa mudança mudariam os pressupostos que a tinham feito aparecer.
THE END
THE END
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