sexta-feira, 18 de outubro de 2013

         ESTÁS NA MINHA LISTA NEGRA, DIZ A ZEBRA
        PARA O MOSQUITO
                    (PARTE  I)
                                              


Sentado no banco das testemunhas amigáveis, Gary Cooper respondeu:
            - Sim, aqui e ali, às vezes, ao longo destes anos, tenho ouvido falar… frases do tipo “não achas que a Constituição dos Estados Unidos, escrita há 150 anos, está ultrapassada?”. Ou… “o governo não seria mais eficaz sem o Congresso?”. São frases que me parecem muito anti-americanas.


            -  O senhor Cooper alguma vez achou vestígios de propaganda comunista num argumento que tivesse lido?
            - Bem, sim… de facto, recusei alguns guiões porque…
            - Porquê?
            - Porque me pareceram muito pintados de vermelho.
            - Pode dar-nos exemplos?
            - Não me recordo…
            - Não?
            - Não. Não prestei muita atenção…
         - Mas, um momento, senhor Cooper… o senhor quer fazer-nos acreditar que tem má memória? Para fazer o seu trabalho o senhor deve ter uma excelente memória. Portanto deve lembrar-se perfeitamente de um ou dois títulos de guiões que recusou por achá-los pintados de vermelho, não?
            - Não, não posso mencionar nenhum título…
         O presidente da Comissão para as Actividades Anti-Americanas, John Parnell Thomas, intervém:
           - Pode ir para casa pensar, e fornecer mais tarde à Comissão esses títulos…
           - Não, acho que não – teimou Gary Cooper – Eu leio os guiões à noite, sabe, senhor presidente, e se não me agradam nem os leio até a fim e entrego-os ao autor.
            - É assim que faz a maior parte das estrelas, senhor Cooper?
          - Julgo que sim. Sabe, senhor presidente, não gosto de comunismo. Há anos, o comunismo só era tema de conversa nas reuniões sociais. Recordo-me de ouvir falar nas vantagens daquele regime, em especial para os artistas, para os criativos, que podiam até ter cargos no governo e ganhavam muito acima da média. Lembro-me de ouvir falar de actores russos que tinham três automóveis e viviam em casas muito maiores do que aquela onde eu vivia nesse tempo, em Beverly Hills…
            - E na sua opinião, senhor Cooper, o comunismo em Hollywood está a crescer… ou está em retirada?
          - É muito difícil dizê-lo. Nos últimos meses parece-me que se tornou impopular e é um pouco arriscado falar no assunto. As diferenças relativamente a outros tempos são evidentes… pessoas que exprimiam as suas ideias livremente começaram a fechar-se…
            - O senhor, que é uma personalidade tão importante no cinema americano, que dizia se o Congresso aprovasse legislação que banisse de vez o Partido Comunista dos Estados Unidos?
            - Penso que seria uma boa ideia, ainda que eu não tenha lido Karl Marx e não saiba nada acerca de comunismo, a não ser o que ouço dizer aqui e ali. E o pouco que ouvi sobre o comunismo não me agrada. Em todo o caso… não, acho que não tenho bases para poder responder à sua pergunta.


           E isto ainda antes, muito antes, do dia 9 de Fevereiro de 1950, que é quando o senador republicano Joseph Raymond McCarthy, do Wisconsin, sai do anonimato ao tomar a palavra num comício em Wheeling, e ao agitar para a multidão uma pasta de couro, gritando:
            - Ainda que agora não tenha tempo de citar os nomes de todos os membros do Departamento de Estado referenciados como inscritos no Partido Comunista e membros de uma rede de espionagem comunista, tenho aqui uma lista de 205 nomes que continuam a trabalhar no Departamento de Estado e a influenciar determinantemente as políticas americanas na área dos negócios estrangeiros…
            Na manhã seguinte, ao fazer uma escala no aeroporto de Denver, McCarthy, naturalmente, foi assaltado pelos jornalistas. Queriam a lista dos 205 funcionários de alto risco dos negócios estrangeiros. McCarthy escusa-se, vasculha os bolsos, responde que tinha deixado a lista no avião e que era muito tarde para ir lá buscá-la.
            No comício do dia seguinte, em Salt Lake City, McCarthy volta ao assunto e reitera tudo o que disse.
            - Ontem denunciei a presença de comunistas no Departamento de Estado. Afirmei que só portadores de cartão do Partido Comunista são 57. São espiões, sim! Mas não espiões normais. É gente que ganha 5.300 dólares por mês e que determina o que será a política externa da América.
             O famoso jornalista Walter Lippmann opinava que as acusações de traição, espionagem, corrupção e perversão feitas pelo senador eram notícias que não podiam ser suprimidas ou ignoradas, porque provinham da boca de um senador do Estados Unidos, um homem político que beneficiava de todo o crédito da parte das mais altas instâncias do Partido Republicano.
            Mais tarde, já em 1959, um biógrafo de McCarthy vem afirmar que ele mentiu com quantos dentes tinha e com uma desfaçatez inaudita.
No mundo das artes do espectáculo imediatamente algumas notabilidades se puseram ao lado de McCarthy, casos de Cecil B. de Mille, Walt Disney, Ronald Reagan, John Wayne, Gary Cooper, Clark Gable. De Mille preconizou até um juramento em forma para todo o que pertencesse ou viesse a pertencer ao sindicato dos realizadores, um juramento de fé anti-comunista, e sendo de justiça salientar que Joseph Mankievicz e John Ford de pronto se insurgiram contra as posições e propostas de De Mille.
Mas a coisa vinha muito de trás.          
       
    

                                                                



         
         A criação de uma comissão que combatesse as eventuais actividades anti-americanas data de muito antes das febres inquisidoras de Hollywood. Vem de Maio de 1938. Nasce na Câmara dos Representantes dos EUA. Vive até 1968. Muda de nome nesse mesmo ano. E é extinta em 1975. Mas antes de ser extinta…
            Dos objectivos a perseguir pela dita comissão faziam principalmente parte indagações sobre: 1) a extensão, carácter e finalidades das actividades de propaganda anti-americana; 2) a difusão no interior do país de propaganda subversiva originária ou do estrangeiro, ou de movimentos a actuar internamente com vista a subverter a forma de governo da nação constitucionalmente garantida.
         E que grupos ou associações deveriam ser postas sob a alçada investigatória da Comissão? As primeiras vítimas foram os bund, quer dizer as associações de cidadãos americanos de origem alemã, e o Partido Comunista Americano. E logo a seguir vieram as associações pacifistas pela paz e pela democracia.
        No dia 23 de Outubro de 1939 o FBI prende o secretário geral do Partido Comunista Americano, Eric Browder. Quatro anos de cadeia e 2.000 dólares de multa. Em Outubro de 1940 o Partido Comunista Americano anuncia a ruptura dos seus compromissos com o movimento comunista internacional (Kuomintern), o que não atenua a implacável vigilância do FBI sobre os seus membros e simpatizantes.
            Foi claro para muitos comentadores que a formação e a acção da Comissão para as Actividades Anti-Americanas eram uma forma reacionária de resistência ao ambiente progressista implantado pela administração Roosevelt. A Comissão tornava-se a entidade mais eficaz a concentrar acções de tipo conservador contra Roosevelt e o New Deal.
         (A partir de 1975, quando um acervo documental reservado do FBI foi liberto para consulta pública, tornou-se óbvia a identidade da eminência parda do macarthismo e de todas as comissões inquisidoras. J.Edgar Hoover, o todo-poderoso e maníaco anti-comunista director do FBI.)
            É interessante dedicar umas linhas ao paranóico estado de sítio policial a que foi sujeito em 1938 o Federal Theatre Project, um projecto governamental rooseveltiano que vinha já de 1935, destinado a acorrer aos 17.000 desempregados registados na actividade teatral. Orson Welles e Joseph Losey faziam parte dos quadros artísticos desse classificado ninho de comunistas e radicais de esquerda.
            A Comissão consegue interromper os fluxos financeiros oficiais que mantinham o projecto teatral federal a andar e o projecto é extinto, depois das audiências públicas a que foi submetida a directora, Hallie Flanagan. Flanagan é interrogada pelo congressista do Alabama, Joseph Starnes, nas funções de presidente da Comissão…
            - Um momento – diz Starnes numa das audiências. – Leio num artigo seu que ao citar os operários que participavam no projecto você fala de “uma certa loucura marlowesca”. E eu pergunto quem é esse Marlowe. É um comunista, claro…
            A sala de audiências rebenta à gargalhada, o presidente Starnes bate com o martelo, e a Flanagan responde:
            - Trata-se de Christopher Marlowe, obviamente…
            - Sim, mas diga à Comissão quem é este Marlowe…
         - Pois bem, façam então o favor de averbar na acta que Christopher Marlowe foi o maior dramaturgo inglês no período anterior ao aparecimento de Shakespeare.
            - Sim senhora, fica em acta – concordou Starnes, ajuntando: - Mas talvez também nos tempos da Grécia antiga já existissem comunistas, ou aquele tipo de gente a que hoje chamaríamos comunistas. Não?
            - É possível, senhor presidente…
          - Creio que esse tal de Eurípedes também tenha culpas na… no ensino disso, da consciência de classe… não?
           - Creio que essa acusação poderia ser feita a todos os dramaturgos da antiga Grécia…
            - Bom… fico ciente de que não poderemos nunca dizer quando é que tudo isto começou…

         

        Foi no ano de 1943, achava-se o movimento comunista americano em alta, que um grupo de artistas conservadores e fortemente anti-comunistas fundou uma organização a que chamou The Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals – portanto, Aliança para a Preservação dos Ideais Americanos. Nomes? Alguns. E bem sonantes, por sinal. John Wayne, Robert Taylor, Sam Wood, John Ford, Clark Gable, Gary Cooper. Entre muitos outros menos célebres, está claro, incluindo a mãe de Ginger Rogers.
          Mas dois anos depois um deputado republicano do Mississippi, John Rankin anuncia ao mundo a descoberta de um dos mais terríveis complots para derrubar o governo federal, acrescentando que Hollywood era a mais perigosa ponta de lança da tenebrosa conspiração, por ser de toda a a América o mais perigoso cóio de comunistas e demais subversivos.
          Jack Warner, o produtor, pretendia que estava na hora de a América acordar e recomendava uma inquisição severa contra os vermelhos. Enquanto outro produtor menos famoso e mais razoável, Eric Johnston, minimizava o caso, digam lá aos rapazes que não se preocupem. Nunca será feita nenhuma lista negra. Não nos vamos tornar totalitários só para agradar àquela Comissão.
       - O senhor sabe que o regime hitleriano aprovou disposições que ilegalizaram o Partido Comunista e mandaram os seus militantes para a prisão, não sabe? – pergunta o investigador da Comissão McDowell ao produtor Jack Warner. – Estaria o senhor de acordo se medidas iguais fossem promulgadas nos Estados Unidos?


            - Toda a gente sabe quais foram as consequências desse tipo de medidas – respondeu Jack Warner sem responder.
            - Sim, se nós, enquanto deputados, aprovassemos uma lei semelhante acha que seria uma medida correcta ou não?
            - Como simples cidadão sou a favor de qualquer coisa que seja boa para os americanos…- continuou Warner a não responder.
            - Senhor Warner… fazer do Partido Comunista uma organização ilegal, é o que quero dizer…
            - Sim sou a favor de fazer do Partido Comunista uma organização ilegal – respondeu Jack Warner por fim.
       “Expulsa o diabo deste País, Harry!”, gritou o republicano Arthur Vandenberg numa sessão do Senado.  E o presidente Harry Truman, a 21 de Março de 1947, emite a Executive Order 9835, que faz arrancar o Federal Employees Loyalty, um programa governamental que transforma em suspeitos de conspiração os 2.500.000 funcionários públicos americanos, daí em diante sujeitos a inspecções especiais de segurança. Este programa vai lavar a nódoa comunista do Partido Democrático, proclama Harry Truman, referindo-se ao que chamou de sombra vermelha que o New Deal teria posto a pairar sobre o partido.
       E é em 1947 que a indústria cinematográfica americana sediada em Hollywood começa a ser alvo das indagações da Comissão para as Actividades Anti-Americanas, em colaboração estreita com o FBI, e no sentido de identificar quem, no mundo do cinema, nutria as tais simpatias comunistas. E as primeiras personalidades postas sob suspeita foram as que nalgum momento da sua vida se tinham deixado conotar com movimentos progressistas, sindicatos infiltrados ou com causas consideradas progressistas – movimentos anti-fascistas ou movimentos de auxílio à República Espanhola, por exemplo.
            Pode dizer-se que até às inquirições de 1947 os comunistas (ou tomados como tal) de Hollywood gozavam de assinalável popularidade. O grupo comunista a trabalhar em Hollywood dá as primeiras notícias de si em 1937, no dia em que o argumentista John Howard Lawson organiza a primeira reunião da célula do PC na capital do cinema, o que vem a dar força à formação de grupos de diversa orientação ideológica, como o Hollywood Democratic Commitee, a Hollywood Anti-Nazi League ou a United American Spanish Aid Commitee.
            Na literatura do PC distribuída aos militantes da indústria do cinema podia ler-se que o Partido se propunha continuar as tradições de Jefferson, Payne, Jackson e Lincoln; que o Partido defendia a Constituição dos EUA por acção de um governo do povo para o povo… o Partido afirma-se pela abolição da exploração do homem pelo homem, de uma nação por outra nação, de uma raça por outra raça. Aspiramos a um mundo de fraternidade humana, sem opressão e sem guerra.
            Nem uma linha sobre revolução, violência ou terrorismo. Em suma, como diria o realizador (militante comunista mais tarde arrependido e delator) Edward Dmytryk, era difícil encontrar-se retórica mais imbuída do espírito do americanismo.
            Mesmo na esfera dos empregadores/produtores de Hollywood havia quem se opusesse às inquisições da Comissão. Quem poderia alguma vez provar que um homem era comunista ou não era comunista? Será uma comissão qualquer, ou um simples produtor, a poderem arrogar-se o direito de estipular quem é e quem não é comunista? A indústria de Hollywood teria todo o direito a defender-se contra tais intromissões, e a defender antes de tudo o mais a sua liberdade e a sua autonomia.
            Em Julho de 1947 dois homens da Comissão para as Actividades Anti-Americanas deslocam-se a Hollywood e põem tudo em pratos limpos: Hollywood tinha sessenta dias para se livrar dos subversivos; se não o fizesse seria submetida a duras inquirições; se não o fizesse os próprios estúdios seriam tomados como responsáveis por toda e qualquer infiltração comunista na indústria cinematográfica.
            41 individualidades são postas sob investigação em Setembro de 1947. Entre elas lá estavam (só para falar dos mais conhecidos) Berthold Brecht, Charles Chaplin, Walt Disney, Lewis Millestone; Clifford Odets, Dalton Trumbo, Ronald Reagan, Samuel Goldwyn, Louis B. Mayer, GaryCooper.
Ao mesmo tempo desenvolve-se a oposição aos trabalhos da Comissão. Dezanove pessoas intimadas a comparecer perante a Comissão recusam-se a cooperar. Os argumentistas Alvah Bessie, Herbert Bieberman, Lester Cole, Richard Collins, Gordon Kahn, Howard Koch, Ring Lardner Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Waldo Salt, Adrian Scott, Samuel Ornitz, Irving Pichel – além do já citado Dalton Trumbo -, os realizadores Robert Rossen, Edward Dmytryk, o actor Larry Parks.
Reunem-se em casa de Edward G. Robinson para definir uma estratégia de defesa. Passam a ser chamadas “testemunhas hostis” e são apontadas como os Dezanove de Hollywood – que já não eram dezanove, pois Berthold Brecht tinha-se posto de parte, uma vez que era estrangeiro e pretendia seguir uma diferente linha de defesa; e que passariam depois a ser dez, os famosos Dez de Hollywood, quando alguns deles se arrependeram, desertaram e se dispuseram a colaborar amistosamente com a Comissão denunciando os amigos.
            Trata-se de um método fascista – declara o argumentista Albert Maltz -, destroi-se a vida de uma pessoa de forma a que o medo possa constranger ao silêncio e à impotência outras mil pessoas.
         Evidentemente que os Dezanove de Hollywood não reconheciam à Comissão maior autoridade do que reconheceriam ao Ku Klux Klan ou ao Partido Nazi Americano.
            As reacções de protesto ao trabalho da Comissão tentavam organizar-se. Era criado um denominado Comité para a Primeira Emenda Constitucional – quer dizer, para fazer funcionar a Primeira Emenda: O Congresso não fará leis que permitam o reconhecimento oficial de qualquer religião, ou que proíba o livre culto, ou que limite a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito que os cidadãos têm de reunir-se de forma pacífica, ou de enviar petições ao governo para reparação de danos sofridos.

                                  

 À cabeça desse comité estiveram os realizadores John Huston, William Wyler e Phillip Dunne. Puseram um anúncio no Variety e os apoiantes do comité aumentaram dos primeiros 35 nomes para 332. Entre eles algumas individualidades cinematográficas e culturais de primeira água como John Ford, Billy Wilder, George Stevens, Elia Kazan, Humphrey Bogart, Gregory Peck, Katherine Hepburn, Danny Kaye, Rita Hayworth, Kirk Douglas, Henry Fonda, Burt Lancaster, Benny Goodman, Thomas Mann, Leonard Bernstein…


           Charlie Chaplin é convocado em Setembro de 1947 para prestar declarações. A sessão é adiada por três vezes. Nas vésperas de nova convocação, a Comissão recebe um telegrama de Chaplin: não sou comunista, nunca estive inscrito em nenhum partido ou organização política em toda a minha vida. A Comissão responde: a comparência de Charles Chaplin não será necessária e o dossier Chaplin será encerrado.
            Mas Chaplin subscreve um apelo a favor dos Dez de Hollywood e recebe nova convocatória para prestar declarações. Uma convocatória que por acaso o apanha a bordo de um navio que o leva a Inglaterra.
         Chegado à Europa, Chaplin vai para a Suíça, e de caminho passa pelo consulado americano em Lausanne, onde faz saber para os devidos efeitos que não tem a mínima intenção de voltar a pisar solo americano, e nessa conformidade não poderá apresentar-se perante a Comissão.
            O mais inequívoco e duro que até essa altura a Associação dos Produtores de Cinema produziu foi estabelecer que se a indústria do cinema tivesse cometido algum crime deveria saber de que crime se tratou. A não ser assim, recusava qualquer colaboração com a Comissão.
      A primeira audiência pública da Comissão para as Actividades Anti-Americanas no respeitante à indústria do cinema teve lugar na manhã do dia 20 de Outubro de 1947, na Old House Building, em Washington. Dos interrogadores, além do presidente John Parnell Thomas, fazia parte outro nome que viria a dar muito que falar anos mais tarde, Richard Nixon.


            A sala estava à cunha de fans do cinema para ver o Gary Cooper, o Menjou, o Robert Taylor, o Ronald Reagan em carne e osso. À cunha também de comentadores políticos e de mais de uma centena de repórteres. Era mais um show de Hollywood.
            Os deputados federais envolvidos haviam optado por ouvir primeiro as testemunhas ditas amigáveis e cooperantes (por oposição às consideradas hostis). Testemunhariam Sam Wood, realizador muito conhecido na época, Louis B. Mayer, Leo McCarey, Adolphe Menjou, Robert Taylor, Robert Montgomery, Ronald Reagan, Walt Disney, Jack Warner e GaryCooper.
            Interessante verificar que na conversa do cidadão Ronald Reagan de 1947, então apenas actor (mau), ou, aliás, também presidente do Sindicato dos Actores e secreto informador do FBI, já se distinguía o político preparado e profissional que viria a ser. Foi, pelo menos às primeiras, uma testemunha amigável indiscutivelmente, e cooperativa com a Comissão, todavia equilibrada e coerente com as cartilhas próprias e com os princípios ideológicos em que fazia fé, a democracia liberal.
            - Sabe se algum dos outros dirigentes sindicais é membro do Partido Comunista? – indaga o procurador Stripling.
            - Não senhor. As minhas funções de presidente do sindicato não incluem poderes investigatórios. Não sei.
            - Mas ouviu falar, ouviu dizer que alguns dos sindicalizados eram membro do Partido…
        - Isso sim. Ouvi. E participei em discussões em que alguns se diziam comunistas.
            - E acha que tinham intenção de manipular o sindicato no sentido…
            - Tentavam fazer valer os seus pontos de vista próprios. Mas tenho que dizer que se eles tentaram manipular o sindicato também nós o tentávamos afirmando igualmente os nossos pontos de vista. E pelos números é fácil verificar: 90% dos sindicalizados votaram pela nossa política. Sabe, a maioria de nós percebe o que está a acontecer, mas entendo que dentro dos limites impostos pelo respeito dos direitos democráticos, e sem que os tenhamos alguma vez violado, fizemos o nosso trabalho para conter as políticas desses senhores. Para além do mais devemos reconhecê-los como militantes de um partido político. Nada mais. E a melhor oposição a essas pessoas é deixar que a democracia funcione.
            Perguntado sobre a possível ilegalização do PC americano, Reagan quase foi lapidar como democrata convicto:
            - Se o Partido Comunista Americano deve ser ilegalizado? Bem, senhores, isso terá que ser uma decisão do governo. Como simples cidadão, tenho dúvidas se é justo ilegalizar um partido apenas com base na sua ideologia política. Não gosto do Partido Comunista, mas gosto menos das tácticas dos comunistas. No entanto, tenho que dizer que não gostaria, enquanto cidadão, de ver a nação comprometer princípios de tolerância democrática por razões de medo de um determinado grupo de outros cidadãos. Só a plena democracia pode resolver essas coisas.


Pode-se mesmo dizer que a Comissão definia para Hollywood uma espécie de retrato-robot psicológico e comportamental das personalidades que procurava inculpar como subversivos: que fosse um tipo bem falante com ideias progressistas, que tivesse prestígio e audiência enquanto membro da inteligentzia cinematográfica – ouro sobre azul se tivesse ascendência judaica. Estranho, note-se, para uma nação que havia combatido heroicamente por esse mundo o nazismo, o fascismo e os valores anti-semitas. Mas era assim. Muitos dos que mais levaram a peito correr com os vermelhos da América confessaram-se abertamente anti-semitas, anti-negros, homofóbicos, ou, simplificando, todos os tipos pessoais não inscritos nos modelos Wasp (White Anglo-Saxon Protestant).
- Sim, creio que, em certas circunstâncias, um realizador comunista, ou um argumentista comunista, possam introduzir comunismo ou ideias subversivas num filme, ainda que as ordens que tenham sejam para se abster de duplos sentidos passíveis de leitura política – declarou o actor Adolphe Menjou à Comissão. – Um olhar, uma inflexão, uma mudança de tom de voz. Pode fazer-se com facilidade.
            - Já viu fazer?
            - Não, não vi. Mas acho que pode ser feito.
            - Ainda ontem o senhor Sam Wood nos indicou um dos que tentaram levar o sindicato dos argumentistas para a órbita comunista. Diga-nos, senhor Menjou, pensa que o senhor John Cromwell é comunista?
            - Ah sim, comporta-se terrivelmente como comunista!


            Um dos mais recalcitrantes dos deponentes hostis foi o argumentista John Howard Lawson (aliás, membro evidente do PC), o primeiro a ser chamado à pedra, no dia 27 de Outubro de 1947, e fazendo saber ao presidente da Comissão, John Parnell Thomas, que tinha uma declaração escrita para apresentar e para ser incluída na acta do interrogatório. O presidente Thomas pede-lhe o papel. Lawson entrega o papel. O presidente Thomas passa-lhe uma vista de olhos e diz:
            - Não me interessa continuar a ler isto. A Comissão não autoriza que esse documento seja incluido na acta.
            Lawson acusa:
           - Os senhores passaram uma semana a caluniar-me perante a opinião pública americana…
            - Um momento…
            - … e agora recusam-me o direito de ler uma declaração sobre os meus direitos de cidadão americano…
            O presidente contrapôe:
           - Li a primeira frase e chegou. Chegou para determinar que a sua declaração não é pertinente para este inquérito.
            Lawson recalcitra:
       - Os direitos de cidadania americana nesta sala são pertinentes e importantes, e eu insisto em defender os meus direitos…
            Os submetidos a interrogatório da Comissão (os chamados hostis) tinham instruções dos respectivos advogados (e sabe-se lá se do próprio Partido) para não se recusarem a responder às perguntas. A cada pergunta deveriam procurar tergiversar, alegando que estavam a responder à pergunta, sim, mas à sua maneira.
            - Nome e apelido, se faz favor.
            Lawson seguia à risca as instruções.
        - Quero protestar contra a proibição de ler uma declaração quando os senhores permitiram que o senhor Jack Warner e o senhor Louis B. Mayer lessem declarações nesta mesma sala…
            - Nome e apelido…
            - O meu nome é John Howard Lawson.
       Seguiu-se uma cansativa teima, responder, não responder, porquê responder, que direito; toda a pergunta que, directa ou indirecta, versasse a filiação sindical ou política das testemunhas era um abuso dos poderes da Comissão; competia à Comissão e não a ele, Lawson estabelecer as competências da própria Comissão; os direitos de cidadania dele, Lawson, não eram menos importantes do que as competências da Comissão…
            - Estou a ser tratado de maneira diferente das outras testemunhas.
            - O senhor não está nada a ser tratado de maneira diferente…
            - As outras testemunhas puderam ler as suas declarações e eu não…
       - Compete à Comissão determinar quem deve e quem não deve ler as declarações…
            Lawson tinha-se na conta de bom americano e pretendia não se deixar intimidar. Tivera alguma função de responsabilidade no Sindicato dos Argumentistas? A pergunta era ilegal, mas Lawson admitia que sim. Então que indicasse à Comissão dois ou três títulos de filmes de que tivesse escrito os argumentos. Não, não indicaria coisíssima nenhuma. Eles estavam a entrar nos terrenos da liberdade de imprensa e de comunicação e não tinham esse direito. Além de que não havia necessidade de o fazerem vir de Hollywood a Washington para saberem quantos e quais filmes ele escrevera. Foi membro do Partido Comunista Americano? Não, a questão comunista não tem a ver com este inquérito, que aliás não passa de uma tentativa de coarctar a liberdade de expressão no cinema e ferir os direitos fundamentais… o presidente batia com o martelo… Lawson não se calava… é vedado a qualquer Comissão ferir os direitos, privilégios e imunidades de um cidadão (Lawson tinha sido estudante de Direito), o presidente Thomas ordenava silêncio e Lawson acusava-o de usar uma técnica já usada por Hitler na Alemanha só para meter medo…


            - Senhor Lawson… ou se cala por um momento ou faço-o expulsar desta sala por ultraje. E o senhor sabe o que já aconteceu a quem ultrajou esta Comissão…
        - Fico satisfeito, senhor presidente, por ter deixado claro a todos os presentes que o que o senhor quer é ameaçar e intimidar as testemunhas…
          - Senhor Lawson, responda…o senhor é ou foi algum dia militante do Partido Comunista Americano?
           - É triste e trágico que seja eu a ensinar a esta Comissão os princípios basilares do Direito americano…
            O presidente bate com o martelo.
            - A pergunta é: o senhor é ou foi, militante do Partido…
            Lawson não o deixa acabar:
         - E eu estou a enquadrar a minha resposta no único modo em que um cidadão americano pode enquadrar uma resposta a uma pergunta que absolutamente viola os seus direitos.
            Este primeiro confronto inamistoso entre um dos Dezanove de Hollywood e a Comissão dividiu a opinião pública e o pessoal da indústria em duas facções. E quando o ex-agente do FBI Louis J. Russell aparece na sala das audiências provido de provas "irrefutáveis" da filiação de Lawson no Partido Comunista Americano já grande parte da opinião pública não tinha dúvidas a esse respeito.
            O agente Russell avançou com uns papéis enquanto Lawson era arrastado pelos polícias para fora da sala, chamando aos gritos a Comissão de nazi. Havia, disseram, cerca de trinta e cinco indícios claros da pertença de Lawson ao PC. Artigos dele no Daily Worker (o Avante do PC americano) e no New Masses (jornal esquerdista muito popular então) e militância numa dúzia de associações cívico-políticas, Liga Anti-Nazi de Hollywood, Comité Democrático de Hollywood, nomeadamente, e que cheiravam à légua a Partido Comunista. Como argumento final e esmagador, o agente Russell levantou para a assistência o cartão de membro do Partido em nome de John Howard Lawson.
            Era uma prova aparentemente esmagadora. Ninguém sabia, pelo menos por enquanto, que o Partido Comunista Americano não passava cartões, por assim dizer, aos seus filiados, e precisamente para que esses cartões, uma vez confiscados, não os pudessem comprometer e incriminar mais cedo ou mais tarde. Uma prova falsa, por conseguinte.
            O mais famoso argumentista de Hollywood, e o mais bem pago, 75.000 dólares por argumento, era Dalton Trumbo, que foi chamado a depor a 28 de Outubro desse ano de 47. Também ele tinha uma declaração escrita para ler à Comissão.


            - Um momento. Mostre lá – pede o presidente.
            Trumbo apresenta o documento, o presidente passa os olhos pelo papel e indefere o pedido. Como sucedera com Lawson, a declaração era julgada pouco pertinente para o inquérito.
            - O senhor presidente não acha pertinente? Não me diga que eu troquei os papéis e lhe dei a ler as páginas de algum argumento cinematográfico dos meus…
            Há risos na assistência e marteladas do presidente.
            - Silêncio ou mando evacuar a sala!
       Caso curioso – sinistramente curioso – foi o da Comissão nunca se ter preocupado em analisar os trabalhos dos acusados de comunismo, ou mesmo dos filiados no partido, em busca de evidências quanto aos sinais de propaganda esquerdista que esses eventualmente pudessem ter feito sub-repticiamente passar através dos seus trabalhos, fossem eles argumentistas, realizadores ou actores.
            Claro que mesmo que a Comissão se tivesse dado a esse trabalho a busca teria sido infrutífera. Ou seja, a Comissão deveria saber de sobejo que era impossível a um argumentista ou a um realizador fazer passar mensagens de propaganda comunista em filmes que eram sujeitos a sucessivas apreciações, visionamentos e análises dos chefões da Paramount, da MGM, de RKO ou da Universal – já para nada dizer das estruturas censórias ou dos códigos moralistas cívicos e religiosos. Isto para argumentistas e realizadores. Quanto a actores, nem valeria a pena falar, ou investigar de que modo um actor, que debita o que outros (argumentistas) escreveram, e que se move segundo as directivas de outros (realizadores), pudesse fazer passar propaganda que não fosse a dos valores americanos.
          Suponho que todos eles, aliás, ou pelo menos os mais notórios, se puseram à disposição da Comissão para a análise dos seus trabalhos, à procura dos vestígios de propaganda esquerdista. Dalton Trumbo, o mais famoso dos argumentistas da época fê-lo, disponibilizou-se para esse escrutínio, e o então presidente da Comissão, John Parnell Thomas, pergunta-lhe pela extensão de um dos argumentos que escrevera. Entre 115 e 170 páginas, respondeu Trumbo. Era demasiado. Não havia vagar nem paciência para uma indagação do género.
            - O senhor Trumbo é membro do Sindicato dos Argumentistas?
            - Parece-me óbvio, senhor presidente, que uma pergunta desse tipo há-de ter por objectivo identificar-me com o sindicato e a seguir identificar-me com o Partido Comunista…
            - Limite-se a responder sim ou não à minha pergunta. É ou não membro do Sindicato dos Argumentistas, senhor Trumbo?
            - É que a sua pergunta tem uma dupla finalidade…
            - Quer fazer-me a cortesia de responder…
            - Os senhores querem estabelecer uma ligação entre o sindicato e o…
            - Repito: o senhor é ou não é membro…
            - A pergunta visa atacar o sindicato…


            Martelo do presidente na mesa e presidente a gritar que é a última vez que repete a pergunta. Mas Trumbo também levanta a voz: os direitos dos trabalhadores americanos à inviolabilidade das suas filiações sindicais foram conquistados à força de muita fome e muito sangue derramado. A pergunta obrigaria um trabalhador americano filiado num sindicato a identificar-se como tal e a ser sujeito a intimidações futuras, pelo que a pergunta era de entender como inconstitucional.
            - Seja pois vertido para os autos que a testemunha se recusa a responder. Passemos então adiante. Senhor Trumbo, o senhor é, ou foi, membro do Partido Comunista Americano?
            - Bem, senhor presidente… creio ter o direito de saber quais são as provas que o senhor tem para justificar uma pergunta desse tipo.
            - Ai quer saber?
            - Quero. Claro que quero.
            - Pois saberá em breve. Façam favor de retirar a testemunha. É impossível.
            Trumbo grita:
        - Isto é só o princípio! - o presidente martela. – Isto é só o princípio da criação de campos de concentração nos Estados Unidos!
            Era uma táctica comunista. Não havia dúvidas - segundo o parecer do presidente  Parnell Thomas.
Trumbo foi levado da sala e houve palmas e novas marteladas do presidente.
            A publicidade negativa que as inquirições da Comissão para as Actividades Anti-Americanas suscitou impunha mudanças tácticas. Assim, a recusa das declarações escritas das testemunhas foi um estratagema entretanto abandonado pela Comissão. Albert Maltz e Alvah Bessie, dois dos Dez de Hollywood, duas das testemunhas hostis arroladas, já foram autorizados a ler as declarações que traziam escritas, Maltz na totalidade e Bessie começando por ser autorizado a ler só dois parágrafos, mas acabando por ler a declaração toda.
            - Sou escritor – declara Albert Maltz.
            - Mas trabalha no mundo do espectáculo…
       - Escrevo para viver e aceitei algumas ofertas de trabalho no mundo do espectáculo, sim senhor.
            - Argumentos para filmes…
            - É um facto do domínio público.
            - Pertence então ao Sindicato dos Argumentistas…
      - Bom, não tarda nada perguntar-me-á a que grupo religioso pertenço…
            - Não, senhor Maltz, isso não lhe perguntarei…
       - Qualquer coisa parecida perguntará, tenho a certeza,  e como óbvia tentativa de prevaricar nos meus direitos constitucionais.
            - Recusa então responder se é filiado no Sindicato dos…
           - Não, não recuso. Pelo contrário, sublinho que depois me perguntará se sou membro de uma certa confissão religiosa e depois irá alegar que sou trabalhador de uma indústria porque pertenço a um grupo de que os senhores não gostam…
            - Senhor Maltz, o senhor recusa responder…
            - Eu estou a responder à pergunta…
            - É membro do Partido Comunista, senhor Maltz?
            - É o que eu digo. Depois virá a religião. E depois farão pressões sobre alguns notáveis da indústria porque a minha religião não vos agrada e por isso eles não me deverão dar trabalho…
            - Façam retirar a testemunha. Ofende a comissão com os seus duplos sentidos. Segue a típica linha comunista…
            O agente Russell volta a aparecer, já com uma longa lista de organizações subversivas de que Albert Maltz faria parte. E por fim, o número sacramental do cartão de militante do Partido Comunista.
           Outro argumentista, outro dos Dez de Hollywood, vem a seguir. As mesmas perguntas do presidente, as mesmas tergiversações da testemunha em torno dos direitos constitucionais, as mesmas pseudo-respostas evasivas.
            - Seja averbado nos autos que a testemunha recusa responder se está ou não inscrita no Sindicato dos Argumentistas. E agora pergunto: é, ou foi, membro do Partido Comunista?
            Resposta do argumentista Alvah Bessie:
          - O general Eisenhower recusou recentemente responder a uma pergunta sobre as ideias políticas que perfilhava, e o que é um procedimento admissível ao general, terá que ser um procedimento admissível para mim, senhor presidente.
            Houve palmas. Houve as marteladas do presidente, que gritou basta! A testemunha que fosse posta fora da sala, que fosse fazer os seus bonitos discursos para o campo, para as árvores.
            - Estou convencido – reflectiu o presidente – de que se o general Eisenhower testemunhasse perante esta Comissão e alguém lhe perguntasse se era filiado no Partido Comunista ele seria muito pronto a responder, e mais: sentir-se-ia gravemente insultado pela pergunta. E insultado por uma razão: um grande homem como o general Eisenhower não admitiria nem em sonhos transformar-se num vil comunista.
            E entrou o agente Russsell com as suas provas irrefutáveis e o respectivo cartão do partido passado em nome de Alvah Bessie.
            E assim por diante com Herbert Bieberman, com Samuel Ornitz.
            No dia 29 de Outubro, o realizador Edward Dmytryk e o produtor Adrian Scott estão perante a Comissão, especificamente acusados de ter colaborado no filme Crossfire, considerado um libelo contra o anti-semitismo.
            O andamento do interrogatório correu os mesmos trâmites, com as mesmas manobras de diversão dos interrogados nas perguntas de tipo político-sindical. Dmytryk estava particularmente tenso. Viria a ser um arrependido dos Dez de Hollywood e viria a ser-lhe concedida nova audiência em 1951.
            - Quanto tempo pensa o senhor Dmytryk que lhe seja preciso para responder se está ou não inscrito no Sindicato dos Realizadores? Cinco minutos? Não são precisos cinco minutos para responder sim ou não.
            - Senhor presidente… não há muitas perguntas a que se possa honestamente responder só com um sim ou com um não…
            - Se precisa de um período mais largo de tempo é porque há alguma coisa de errado no caso… o senhor é, ou foi, filiado no Partido Comunista?
            - Essa pergunta contende com os meus direitos constitucionais…
            - Então recusa responder…
            - Não, não recuso responder. Aliás, já respondi. E respondi dizendo que os senhores não têm o direito de me perguntar…
            - A testemunha está dispensada.
       O mesmo jogo com Ring Lardner Jr., se é comunista, se pertence ao sindicato, eu respondo à minha maneira, isso não é resposta, estou a tentar responder, queremos um sim ou um não…


            Berthold Brecht mudou substancialmente o tom e o ritmo das audiências. No dia 30 de Outubro. Acompanhado por um tradutor da confiança da Comissão. Chamo-me Berthold Brecht, vivo no 34 da Rua 73 Oeste de Nova York e nasci em Augsburg a 10 de Fevereiro de 1898.
            (Tenho o depoimento integral de Brecht, mas ficaria maçudo se o pusesse aqui na íntegra. Vou-me limitar a alguns dos trechos mais significativos.)
            Brecht começou por fazer um longo discurso sobre a moderna História da Alemanha, detendo-se em especial, claro, no período da ascensão do nazismo. Perguntam-lhe se é cidadão americano. Não. Não é, mas pediu a cidadania em 1941, logo que chegou aos EUA…
            É interrogado pelo comissário Stripling.
            - O senhor comparece perante esta Comissão em resposta a uma citação do dia 19 de Setembro. Correcto?
            - Sim.
            - Então posso repetir-lhe a minha pergunta original: é, ou foi, membro de um Partido Comunista de qualquer país?
         Era a pergunta que interessava verdadeiramente à Comissão, como é sabido. Não lhe pergunta se é do Sindicato dos Argumentistas por ser estrangeiro e porque os sindicatos de Hollywood só admitiam argumentistas americanos nas fileiras.
            - Ouvi os meus colegas considerar imprópria esta pergunta, mas na minha qualidade de hóspede deste país, e não querendo abordar questões de tipo legal, responderei da maneira mais completa que me for possível… não sou, nem nunca fui, filiado em nenhum partido comunista.
            - Nem no alemão?
            - Não. Nem no alemão.
            - Mas escreveu coisas muito revolucionárias…
            - Escrevi poesias, canções e dramas durante a luta contra Hitler. Por isso poderia ser considerado revolucionário, porque, é claro, era a favor do derrube de Hitler…
       Esta pergunta do comissário Stripling poderia levar a conotações da Comissão com a polícia política nazi. Por isso o presidente Parnell Thomas interveio a temperar as inépcias do seu colega.
            - Não nos interessam os trabalhos que possam ter sido produzidos para derrubar Hitler ou qualquer outro governo de outro país. Mas diga-nos, senhor Brecht, quantos dos seus trabalhos são baseados nas filosofias de Marx e Lenine?
         - Claro que os estudei, como seria natural para um escritor que deseja escrever peças históricas. Não acredito que se possam hoje escrever peças inteligentes sem os estudar. Aliás, a História que se escreve neste momento é profundamente influenciada pelos estudos históricos de Marx…
       - Então… desde que está nos Estados Unidos alguma vez frequentou reuniões do Partido Comunista?
            - Não creio.
            - Não crê?
            - Não.
            - Não tem a certeza?
            - Tenho a certeza.
      - Tem a certeza de nunca ter tomado parte em reuniões do Partido Comunista?
            - Sim. Estou cá há seis anos. Não me lembro de ter estado alguma vez em reuniões políticas…
            - Não digo reuniões políticas, digo reuniões do Partido Comunista…


            Subtilmente, Brecht induzia o interrogador a definir as reuniões do Partido Comunista como reuniões não-políticas.
            - Não creio…
            - Não tem a certeza?
            - Creio que tenho a certeza.
            - O senhor crê que tem a certeza?
            - Sim, não participei em nenhuma reunião…
          O comissário pergunta-lhe se, nos EUA, alguma vez se teria encontrado com representantes do governo soviético, e ele diz que sim, quando em Hollywood tinha sido algumas vezes convidado com outros escritores para recepções no consulado soviético.
            - Outros escritores? Que escritores?
            - Artistas, actores… havia festas…
            - Alguma dessas pessoas do consulado soviético o visitou a si?
            - Não me parece.
        - Grigori Kheifets visitou-o no dia 14 de Abril de 1943? Era o vice-cônsul soviético. Conhece-o, claro…
            - Grigori Kheifets? Não me recordo do nome, mas pode ser que conheça…
            - 14 de Abril de 1943.
            - Pode ser.
            - E depois a 27 de Abril, e outra vez em 16 de Junho de 1944…
            - Pode ser. Não me lembro desse nome, mas… algum adido cultural…
            - Que queriam? Que foram fazer a sua casa?
          - Contactos literários com artistas alemães, alguns dos meus amigos. Em Moscovo…
            - Escritores alemães? Em Moscovo?
            - Sim, em Moscovo. A editora do Estado publicou traduções das minhas peças e alguma da minha poesia.
            - Senhor Brecht…quando o senhor entrou neste país não fez nenhuma declaração nos serviços de emigração…
            - Declaração?
            - Sobre as suas filiações políticas do passado…
          - Não me lembro. Fiz uma declaração, sim, penso que de rotina, declarei que não pretendia derrubar o governo dos Estados Unidos. Pode ser que me tenham perguntado se pertencia ao Partido Comunista, não me lembro, mas se assim foi disse-lhes exactamente o mesmo que vos disse há pouco…
            - Que nunca esteve filiado.
            - Exactamente.
            - Perguntaram-lhe se tinha estado alguma vez na União Soviética?
            - Sim, e eu respondi que sim.
            - Fizeram-lhe perguntas sobre os seus escritos…
            - Não, não houve nenhuma discussão literária…
            Brecht dir-se-ia que toureava a Comissão nas suas respostas, a um tempo dúbias e taxativas. E houve dúvidas quanto à tradução de uns textos dele chamados para a conversa. E perguntaram-lhe sobre outro imigrante alemão, o músico Hans Eisler. E voltaram à carga com o Partido Comunista…
           - O senhor Brecht fez algum pedido para ser admitido no Partido Comunista Americano?
            - Não percebo a pergunta. Se eu…
            - Pediu para entrar para o Partido Comunista…
            - Não, não, não, nunca… pode ser que alguém me tenha sugerido alguma coisa parecida, mas eu sabia que não era nada que me conviesse…
            - E quem lhe sugeriu que entrasse para o Partido?
            - Alguns leitores…
            - Quem?
          - Pessoas do grande público… que leram poesia minha. Compreenda-se que não foi uma abordagem formal.
        O advogado de Brecht meteu-se na conversa para esclarecer que o seu cliente se referia a factos passados na Alemanha e que o presidente Thomas persistia em interpretar como factos já passados na América. Será que Brecht se lembrava de alguém que o tivesse instigado a entrar para o Partido Comunista Americano? Brecht não se lembrava.
       Mas as ligações de Brecht ao cinema de Hollywood eram escassas, escassíssimas. Tinham chamado Brecht na sequência de um interrogatório ao já citado compositor alemão imigrado, amigo e colaborador dele, Hans Eisler, que trataram abaixo de cão durante a audiência. Eisler tinha composto música para alguns trabalhos de Brecht, Eisler era comunista, logo, Brecht também era comunista. Muito simples. Simples e verdadeiro, claro, porque Brecht era mesmo comunista. O que não era era um militante activo. E os homens da Comissão nunca chegaram a conclusões. Era intelectualmente sofisticado demais para eles.


       Terminada a audiência a Brecht, os interrogatórios públicos foram suspensos. Naquela primeira fase tinham sido ouvidas 39 testemunhas, mas ainda havia mais gente para depor. Na opinião da própria Comissão aquelas audiências tinham provado à saciedade (e à sociedade) a utilidade dos trabalhos. Tinham sido chamadas ao banco das testemunhas dez personagens de relêvo na indústria do cinema das quais havia provas de comunismo, tinham sido acusadas e nem sequer tinham negado as acusações.
            Mas nunca se soube bem bem o  porquê de as audiências terem sido interrompidas. É verdade que a maioria dos media se mostrara crítica dos métodos empregados, e pode ter sido por isso que o presidente John Parnell Thomas decidira fazer uma pausa. Mas se fez uma pausa não foi certamente pela influência do já falado Comité para a Primeira Emenda capitaneado por John Huston, e não obstante as adesões ao referido comité já se contarem por 500, entre figuras do mundo do espectáculo – embora houvesse opiniões de que a Comissão se temera com a ameaça do comité de organizar uma marcha de celebridades artísticas a Washington.
            No final dessa primeira leva de interrogatórios, o Comité para a Primeira Emenda fez publicar na imprensa um comunicado a condenar os processos da Comissão e a apoiar as testemunhas chamadas hostis. Entre os subscritores do comunicado, estavam, para além de Huston, Larry Adler, Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Geraldine Brooks, Ira Gershwin, Sterling Hayden, Gene Kelly, Danny Kaye – segundo alguns, o comunicado não teve outra utilidade senão a de fornecer à Comissão mais uns quantos nomes a investigar por actividades anti-americanas…


            Entretanto, nove dos interrogados eram considerados culpados de ultraje e de vilipêndio à Comissão e iam dar com os ossos na enxovía. Ainda que esta Comissão, devido às limitações de tempo e de recursos, não tenha podido examinar cada frase dos alegados activistas comunistas na indústria do espectáculo, o perfil e a estratégia de tais activistas e de tais actividades foram claramente evidentes para todos.


          E como explicar que dos conhecidos 79 implicados que o presidente Thomas tinha na sua lista de suspeitos, 69 deles tivessem sido deixados livres de continuar a desenvolver as respectivas actividades, incluindo cívico-políticas, até 1951? Faz pensar que as audiências daquele ano de 47 não quisessem efectivamente erradicar o comunismo de Hollywood mas tão somente impressionar o público americano e assim inaugurar um certo tipo de categoria política, o anti-comunismo militante, e estabelecendo que para se ser anti-comunista não eram precisos atributos específicos, bastava dar uma impressão de defensor estrénuo do americanismo.


            Uma grande figura da cultura mundial, Thomas Mann, emigrado nos EUA, decidiu intervir e levantar o nível intelectual da controvérsia.
          Também eu seria uma testemunha hostil. E tenho muita honra em manifestá-lo publicamente. Estou pronto a declarar que a perseguição ignorante e supersticiosa dos seguidores de uma doutrina económico-política – que, seja como for, provém da mente de grandes pensadores – não é só degradante para os perseguidores, mas também muito lesiva da reputação cultural deste país. Como cidadão americano de origem germânica, declaro que tenho uma familiaridade dolorosa com certas tendências políticas.  A intolerância espiritual, a inquisição política, o descambar da segurança legal – e tudo isso em nome de um suposto estado de emergência – foi o que na Alemanha deu força ao que se seguiu, o fascismo, e depois do fascismo, a guerra.
           
           (CONTINUA)
           
           
           















1 comentário:

  1. No fundo o que distingue as democracias ocidentais (de que os E.U.A. são o exemplo supremo) das ditaduras? Realmente, muito pouco...
    Ficamos à espera da parte II. Um abraço amigo

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