ESTÁS NA MINHA LISTA NEGRA, DIZ A ZEBRA
PARA O MOSQUITO
(PARTE I)
Sentado no banco das testemunhas amigáveis,
Gary Cooper respondeu:
- Sim, aqui e ali,
às vezes, ao longo destes anos, tenho ouvido falar… frases do tipo “não achas
que a Constituição dos Estados Unidos, escrita há 150 anos, está
ultrapassada?”. Ou… “o governo não seria mais eficaz sem o Congresso?”. São
frases que me parecem muito anti-americanas.
- O senhor Cooper alguma vez achou vestígios de
propaganda comunista num argumento que tivesse lido?
- Bem, sim… de
facto, recusei alguns guiões porque…
- Porquê?
- Porque me
pareceram muito pintados de vermelho.
- Pode dar-nos
exemplos?
- Não me recordo…
- Não?
- Não. Não prestei
muita atenção…
- Mas, um momento,
senhor Cooper… o senhor quer fazer-nos acreditar que tem má memória? Para fazer
o seu trabalho o senhor deve ter uma excelente memória. Portanto deve
lembrar-se perfeitamente de um ou dois títulos de guiões que recusou por
achá-los pintados de vermelho, não?
- Não, não posso
mencionar nenhum título…
O presidente da
Comissão para as Actividades Anti-Americanas, John Parnell Thomas, intervém:
- Pode ir para casa
pensar, e fornecer mais tarde à Comissão esses títulos…
- Não, acho que não
– teimou Gary Cooper – Eu leio os guiões à noite, sabe, senhor presidente, e se
não me agradam nem os leio até a fim e entrego-os ao autor.
- É assim que faz a
maior parte das estrelas, senhor Cooper?
- Julgo que sim.
Sabe, senhor presidente, não gosto de comunismo. Há anos, o comunismo só era
tema de conversa nas reuniões sociais. Recordo-me de ouvir falar nas vantagens
daquele regime, em especial para os artistas, para os criativos, que podiam até
ter cargos no governo e ganhavam muito acima da média. Lembro-me de ouvir falar de actores russos que tinham
três automóveis e viviam em casas muito maiores do que aquela onde eu vivia
nesse tempo, em Beverly Hills…
- E na sua opinião,
senhor Cooper, o comunismo em Hollywood está a crescer… ou está em retirada?
- É muito difícil dizê-lo.
Nos últimos meses parece-me que se tornou impopular e é um pouco arriscado
falar no assunto. As diferenças relativamente a outros tempos são evidentes… pessoas
que exprimiam as suas ideias livremente começaram a fechar-se…
- O senhor, que é
uma personalidade tão importante no cinema americano, que dizia se o Congresso
aprovasse legislação que banisse de vez o Partido Comunista dos Estados Unidos?
- Penso que seria
uma boa ideia, ainda que eu não tenha lido Karl Marx e não saiba nada acerca de
comunismo, a não ser o que ouço dizer aqui e ali. E o pouco que ouvi sobre o
comunismo não me agrada. Em todo o caso… não, acho que não tenho bases para
poder responder à sua pergunta.
E isto ainda antes,
muito antes, do dia 9 de Fevereiro de 1950, que é quando o senador republicano
Joseph Raymond McCarthy, do Wisconsin, sai do anonimato ao tomar a palavra num
comício em Wheeling, e ao agitar para a multidão uma pasta de couro, gritando:
- Ainda que agora
não tenha tempo de citar os nomes de todos os membros do Departamento de Estado
referenciados como inscritos no Partido Comunista e membros de uma rede de
espionagem comunista, tenho aqui uma lista de 205 nomes que continuam a
trabalhar no Departamento de Estado e a influenciar determinantemente as políticas
americanas na área dos negócios estrangeiros…
Na manhã seguinte,
ao fazer uma escala no aeroporto de Denver, McCarthy, naturalmente, foi
assaltado pelos jornalistas. Queriam a lista dos 205 funcionários de alto risco
dos negócios estrangeiros. McCarthy escusa-se, vasculha os bolsos, responde que
tinha deixado a lista no avião e que era muito tarde para ir lá buscá-la.
No comício do dia
seguinte, em Salt Lake City, McCarthy volta ao assunto e reitera tudo o que
disse.
- Ontem denunciei a
presença de comunistas no Departamento de Estado. Afirmei que só portadores de
cartão do Partido Comunista são 57. São espiões, sim! Mas não espiões normais.
É gente que ganha 5.300 dólares por mês e que determina o que será a política
externa da América.
O famoso jornalista Walter Lippmann opinava
que as acusações de traição, espionagem, corrupção e perversão feitas pelo
senador eram notícias que não podiam ser suprimidas ou ignoradas, porque
provinham da boca de um senador do Estados Unidos, um homem político que beneficiava
de todo o crédito da parte das mais altas instâncias do Partido Republicano.
Mais tarde, já em
1959, um biógrafo de McCarthy vem afirmar que ele mentiu com quantos dentes
tinha e com uma desfaçatez inaudita.
No mundo das artes do espectáculo imediatamente
algumas notabilidades se puseram ao lado de McCarthy, casos de Cecil B. de
Mille, Walt Disney, Ronald Reagan, John Wayne, Gary Cooper, Clark Gable. De Mille preconizou
até um juramento em forma para todo o que pertencesse ou viesse a pertencer ao
sindicato dos realizadores, um juramento de fé anti-comunista, e sendo de
justiça salientar que Joseph Mankievicz e John Ford de pronto se insurgiram
contra as posições e propostas de De Mille.
Mas a coisa vinha muito de trás.
A criação de uma
comissão que combatesse as eventuais actividades anti-americanas data de muito
antes das febres inquisidoras de Hollywood. Vem de Maio de 1938. Nasce na
Câmara dos Representantes dos EUA. Vive até 1968. Muda de nome nesse mesmo ano.
E é extinta em 1975. Mas antes de ser extinta…
Dos objectivos a
perseguir pela dita comissão faziam principalmente parte indagações sobre: 1) a
extensão, carácter e finalidades das actividades de propaganda anti-americana;
2) a difusão no interior do país de propaganda subversiva originária ou do
estrangeiro, ou de movimentos a actuar internamente com vista a subverter a
forma de governo da nação constitucionalmente garantida.
E que grupos ou
associações deveriam ser postas sob a alçada investigatória da Comissão? As
primeiras vítimas foram os bund, quer
dizer as associações de cidadãos americanos de origem alemã, e o Partido
Comunista Americano. E logo a seguir vieram as associações pacifistas pela paz
e pela democracia.
No dia 23 de
Outubro de 1939 o FBI prende o secretário geral do Partido Comunista Americano,
Eric Browder. Quatro anos de cadeia e 2.000 dólares de multa. Em Outubro de
1940 o Partido Comunista Americano anuncia a ruptura dos seus compromissos com
o movimento comunista internacional (Kuomintern), o que não atenua a implacável
vigilância do FBI sobre os seus membros e simpatizantes.
Foi claro para
muitos comentadores que a formação e a acção da Comissão para as Actividades
Anti-Americanas eram uma forma reacionária de resistência ao ambiente
progressista implantado pela administração Roosevelt. A Comissão tornava-se a
entidade mais eficaz a concentrar acções de tipo conservador contra Roosevelt e
o New Deal.
(A partir de 1975,
quando um acervo documental reservado do FBI foi liberto para consulta pública,
tornou-se óbvia a identidade da eminência parda do macarthismo e de todas as
comissões inquisidoras. J.Edgar Hoover, o todo-poderoso e maníaco
anti-comunista director do FBI.)
É interessante
dedicar umas linhas ao paranóico estado de sítio policial a que foi sujeito em
1938 o Federal Theatre Project, um projecto governamental rooseveltiano que
vinha já de 1935, destinado a acorrer aos 17.000 desempregados registados na
actividade teatral. Orson Welles e Joseph Losey faziam parte dos quadros
artísticos desse classificado ninho de comunistas e radicais de esquerda.
A Comissão consegue
interromper os fluxos financeiros oficiais que mantinham o projecto teatral
federal a andar e o projecto é extinto, depois das audiências públicas a que
foi submetida a directora, Hallie Flanagan. Flanagan é interrogada pelo
congressista do Alabama, Joseph Starnes, nas funções de presidente da Comissão…
- Um momento – diz
Starnes numa das audiências. – Leio num artigo seu que ao citar os operários
que participavam no projecto você fala de “uma certa loucura marlowesca”. E eu
pergunto quem é esse Marlowe. É um comunista, claro…
A sala de
audiências rebenta à gargalhada, o presidente Starnes bate com o martelo, e a
Flanagan responde:
- Trata-se de
Christopher Marlowe, obviamente…
- Sim, mas diga à
Comissão quem é este Marlowe…
- Pois bem, façam
então o favor de averbar na acta que Christopher Marlowe foi o maior dramaturgo
inglês no período anterior ao aparecimento de Shakespeare.
- Sim senhora, fica
em acta – concordou Starnes, ajuntando: - Mas talvez também nos tempos da
Grécia antiga já existissem comunistas, ou aquele tipo de gente a que hoje
chamaríamos comunistas. Não?
- É possível,
senhor presidente…
- Creio que esse
tal de Eurípedes também tenha culpas na… no ensino disso, da consciência de
classe… não?
- Creio que essa
acusação poderia ser feita a todos os dramaturgos da antiga Grécia…
- Bom… fico ciente
de que não poderemos nunca dizer quando é que tudo isto começou…
Foi no ano de 1943,
achava-se o movimento comunista americano em alta, que um grupo de artistas
conservadores e fortemente anti-comunistas fundou uma organização a que chamou
The Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals – portanto,
Aliança para a Preservação dos Ideais Americanos. Nomes? Alguns. E bem
sonantes, por sinal. John Wayne, Robert Taylor, Sam Wood, John Ford, Clark Gable,
Gary Cooper. Entre muitos outros menos célebres, está claro, incluindo a mãe de
Ginger Rogers.
Mas dois anos
depois um deputado republicano do Mississippi, John Rankin anuncia ao mundo a
descoberta de um dos mais terríveis
complots para derrubar o governo federal, acrescentando que Hollywood era a
mais perigosa ponta de lança da tenebrosa conspiração, por ser de toda a a
América o mais perigoso cóio de comunistas e demais subversivos.
Jack Warner, o
produtor, pretendia que estava na hora de a América acordar e recomendava uma
inquisição severa contra os vermelhos. Enquanto outro produtor menos famoso e
mais razoável, Eric Johnston, minimizava o caso, digam lá aos rapazes que não se preocupem. Nunca será feita nenhuma
lista negra. Não nos vamos tornar totalitários só para agradar àquela Comissão.
- O senhor sabe que o regime hitleriano
aprovou disposições que ilegalizaram o Partido Comunista e mandaram os seus
militantes para a prisão, não sabe? – pergunta o investigador da Comissão
McDowell ao produtor Jack Warner. – Estaria o senhor de acordo se medidas
iguais fossem promulgadas nos Estados Unidos?
- Toda a gente sabe
quais foram as consequências desse tipo de medidas – respondeu Jack Warner sem
responder.
- Sim, se nós,
enquanto deputados, aprovassemos uma lei semelhante acha que seria uma medida
correcta ou não?
- Como simples
cidadão sou a favor de qualquer coisa que seja boa para os americanos…-
continuou Warner a não responder.
- Senhor Warner…
fazer do Partido Comunista uma organização ilegal, é o que quero dizer…
- Sim sou a favor
de fazer do Partido Comunista uma organização ilegal – respondeu Jack Warner
por fim.
“Expulsa o diabo
deste País, Harry!”, gritou o republicano Arthur Vandenberg numa sessão do
Senado. E o presidente Harry Truman, a
21 de Março de 1947, emite a Executive Order 9835, que faz arrancar o Federal Employees
Loyalty, um programa governamental que transforma em suspeitos de conspiração
os 2.500.000 funcionários públicos americanos, daí em diante sujeitos a
inspecções especiais de segurança. Este
programa vai lavar a nódoa comunista do Partido Democrático, proclama Harry
Truman, referindo-se ao que chamou de sombra vermelha que o New Deal teria
posto a pairar sobre o partido.
E é em 1947 que a
indústria cinematográfica americana sediada em Hollywood começa a ser alvo das
indagações da Comissão para as Actividades Anti-Americanas, em colaboração
estreita com o FBI, e no sentido de identificar quem, no mundo do cinema,
nutria as tais simpatias comunistas. E as primeiras personalidades postas sob
suspeita foram as que nalgum momento da sua vida se tinham deixado conotar com
movimentos progressistas, sindicatos infiltrados ou com causas consideradas
progressistas – movimentos anti-fascistas ou movimentos de auxílio à República
Espanhola, por exemplo.
Pode dizer-se que
até às inquirições de 1947 os comunistas (ou tomados como tal) de Hollywood
gozavam de assinalável popularidade. O grupo comunista a trabalhar em Hollywood
dá as primeiras notícias de si em 1937, no dia em que o argumentista John
Howard Lawson organiza a primeira reunião da célula do PC na capital do cinema,
o que vem a dar força à formação de grupos de diversa orientação ideológica,
como o Hollywood Democratic Commitee, a Hollywood Anti-Nazi League ou a United
American Spanish Aid Commitee.
Na literatura do PC
distribuída aos militantes da indústria do cinema podia ler-se que o Partido se
propunha continuar as tradições de Jefferson, Payne, Jackson e Lincoln; que o
Partido defendia a Constituição dos EUA por acção de um governo do povo para o
povo… o Partido afirma-se pela abolição
da exploração do homem pelo homem, de uma nação por outra nação, de uma raça
por outra raça. Aspiramos a um mundo de fraternidade humana, sem opressão e sem
guerra.
Nem uma linha sobre
revolução, violência ou terrorismo. Em suma, como diria o realizador (militante
comunista mais tarde arrependido e delator) Edward Dmytryk, era difícil
encontrar-se retórica mais imbuída do espírito do americanismo.
Mesmo na esfera dos
empregadores/produtores de Hollywood havia quem se opusesse às inquisições da
Comissão. Quem poderia alguma vez provar que um homem era comunista ou não era
comunista? Será uma comissão qualquer, ou um simples produtor, a poderem
arrogar-se o direito de estipular quem é e quem não é comunista? A indústria de
Hollywood teria todo o direito a defender-se contra tais intromissões, e a
defender antes de tudo o mais a sua liberdade e a sua autonomia.
Em Julho de 1947
dois homens da Comissão para as Actividades Anti-Americanas deslocam-se a
Hollywood e põem tudo em pratos limpos: Hollywood tinha sessenta dias para se
livrar dos subversivos; se não o fizesse seria submetida a duras inquirições;
se não o fizesse os próprios estúdios seriam tomados como responsáveis por toda
e qualquer infiltração comunista na indústria cinematográfica.
41 individualidades
são postas sob investigação em Setembro de 1947. Entre elas lá estavam (só para
falar dos mais conhecidos) Berthold Brecht, Charles Chaplin, Walt Disney, Lewis
Millestone; Clifford Odets, Dalton Trumbo, Ronald Reagan, Samuel Goldwyn, Louis
B. Mayer, GaryCooper.
Ao mesmo tempo desenvolve-se a oposição aos
trabalhos da Comissão. Dezanove pessoas intimadas a comparecer perante a
Comissão recusam-se a cooperar. Os argumentistas Alvah Bessie, Herbert
Bieberman, Lester Cole, Richard Collins, Gordon Kahn, Howard Koch, Ring Lardner
Jr., John Howard Lawson, Albert Maltz, Waldo Salt, Adrian Scott, Samuel Ornitz,
Irving Pichel – além do já citado Dalton Trumbo -, os realizadores Robert
Rossen, Edward Dmytryk, o actor Larry Parks.
Reunem-se em casa de Edward G. Robinson para
definir uma estratégia de defesa. Passam a ser chamadas “testemunhas hostis” e
são apontadas como os Dezanove de Hollywood – que já não eram dezanove, pois
Berthold Brecht tinha-se posto de parte, uma vez que era estrangeiro e
pretendia seguir uma diferente linha de defesa; e que passariam depois a ser
dez, os famosos Dez de Hollywood, quando alguns deles se arrependeram, desertaram
e se dispuseram a colaborar amistosamente com a Comissão denunciando os amigos.
Trata-se de um método fascista – declara
o argumentista Albert Maltz -, destroi-se
a vida de uma pessoa de forma a que o medo possa constranger ao silêncio e à
impotência outras mil pessoas.
Evidentemente que os Dezanove de Hollywood
não reconheciam à Comissão maior autoridade do que reconheceriam ao Ku Klux Klan
ou ao Partido Nazi Americano.
As reacções de
protesto ao trabalho da Comissão tentavam organizar-se. Era criado um
denominado Comité para a Primeira Emenda Constitucional – quer dizer, para
fazer funcionar a Primeira Emenda: O Congresso
não fará leis que permitam o reconhecimento oficial de qualquer religião, ou
que proíba o livre culto, ou que limite a liberdade de palavra ou de imprensa,
ou o direito que os cidadãos têm de reunir-se de forma pacífica, ou de enviar
petições ao governo para reparação de danos sofridos.
À cabeça desse comité estiveram os
realizadores John Huston, William Wyler e Phillip Dunne. Puseram um anúncio no Variety e os apoiantes do comité
aumentaram dos primeiros 35 nomes para 332. Entre eles algumas individualidades
cinematográficas e culturais de primeira água como John Ford, Billy Wilder,
George Stevens, Elia Kazan, Humphrey Bogart, Gregory Peck, Katherine Hepburn,
Danny Kaye, Rita Hayworth, Kirk Douglas, Henry Fonda, Burt Lancaster, Benny Goodman,
Thomas Mann, Leonard Bernstein…
Charlie Chaplin é convocado em Setembro de
1947 para prestar declarações. A sessão é adiada por três vezes. Nas vésperas
de nova convocação, a Comissão recebe um telegrama de Chaplin: não sou comunista, nunca estive inscrito em
nenhum partido ou organização política em toda a minha vida. A Comissão
responde: a comparência de Charles Chaplin não será necessária e o dossier Chaplin será encerrado.
Mas Chaplin
subscreve um apelo a favor dos Dez de Hollywood e recebe nova convocatória para
prestar declarações. Uma convocatória que por acaso o apanha a bordo de um
navio que o leva a Inglaterra.
Chegado à Europa,
Chaplin vai para a Suíça, e de caminho passa pelo consulado americano em
Lausanne, onde faz saber para os devidos efeitos que não tem a mínima intenção
de voltar a pisar solo americano, e nessa conformidade não poderá apresentar-se
perante a Comissão.
O mais inequívoco e
duro que até essa altura a Associação dos Produtores de Cinema produziu foi
estabelecer que se a indústria do cinema tivesse cometido algum crime deveria
saber de que crime se tratou. A não ser assim, recusava qualquer colaboração
com a Comissão.
A primeira
audiência pública da Comissão para as Actividades Anti-Americanas no
respeitante à indústria do cinema teve lugar na manhã do dia 20 de Outubro de
1947, na Old House Building, em Washington. Dos interrogadores, além do
presidente John Parnell Thomas, fazia parte outro nome que viria a dar muito
que falar anos mais tarde, Richard Nixon.
A sala estava à
cunha de fans do cinema para ver o Gary Cooper, o Menjou, o Robert Taylor, o
Ronald Reagan em carne e osso. À cunha também de comentadores políticos e de
mais de uma centena de repórteres. Era mais um show de Hollywood.
Os deputados
federais envolvidos haviam optado por ouvir primeiro as testemunhas ditas
amigáveis e cooperantes (por oposição às consideradas hostis). Testemunhariam
Sam Wood, realizador muito conhecido na época, Louis B. Mayer, Leo McCarey,
Adolphe Menjou, Robert Taylor, Robert Montgomery, Ronald Reagan, Walt Disney,
Jack Warner e GaryCooper.
Interessante
verificar que na conversa do cidadão Ronald Reagan de 1947, então apenas actor
(mau), ou, aliás, também presidente do Sindicato dos Actores e secreto
informador do FBI, já se distinguía o político preparado e profissional que
viria a ser. Foi, pelo menos às primeiras, uma testemunha amigável
indiscutivelmente, e cooperativa com a Comissão, todavia equilibrada e coerente
com as cartilhas próprias e com os princípios ideológicos em que fazia fé, a
democracia liberal.
- Sabe se algum dos
outros dirigentes sindicais é membro do Partido Comunista? – indaga o
procurador Stripling.
- Não senhor. As
minhas funções de presidente do sindicato não incluem poderes investigatórios.
Não sei.
- Mas ouviu falar,
ouviu dizer que alguns dos sindicalizados eram membro do Partido…
- Isso sim. Ouvi. E
participei em discussões em que alguns se diziam comunistas.
- E acha que tinham
intenção de manipular o sindicato no sentido…
- Tentavam fazer valer
os seus pontos de vista próprios. Mas tenho que dizer que se eles tentaram
manipular o sindicato também nós o tentávamos afirmando igualmente os nossos
pontos de vista. E pelos números é fácil verificar: 90% dos sindicalizados
votaram pela nossa política. Sabe, a maioria de nós percebe o que está a
acontecer, mas entendo que dentro dos limites impostos pelo respeito dos
direitos democráticos, e sem que os tenhamos alguma vez violado, fizemos o
nosso trabalho para conter as políticas desses senhores. Para além do mais
devemos reconhecê-los como militantes de um partido político. Nada mais. E a
melhor oposição a essas pessoas é deixar que a democracia funcione.
Perguntado sobre a
possível ilegalização do PC americano, Reagan quase foi lapidar como democrata
convicto:
- Se o Partido
Comunista Americano deve ser ilegalizado? Bem, senhores, isso terá que ser uma
decisão do governo. Como simples cidadão, tenho dúvidas se é justo ilegalizar
um partido apenas com base na sua ideologia política. Não gosto do Partido
Comunista, mas gosto menos das tácticas dos comunistas. No entanto, tenho que
dizer que não gostaria, enquanto cidadão, de ver a nação comprometer princípios
de tolerância democrática por razões de medo de um determinado grupo de outros
cidadãos. Só a plena democracia pode resolver essas coisas.
Pode-se mesmo dizer que a Comissão definia
para Hollywood uma espécie de retrato-robot psicológico e comportamental das
personalidades que procurava inculpar como subversivos: que fosse um tipo bem falante
com ideias progressistas, que tivesse prestígio e audiência enquanto membro da inteligentzia cinematográfica – ouro
sobre azul se tivesse ascendência judaica. Estranho, note-se, para uma nação
que havia combatido heroicamente por esse mundo o nazismo, o fascismo e os
valores anti-semitas. Mas era assim. Muitos dos que mais levaram a peito correr
com os vermelhos da América confessaram-se abertamente anti-semitas,
anti-negros, homofóbicos, ou, simplificando, todos os tipos pessoais não
inscritos nos modelos Wasp (White Anglo-Saxon Protestant).
- Sim, creio que, em certas circunstâncias,
um realizador comunista, ou um argumentista comunista, possam introduzir
comunismo ou ideias subversivas num filme, ainda que as ordens que tenham sejam
para se abster de duplos sentidos passíveis de leitura política – declarou o
actor Adolphe Menjou à Comissão. – Um olhar, uma inflexão, uma mudança de tom
de voz. Pode fazer-se com facilidade.
- Já viu fazer?
- Não, não vi. Mas
acho que pode ser feito.
- Ainda ontem o
senhor Sam Wood nos indicou um dos que tentaram levar o sindicato dos
argumentistas para a órbita comunista. Diga-nos, senhor Menjou, pensa que o
senhor John Cromwell é comunista?
- Ah sim,
comporta-se terrivelmente como comunista!
Um dos mais
recalcitrantes dos deponentes hostis foi o argumentista John Howard Lawson
(aliás, membro evidente do PC), o primeiro a ser chamado à pedra, no dia 27 de
Outubro de 1947, e fazendo saber ao presidente da Comissão, John Parnell
Thomas, que tinha uma declaração escrita para apresentar e para ser incluída na
acta do interrogatório. O presidente Thomas pede-lhe o papel. Lawson entrega o
papel. O presidente Thomas passa-lhe uma vista de olhos e diz:
- Não me interessa
continuar a ler isto. A Comissão não autoriza que esse documento seja incluido
na acta.
Lawson acusa:
- Os senhores
passaram uma semana a caluniar-me perante a opinião pública americana…
- Um momento…
- … e agora
recusam-me o direito de ler uma declaração sobre os meus direitos de cidadão
americano…
O presidente
contrapôe:
- Li a primeira
frase e chegou. Chegou para determinar que a sua declaração não é pertinente
para este inquérito.
Lawson recalcitra:
- Os direitos de
cidadania americana nesta sala são pertinentes e importantes, e eu insisto em
defender os meus direitos…
Os submetidos a
interrogatório da Comissão (os chamados hostis) tinham instruções dos
respectivos advogados (e sabe-se lá se do próprio Partido) para não se recusarem
a responder às perguntas. A cada pergunta deveriam procurar tergiversar,
alegando que estavam a responder à pergunta, sim, mas à sua maneira.
- Nome e apelido,
se faz favor.
Lawson seguia à
risca as instruções.
- Quero protestar
contra a proibição de ler uma declaração quando os senhores permitiram que o
senhor Jack Warner e o senhor Louis B. Mayer lessem declarações nesta mesma
sala…
- Nome e apelido…
- O meu nome é John
Howard Lawson.
Seguiu-se uma
cansativa teima, responder, não responder, porquê responder, que direito; toda
a pergunta que, directa ou indirecta, versasse a filiação sindical ou política
das testemunhas era um abuso dos poderes da Comissão; competia à Comissão e não
a ele, Lawson estabelecer as competências da própria Comissão; os direitos de
cidadania dele, Lawson, não eram menos importantes do que as competências da
Comissão…
- Estou a ser
tratado de maneira diferente das outras testemunhas.
- O senhor não está
nada a ser tratado de maneira diferente…
- As outras
testemunhas puderam ler as suas declarações e eu não…
- Compete à
Comissão determinar quem deve e quem não deve ler as declarações…
Lawson tinha-se na
conta de bom americano e pretendia não se deixar intimidar. Tivera alguma
função de responsabilidade no Sindicato dos Argumentistas? A pergunta era
ilegal, mas Lawson admitia que sim. Então que indicasse à Comissão dois ou três
títulos de filmes de que tivesse escrito os argumentos. Não, não indicaria
coisíssima nenhuma. Eles estavam a entrar nos terrenos da liberdade de imprensa
e de comunicação e não tinham esse direito. Além de que não havia necessidade
de o fazerem vir de Hollywood a Washington para saberem quantos e quais filmes
ele escrevera. Foi membro do Partido Comunista Americano? Não, a questão
comunista não tem a ver com este inquérito, que aliás não passa de uma
tentativa de coarctar a liberdade de expressão no cinema e ferir os direitos
fundamentais… o presidente batia com o martelo… Lawson não se calava… é vedado
a qualquer Comissão ferir os direitos, privilégios e imunidades de um cidadão
(Lawson tinha sido estudante de Direito), o presidente Thomas ordenava silêncio
e Lawson acusava-o de usar uma técnica já usada por Hitler na Alemanha só para
meter medo…
- Senhor Lawson… ou
se cala por um momento ou faço-o expulsar desta sala por ultraje. E o senhor
sabe o que já aconteceu a quem ultrajou esta Comissão…
- Fico satisfeito,
senhor presidente, por ter deixado claro a todos os presentes que o que o
senhor quer é ameaçar e intimidar as testemunhas…
- Senhor Lawson,
responda…o senhor é ou foi algum dia militante do Partido Comunista Americano?
- É triste e
trágico que seja eu a ensinar a esta Comissão os princípios basilares do
Direito americano…
O presidente bate
com o martelo.
- A pergunta é: o
senhor é ou foi, militante do Partido…
Lawson não o deixa
acabar:
- E eu estou a
enquadrar a minha resposta no único modo em que um cidadão americano pode
enquadrar uma resposta a uma pergunta que absolutamente viola os seus direitos.
Este primeiro
confronto inamistoso entre um dos Dezanove de Hollywood e a Comissão dividiu a
opinião pública e o pessoal da indústria em duas facções. E quando o ex-agente
do FBI Louis J. Russell aparece na sala das audiências provido de provas "irrefutáveis" da filiação de Lawson no Partido Comunista Americano já grande
parte da opinião pública não tinha dúvidas a esse respeito.
O agente Russell
avançou com uns papéis enquanto Lawson era arrastado pelos polícias para fora
da sala, chamando aos gritos a Comissão de nazi. Havia, disseram, cerca de trinta e cinco indícios claros da
pertença de Lawson ao PC. Artigos dele no Daily
Worker (o Avante do PC americano) e no New
Masses (jornal esquerdista muito popular então) e militância numa dúzia de
associações cívico-políticas, Liga Anti-Nazi de Hollywood, Comité Democrático
de Hollywood, nomeadamente, e que cheiravam à légua a Partido Comunista. Como
argumento final e esmagador, o agente Russell levantou para a assistência o
cartão de membro do Partido em nome de John Howard Lawson.
Era uma prova
aparentemente esmagadora. Ninguém sabia, pelo menos por enquanto, que o Partido
Comunista Americano não passava cartões, por assim dizer, aos seus filiados, e
precisamente para que esses cartões, uma vez confiscados, não os pudessem
comprometer e incriminar mais cedo ou mais tarde. Uma prova falsa, por
conseguinte.
O mais famoso argumentista de Hollywood, e o mais
bem pago, 75.000 dólares por argumento, era Dalton Trumbo, que foi chamado a
depor a 28 de Outubro desse ano de 47. Também ele tinha uma declaração escrita
para ler à Comissão.
- Um momento.
Mostre lá – pede o presidente.
Trumbo apresenta o
documento, o presidente passa os olhos pelo papel e indefere o pedido. Como
sucedera com Lawson, a declaração era julgada pouco pertinente para o inquérito.
- O senhor
presidente não acha pertinente? Não me diga que eu troquei os papéis e lhe dei
a ler as páginas de algum argumento cinematográfico dos meus…
Há risos na
assistência e marteladas do presidente.
- Silêncio ou mando
evacuar a sala!
Caso curioso –
sinistramente curioso – foi o da Comissão nunca se ter preocupado em analisar
os trabalhos dos acusados de comunismo, ou mesmo dos filiados no partido, em
busca de evidências quanto aos sinais de propaganda esquerdista que esses
eventualmente pudessem ter feito sub-repticiamente passar através dos seus
trabalhos, fossem eles argumentistas, realizadores ou actores.
Claro que mesmo que
a Comissão se tivesse dado a esse trabalho a busca teria sido infrutífera. Ou
seja, a Comissão deveria saber de sobejo que era impossível a um argumentista
ou a um realizador fazer passar mensagens de propaganda comunista em filmes que
eram sujeitos a sucessivas apreciações, visionamentos e análises dos chefões da
Paramount, da MGM, de RKO ou da Universal – já para nada dizer das estruturas
censórias ou dos códigos moralistas cívicos e religiosos. Isto para
argumentistas e realizadores. Quanto a actores, nem valeria a pena falar, ou
investigar de que modo um actor, que debita o que outros (argumentistas)
escreveram, e que se move segundo as directivas de outros (realizadores),
pudesse fazer passar propaganda que não fosse a dos valores americanos.
Suponho que todos
eles, aliás, ou pelo menos os mais notórios, se puseram à disposição da
Comissão para a análise dos seus trabalhos, à procura dos vestígios de
propaganda esquerdista. Dalton Trumbo, o mais famoso dos argumentistas da época
fê-lo, disponibilizou-se para esse escrutínio, e o então presidente da
Comissão, John Parnell Thomas, pergunta-lhe pela extensão de um dos argumentos
que escrevera. Entre 115 e 170 páginas, respondeu Trumbo. Era demasiado. Não
havia vagar nem paciência para uma indagação do género.
- O senhor Trumbo é
membro do Sindicato dos Argumentistas?
- Parece-me óbvio,
senhor presidente, que uma pergunta desse tipo há-de ter por objectivo
identificar-me com o sindicato e a seguir identificar-me com o Partido
Comunista…
- Limite-se a
responder sim ou não à minha pergunta. É ou não membro do Sindicato dos
Argumentistas, senhor Trumbo?
- É que a sua pergunta
tem uma dupla finalidade…
- Quer fazer-me a
cortesia de responder…
- Os senhores
querem estabelecer uma ligação entre o sindicato e o…
- Repito: o senhor
é ou não é membro…
- A pergunta visa
atacar o sindicato…
Martelo do
presidente na mesa e presidente a gritar que é a última vez que repete a
pergunta. Mas Trumbo também levanta a voz: os direitos dos trabalhadores
americanos à inviolabilidade das suas filiações sindicais foram conquistados à
força de muita fome e muito sangue derramado. A pergunta obrigaria um
trabalhador americano filiado num sindicato a identificar-se como tal e a ser
sujeito a intimidações futuras, pelo que a pergunta era de entender como
inconstitucional.
- Seja pois vertido
para os autos que a testemunha se recusa a responder. Passemos então adiante.
Senhor Trumbo, o senhor é, ou foi, membro do Partido Comunista Americano?
- Bem, senhor
presidente… creio ter o direito de saber quais são as provas que o senhor tem
para justificar uma pergunta desse tipo.
- Ai quer saber?
- Quero. Claro que
quero.
- Pois saberá em
breve. Façam favor de retirar a testemunha. É impossível.
Trumbo grita:
- Isto é só o
princípio! - o presidente martela. – Isto é só o princípio da criação de campos
de concentração nos Estados Unidos!
Era uma táctica
comunista. Não havia dúvidas - segundo o parecer do presidente Parnell Thomas.
Trumbo foi levado da sala e houve palmas e
novas marteladas do presidente.
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negativa que as inquirições da Comissão para as Actividades Anti-Americanas
suscitou impunha mudanças tácticas. Assim, a recusa das declarações escritas
das testemunhas foi um estratagema entretanto abandonado pela Comissão. Albert Maltz
e Alvah Bessie, dois dos Dez de Hollywood, duas das testemunhas hostis
arroladas, já foram autorizados a ler as declarações que traziam escritas,
Maltz na totalidade e Bessie começando por ser autorizado a ler só dois
parágrafos, mas acabando por ler a declaração toda.
- Sou escritor –
declara Albert Maltz.
- Mas trabalha no
mundo do espectáculo…
- Escrevo para
viver e aceitei algumas ofertas de trabalho no mundo do espectáculo, sim
senhor.
- Argumentos para
filmes…
- É um facto do
domínio público.
- Pertence então ao
Sindicato dos Argumentistas…
- Bom, não tarda
nada perguntar-me-á a que grupo religioso pertenço…
- Não, senhor
Maltz, isso não lhe perguntarei…
- Qualquer coisa
parecida perguntará, tenho a certeza, e
como óbvia tentativa de prevaricar nos meus direitos constitucionais.
- Recusa então
responder se é filiado no Sindicato dos…
- Não, não recuso. Pelo
contrário, sublinho que depois me perguntará se sou membro de uma certa
confissão religiosa e depois irá alegar que sou trabalhador de uma indústria
porque pertenço a um grupo de que os senhores não gostam…
- Senhor Maltz, o senhor
recusa responder…
- Eu estou a
responder à pergunta…
- É membro do
Partido Comunista, senhor Maltz?
- É o que eu digo.
Depois virá a religião. E depois farão pressões sobre alguns notáveis da
indústria porque a minha religião não vos agrada e por isso eles não me deverão
dar trabalho…
- Façam retirar a
testemunha. Ofende a comissão com os seus duplos sentidos. Segue a típica linha
comunista…
O agente Russell
volta a aparecer, já com uma longa lista de organizações subversivas de que
Albert Maltz faria parte. E por fim, o número sacramental do cartão de
militante do Partido Comunista.
Outro argumentista,
outro dos Dez de Hollywood, vem a seguir. As mesmas perguntas do presidente, as
mesmas tergiversações da testemunha em torno dos direitos constitucionais, as
mesmas pseudo-respostas evasivas.
- Seja averbado nos
autos que a testemunha recusa responder se está ou não inscrita no Sindicato
dos Argumentistas. E agora pergunto: é, ou foi, membro do Partido Comunista?
Resposta do
argumentista Alvah Bessie:
- O general
Eisenhower recusou recentemente responder a uma pergunta sobre as ideias
políticas que perfilhava, e o que é um procedimento admissível ao general, terá
que ser um procedimento admissível para mim, senhor presidente.
Houve palmas. Houve
as marteladas do presidente, que gritou basta! A testemunha que fosse posta
fora da sala, que fosse fazer os seus bonitos discursos para o campo, para as
árvores.
- Estou convencido
– reflectiu o presidente – de que se o general Eisenhower testemunhasse perante
esta Comissão e alguém lhe perguntasse se era filiado no Partido Comunista ele
seria muito pronto a responder, e mais: sentir-se-ia gravemente insultado pela
pergunta. E insultado por uma razão: um grande homem como o general Eisenhower
não admitiria nem em sonhos transformar-se num vil comunista.
E entrou o agente
Russsell com as suas provas irrefutáveis e o respectivo cartão do partido
passado em nome de Alvah Bessie.
E assim por diante
com Herbert Bieberman, com Samuel Ornitz.
No dia 29 de Outubro,
o realizador Edward Dmytryk e o produtor Adrian Scott estão perante a Comissão,
especificamente acusados de ter colaborado no filme Crossfire, considerado um libelo contra o anti-semitismo.
O andamento do
interrogatório correu os mesmos trâmites, com as mesmas manobras de diversão
dos interrogados nas perguntas de tipo político-sindical. Dmytryk estava
particularmente tenso. Viria a ser um arrependido dos Dez de Hollywood e viria
a ser-lhe concedida nova audiência em 1951.
- Quanto tempo
pensa o senhor Dmytryk que lhe seja preciso para responder se está ou não
inscrito no Sindicato dos Realizadores? Cinco minutos? Não são precisos cinco
minutos para responder sim ou não.
- Senhor
presidente… não há muitas perguntas a que se possa honestamente responder só
com um sim ou com um não…
- Se precisa de um
período mais largo de tempo é porque há alguma coisa de errado no caso… o
senhor é, ou foi, filiado no Partido Comunista?
- Essa pergunta
contende com os meus direitos constitucionais…
- Então recusa
responder…
- Não, não recuso
responder. Aliás, já respondi. E respondi dizendo que os senhores não têm o
direito de me perguntar…
- A testemunha está
dispensada.
O mesmo jogo com
Ring Lardner Jr., se é comunista, se pertence ao sindicato, eu respondo à minha
maneira, isso não é resposta, estou a tentar responder, queremos um sim ou um
não…
Berthold Brecht
mudou substancialmente o tom e o ritmo das audiências. No dia 30 de Outubro.
Acompanhado por um tradutor da confiança da Comissão. Chamo-me Berthold Brecht,
vivo no 34 da Rua 73 Oeste de Nova York e nasci em Augsburg a 10 de Fevereiro
de 1898.
(Tenho o depoimento
integral de Brecht, mas ficaria maçudo se o pusesse aqui na íntegra. Vou-me
limitar a alguns dos trechos mais significativos.)
Brecht começou por
fazer um longo discurso sobre a moderna História da Alemanha, detendo-se em
especial, claro, no período da ascensão do nazismo. Perguntam-lhe se é cidadão
americano. Não. Não é, mas pediu a cidadania em 1941, logo que chegou aos EUA…
É interrogado pelo
comissário Stripling.
- O senhor
comparece perante esta Comissão em resposta a uma citação do dia 19 de
Setembro. Correcto?
- Sim.
- Então posso
repetir-lhe a minha pergunta original: é, ou foi, membro de um Partido
Comunista de qualquer país?
Era a pergunta que
interessava verdadeiramente à Comissão, como é sabido. Não lhe pergunta se é do
Sindicato dos Argumentistas por ser estrangeiro e porque os sindicatos de
Hollywood só admitiam argumentistas americanos nas fileiras.
- Ouvi os meus colegas
considerar imprópria esta pergunta, mas na minha qualidade de hóspede deste
país, e não querendo abordar questões de tipo legal, responderei da maneira
mais completa que me for possível… não sou, nem nunca fui, filiado em nenhum
partido comunista.
- Nem no alemão?
- Não. Nem no
alemão.
- Mas escreveu
coisas muito revolucionárias…
- Escrevi poesias,
canções e dramas durante a luta contra Hitler. Por isso poderia ser considerado
revolucionário, porque, é claro, era a favor do derrube de Hitler…
Esta pergunta do
comissário Stripling poderia levar a conotações da Comissão com a polícia
política nazi. Por isso o presidente Parnell Thomas interveio a temperar as
inépcias do seu colega.
- Não nos
interessam os trabalhos que possam ter sido produzidos para derrubar Hitler ou
qualquer outro governo de outro país. Mas diga-nos, senhor Brecht, quantos dos
seus trabalhos são baseados nas filosofias de Marx e Lenine?
- Claro que os
estudei, como seria natural para um escritor que deseja escrever peças históricas.
Não acredito que se possam hoje escrever peças inteligentes sem os estudar.
Aliás, a História que se escreve neste momento é profundamente influenciada
pelos estudos históricos de Marx…
- Então… desde que
está nos Estados Unidos alguma vez frequentou reuniões do Partido Comunista?
- Não creio.
- Não crê?
- Não.
- Não tem a
certeza?
- Tenho a certeza.
- Tem a certeza de
nunca ter tomado parte em reuniões do Partido Comunista?
- Sim. Estou cá há
seis anos. Não me lembro de ter estado alguma vez em reuniões políticas…
- Não digo reuniões
políticas, digo reuniões do Partido Comunista…
Subtilmente, Brecht
induzia o interrogador a definir as reuniões do Partido Comunista como reuniões
não-políticas.
- Não creio…
- Não tem a
certeza?
- Creio que tenho a
certeza.
- O senhor crê que
tem a certeza?
- Sim, não
participei em nenhuma reunião…
O comissário
pergunta-lhe se, nos EUA, alguma vez se teria encontrado com representantes do
governo soviético, e ele diz que sim, quando em Hollywood tinha sido algumas
vezes convidado com outros escritores para recepções no consulado soviético.
- Outros
escritores? Que escritores?
- Artistas,
actores… havia festas…
- Alguma dessas
pessoas do consulado soviético o visitou a si?
- Não me parece.
- Grigori Kheifets
visitou-o no dia 14 de Abril de 1943? Era o vice-cônsul soviético. Conhece-o,
claro…
- Grigori Kheifets?
Não me recordo do nome, mas pode ser que conheça…
- 14 de Abril de
1943.
- Pode ser.
- E depois a 27 de
Abril, e outra vez em 16 de Junho de 1944…
- Pode ser. Não me
lembro desse nome, mas… algum adido cultural…
- Que queriam? Que
foram fazer a sua casa?
- Contactos
literários com artistas alemães, alguns dos meus amigos. Em Moscovo…
- Escritores
alemães? Em Moscovo?
- Sim, em Moscovo.
A editora do Estado publicou traduções das minhas peças e alguma da minha
poesia.
- Senhor
Brecht…quando o senhor entrou neste país não fez nenhuma declaração nos
serviços de emigração…
- Declaração?
- Sobre as suas
filiações políticas do passado…
- Não me lembro.
Fiz uma declaração, sim, penso que de rotina, declarei que não pretendia
derrubar o governo dos Estados Unidos. Pode ser que me tenham perguntado se
pertencia ao Partido Comunista, não me lembro, mas se assim foi disse-lhes
exactamente o mesmo que vos disse há pouco…
- Que nunca esteve
filiado.
- Exactamente.
- Perguntaram-lhe
se tinha estado alguma vez na União Soviética?
- Sim, e eu
respondi que sim.
- Fizeram-lhe
perguntas sobre os seus escritos…
- Não, não houve
nenhuma discussão literária…
Brecht dir-se-ia
que toureava a Comissão nas suas respostas, a um tempo dúbias e taxativas. E
houve dúvidas quanto à tradução de uns textos dele chamados para a conversa. E
perguntaram-lhe sobre outro imigrante alemão, o músico Hans Eisler. E voltaram
à carga com o Partido Comunista…
- O senhor Brecht
fez algum pedido para ser admitido no Partido Comunista Americano?
- Não percebo a
pergunta. Se eu…
- Pediu para entrar
para o Partido Comunista…
- Não, não, não,
nunca… pode ser que alguém me tenha sugerido alguma coisa parecida, mas eu
sabia que não era nada que me conviesse…
- E quem lhe
sugeriu que entrasse para o Partido?
- Alguns leitores…
- Quem?
- Pessoas do grande
público… que leram poesia minha. Compreenda-se que não foi uma abordagem
formal.
O advogado de
Brecht meteu-se na conversa para esclarecer que o seu cliente se referia a
factos passados na Alemanha e que o presidente Thomas persistia em interpretar
como factos já passados na América. Será que Brecht se lembrava de alguém que o
tivesse instigado a entrar para o Partido Comunista Americano? Brecht não se
lembrava.
Mas as ligações de
Brecht ao cinema de Hollywood eram escassas, escassíssimas. Tinham chamado
Brecht na sequência de um interrogatório ao já citado compositor alemão
imigrado, amigo e colaborador dele, Hans Eisler, que trataram abaixo de cão
durante a audiência. Eisler tinha composto música para alguns trabalhos de
Brecht, Eisler era comunista, logo, Brecht também era comunista. Muito simples.
Simples e verdadeiro, claro, porque Brecht era mesmo comunista. O que não era
era um militante activo. E os homens da Comissão nunca chegaram a conclusões.
Era intelectualmente sofisticado demais para eles.
Terminada a
audiência a Brecht, os interrogatórios públicos foram suspensos. Naquela
primeira fase tinham sido ouvidas 39 testemunhas, mas ainda havia mais gente
para depor. Na opinião da própria Comissão aquelas
audiências tinham provado à saciedade (e à sociedade) a utilidade dos
trabalhos. Tinham sido chamadas ao banco das testemunhas dez personagens de
relêvo na indústria do cinema das quais havia provas de comunismo, tinham sido
acusadas e nem sequer tinham negado as acusações.
Mas nunca se soube
bem bem o porquê de as audiências terem
sido interrompidas. É verdade que a maioria dos media se mostrara crítica dos métodos empregados, e pode ter sido
por isso que o presidente John Parnell Thomas decidira fazer uma pausa. Mas se
fez uma pausa não foi certamente pela influência do já falado Comité para a
Primeira Emenda capitaneado por John Huston, e não obstante as adesões ao
referido comité já se contarem por 500, entre figuras do mundo do espectáculo –
embora houvesse opiniões de que a Comissão se temera com a ameaça do comité de
organizar uma marcha de celebridades artísticas a Washington.
No final dessa
primeira leva de interrogatórios, o Comité para a Primeira Emenda fez publicar
na imprensa um comunicado a condenar os processos da Comissão e a apoiar as
testemunhas chamadas hostis. Entre os subscritores do comunicado, estavam, para
além de Huston, Larry Adler, Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Geraldine Brooks,
Ira Gershwin, Sterling Hayden, Gene Kelly, Danny Kaye – segundo alguns, o
comunicado não teve outra utilidade senão a de fornecer à Comissão mais uns
quantos nomes a investigar por actividades anti-americanas…
Entretanto, nove dos
interrogados eram considerados culpados de ultraje e de vilipêndio à Comissão e
iam dar com os ossos na enxovía. Ainda
que esta Comissão, devido às limitações de tempo e de recursos, não tenha
podido examinar cada frase dos alegados activistas comunistas na indústria do
espectáculo, o perfil e a estratégia de tais activistas e de tais actividades
foram claramente evidentes para todos.
E como explicar que dos conhecidos 79
implicados que o presidente Thomas tinha na sua lista de suspeitos, 69 deles
tivessem sido deixados livres de continuar a desenvolver as respectivas
actividades, incluindo cívico-políticas, até 1951? Faz pensar que as audiências
daquele ano de 47 não quisessem efectivamente erradicar o comunismo de
Hollywood mas tão somente impressionar o público americano e assim inaugurar um
certo tipo de categoria política, o anti-comunismo militante, e estabelecendo
que para se ser anti-comunista não eram precisos atributos específicos, bastava
dar uma impressão de defensor estrénuo do americanismo.
Uma grande figura da
cultura mundial, Thomas Mann, emigrado nos EUA, decidiu intervir e levantar o
nível intelectual da controvérsia.
Também eu seria uma testemunha hostil. E
tenho muita honra em manifestá-lo publicamente. Estou pronto a declarar que a
perseguição ignorante e supersticiosa dos seguidores de uma doutrina
económico-política – que, seja como for, provém da mente de grandes pensadores
– não é só degradante para os perseguidores, mas também muito lesiva da
reputação cultural deste país. Como cidadão americano de origem germânica,
declaro que tenho uma familiaridade dolorosa com certas tendências
políticas. A intolerância espiritual, a
inquisição política, o descambar da segurança legal – e tudo isso em nome de um
suposto estado de emergência – foi o que na Alemanha deu força ao que se
seguiu, o fascismo, e depois do fascismo, a guerra.
(CONTINUA)
No fundo o que distingue as democracias ocidentais (de que os E.U.A. são o exemplo supremo) das ditaduras? Realmente, muito pouco...
ResponderEliminarFicamos à espera da parte II. Um abraço amigo