SER E NÃO
SER JUDEU
Por falar noutro dia em judeus... e na fluidez do apreender, do verificar à vista desarmada essa racial condição de ser ou não ser judeu... lembrei-me de um livro lido há pouco tempo e fiquei a pensar em Charlie Chaplin... judeu...
Mas vamos com calma...
José
Luis de Vilallonga foi (acho que já faleceu) um aristocrata espanhol de quem alguns dos mais
empedernidos cinéfilos podem estar lembrados de umas canastronas e secundárias
interpretações, a mais notória delas, julgo eu, no filme de Blake Edwards sobre
uma história de Truman Capote, Breakfast at Tiffanys – Boneca de Luxo
na vaporosa versão portuguesa – com Audrey Hepburn num dos papéis mais
inesquecíveis da carreira. Vilallonga, curioso, fazia no filme o papel de um
milionário brasileiro chamado José Pereira que estava para casar com a
protagonista. Mas não é a história da vida, de resto interessante, deste
marquês espanhol metido a actor de cinema que me proponho contar hoje. Ficará
para outra ocasião, certamente.
Vilallonga,
considerado fascista, marquês, conde, barão, disto e daquilo, com infinitamente
mais jeito para escritor – a avaliar pelas suas Memórias Não Autorizadas - do que para actor de cinema (deve tê-lo
sido seguramente graças ao físico), play
boy, chulo de luxo, marido e amante de mulheres riquíssimas, amante de
actrizes famosas, amigo de cabeças coroadas… uff… teve, em jovem, uma passagem
pelo jornalismo internacional. No Paris Match.
E foi logo investido pela
direcção da revista em empreendimento jornalístico de vulto para alguém sem
experiência.
Graças aos contactos que tinha no jet set desse mundo e às relações de amizade
com grande número de celebridades mundiais, a agenda do Paris Match
destinou-lhe o considerável encargo de entrevistar a nata do who’s who mundial. Nem mais nem menos do
que Orson Welles, Jeanne Moreau. Sophia Loren. Brigitte Bardot, Indira Gandhi,
Herbert von Karajan, Federico Fellini, Umberto de Itália, Onassis, De Gaulle. E
Charlie Chaplin.
E
claro que José Luis de Vilallonga, não obstante todo o traquejo social que
tinha, assustou-se. Eram míticas figuras que muito dificilmente concederiam uma
entrevista a um jovem jornalista sem nome feito, por mais marquês-conde-barão
espanhol que ele fosse. E era trabalho para anos. Mas ao Paris Match
interessava exactamente um repórter pouco batido que pudesse oferecer aos
leitores uma visão refrescada e menos convencional de personagens já mil vezes
entrevistadas.
Não
me deterei nas diligências (engraçadas algumas) feitas por Vilallonga para se
saír da incumbência – fica para uma próxima oportunidade. Começarei por
dizer, só, que o primeiro a ser entrevistado viria precisamente a ser aquele
que Vilallonga considerava um dos mais difíceis de abordar. Charlie Chaplin.
Mas através de uma amiga italiana, visita da casa dos Chaplin na Suíça,
Vilallonga conseguiu o que queria com relativa facilidade.
Estava
num hotel de Vevey à espera de que a amiga italiana dos Chaplin lhe desse um
sinal, um sim ou um não à entrevista, quando, na mesma noite de chegada, a
amiga lhe telefona: Vilallonga estava convidado para jantar no Manoir de Ban. Chaplin era amigo do
marido da amiga italiana, e esta, por meias palavras e subentendidos, fizera
crer a Chaplin que o homem que o queria entrevistar era seu amante, e sabendo
que Chaplin se pelava por aquele tipo de enredos.
Chaplin
estava então com 83 anos. Estava gordinho e rosado, os cabelos alvos de neve,
um penalty de gin tónico a cintilar-lhe permanentemente na mão.
E,
vamos lá a dizer, não é que Vilallonga –
homem de muitas afinidades com a extrema direita espanhola - admirasse por aí
além Charlie Chaplin. Criticava-lhe a postura ideológica, é claro, a demagogia,
o maniqueísmo, ricos de um lado, pobres de outro, maus como as cobras os ricos,
bonzinhos até ao vómito os pobres.
A grande impressão de Vilallonga, a primeira, naquele jantar,
foi a figura de Oona, a mulher de Chaplin, a filha do celebérrimo dramaturgo
americano Eugene O’Neill,
a mãe da actriz Geraldine Chaplin; uma fronte límpida e serena, um olhar
inocente e limpo das terríveis tragédias familiares.
Verduras, fruta e queijos suíços – a ementa do jantar.
- Estou de acordo com a
entrevista – disse Chaplin. – Proponho então que amanhã tomemos juntos o pequeno- almoço para
prepararmos o nosso trabalho. Não sei se está de acordo. Ah… e o senhor marquês não vai nada dormir ao hotel.
Mandarei preparar-lhe um quarto ao lado do da sua amiga.
Às
seis e meia da manhã do dia seguinte toca o telefone da cabeceira de Vilallonga
e uma voz anuncia-lhe que Mr. Chaplin o esperava para o pequeno-almoço no
terraço às sete e meia em ponto.
- E agasalhe-se porque
está frio.
Às
sete e meia da manhã já Chaplin tinha jogado meia hora de ténis com um vizinho,
já tinha feito vinte minutos de natação na piscina e já tinha lido a imprensa
do dia.
O
aristocrata espanhol metido a jornalista refere que tomar o pequeno-almoço às
sete e meia da manhã, ao ar livre, morto de frio, em tête-a-tête com
Charlie Chaplin não acontecia todos os dias.
-
Daqui deste terraço, quando a neblina
do lago levanta, lá para as dez, posso ver distintamente os telhados do Crédit
Suisse – dissera Chaplin.
Vilallonga
palpitou para os seus botões que era lá que ele guardava o seu dinheiro e que
não havia maneira mais simples e subtil de o dizer.
-
E já que se fala nisso, Mr. Chaplin, qual é para si a importância do dinheiro?
-
Tenho pelo dinheiro um infinito
respeito, porque sei o que significa não o ter.
Em
tempos, na América, o afamado banqueiro J.P.Morgan tinha-lhe dito; Charlie,
o dinheiro só tem importância enquanto permite que nos esqueçamos dele. E
Chaplin replicara a Morgan que o dinheiro também era bom para nos lembrarmos
sempre dele.
-
Eu nessa altura valia só 5 milhões de
dólares. Mas Morgan nunca me poderia compreender porque tinha nascido rico. E
eu tinha nascido pobre. Mesmo muito pobre. Mas também se escreveram muitos
disparates sobre as minhas relações com o dinheiro e com a minha própria e
desgraçada infância.
Somerset Maugham escrevera um dia que as ruas do sul de Londres
eram para Chaplin o cenário de mil aventuras alegres e extraordinárias, e
estava convencido de que Chaplin, já depois de riquíssimo, sofreria de ataques
de nostalgia ao recordar os bairros pobres de Londres onde nascera. Chaplin
considerava essa tirada do seu amigo Maugham uma rematada estupidez. Embora,
por outro lado, e num certo sentido, ele tivesse alguma razão. Chaplin nunca
poderia esquecer dos bairros pobres de Londres a fealdade, a miséria, o horror.
- Essa mania que os
ricos têm… porque Maugham também nasceu rico… de que a pobreza pode ser
fascinante, chega a ser um insulto. Nunca na vida encontrei um ex-pobre que
sentisse saudades da sua miséria de outros tempos. Não, meu caro marquês, a
miséria não é sedutora, nem é fonte de criatividade, nem de alegria. A miséria,
a mim, nunca me ensinou nada. E… é claro… também tomei gosto pelo dinheiro. Mas repare o
marquês numa coisa… o meu
gosto pelo dinheiro não significa que tenha gostado de o acumular, nada disso,
gosto de dinheiro para o gastar, comer os melhores queijos, beber os melhores
vinhos, fazer-me rodear de obras de arte. Caro marquês – Chaplin soltou uma das suas risadas de cinema -, acredite
no que lhe diz este velho capitalista: o dinheiro e a beleza dão-se muito bem
um com o outro – o que Chaplin não levava à paciência no
respeitante ao dinheiro era gastá-lo mal. - Daí a dizerem que sou avarento vai um pequeno passo. E tudo isso também
dá ao mundo o direito de pensar que a avareza é uma qualidade minha natural,
atávica, visto que sou judeu.
Sobre este momento do diálogo terá caído um silêncio. E durante
esse silêncio Chaplin ter-se-ia concentrado na paisagem, o sol a romper
lentamente a bruma que se levantava do lago, olhando subitamente o seu
interlocutor nos olhos. Dizendo:
- A questão está nisto:
é que, na verdade, eu não sou judeu.
Vilallonga disfarçou o espanto. Pareceu-lhe mal, enquanto
aristocrata espanhol, acusar uma imediata surpresa.
Mas foi dizendo:
- Como, Mr. Chaplin… o senhor não é judeu?
Chaplin esclareceu: descendia de irlandeses e de ciganos; na sua
árvore genealógica não havia um único judeu. E lastimava-se por isso. Sabia que
os críticos de cinema do mundo inteiro o consideravam um mito vivo, o expoente
máximo do que tinham carimbado de humor judeu…
- E, senhor marquês,
não me diga que não tem piada. Só a um irlandês poderia passar pela cabeça vir
a ser o primeiro dos humoristas judeus. E esse irlandês é este seu amigo.
Mas, perguntaríamos nós, mortais comuns, o que teria acontecido
para que a fama de judeu tivesse corrido mundo colada ao nome, à figura, ao
humor e ao estilo de Charlie Chaplin?
O mesmo Chaplin não nos deixa sem explicação: assim que chegou a
Hollywood percebeu que dava muito jeito à sua ambição fazer-se passar por
judeu, e porque era mais fácil a um judeu fazer carreira no mundo do cinema
quando todos os estúdios eram propriedade ou eram dominados por judeus. E o
primeiro produtor que se ocupou dele deu por assente que ele era tão judeu como
os outros que o haviam precedido na indústria. Chaplin não o contrariou. Viu o
furo e calou-se.
- Sabe, marquês, vindo
das classes mais pobres de Inglaterra, sem nome, sem brasões, nem castelos, nem
antepassados que pudesse desonrar… ora adeus, não era agora eu que iria
complicar a vida a mim mesmo com esse tipo de preconceitos. Querem-me judeu?
Pois ter-me-ão judeu. Chaplin considerar-se ia a si mesmo uma mentira viva. De todo o
modo, mentira viva que fosse, sempre era uma mentira alegre.
A seguir, e relacionado com o fascínio que a mulher dele, Oona,
exercia sobre José Luis de Vilallonga, o marquês jornalista, surgiu o tema do
sogro de Chaplin, Eugene O’Neill, o dramaturgo, um tema que de certo modo se
imbricava com o tema da pobreza.
O’Neill, filho de um medíocre actor inglês, fora um rebelde
profissional que deixara a casa paterna para levar uma vida de estroinice e
marginalidade, sempre acompanhado por bêbedos, ladrões, mulheres da vida e
drogados. Uma vida aventurosa que lhe proporcionou inúmeras histórias
desgraçadas, até ficar tuberculoso, em Buenos Aires, ser internado num sanatório
de Londres, entretendo o tempo a contar aos seus confrades enfermos algumas das
suas muitas aventuras. Calhou que um desses companheiros de doença fosse um
actor da companhia dos Provincetown
Players, sendo esse a convencê-lo a passar a escrito as histórias que tinha
vivido.
Chaplin irritava-se ao pensar que a celebridade do sogro era
vista pelos entendidos como resultante de ter saído de uma família conflituosa
e pobre em extremo. Porque havia um certo paralelo entre a vida de Eugene
O’Neill e a do mesmo Chaplin. E o paralelo era esse, esse, o da pobreza dos
princípios de vida.
Chaplin recusava a ideia de uma celebridade baseada, e
inspirada, e motivada, na luta pela sobrevivência e não por cada um deles ter
sabido usar o talento com que nascera.
- Nem o meu sogro nem
eu devemos o que quer que seja à pobreza. Devemos o que fomos ao nosso trabalho
e ao nosso talento. E saberá por acaso o meu caro marquês como e quando falei
pela primeira vez com o meu próprio pai? È claro que não sabe. Mas eu digo-lhe.
Foi na rua. Andava eu pelos meus dez anos. Eu parei a olhar para ele. Eu sabia
que o meu pai era aquele homem. Ele fez-me sinal para eu ir ter com ele, eu fui
e ele perguntou-me como me chamava. Charles Chaplin,
respondi. Sorriu. Deu-me meia coroa, uma palmadinha no ombro
e desandou. Nunca mais o vi. Morreu alcoólico aos 37 anos.
A mãe era cantora de um music-hall de segunda. Governava-se mais ou menos
até perder por completo a voz, deixar de ter trabalho, e enlouquecer na
miséria. Estava-se na era vitoriana. Inglaterra era o império, o império
britânico. E quanto a classes sociais no vitoriano império britânico havia
duas, os muito ricos e os muito pobres – exactamente, agora falo eu, no sentido
que parecem tomar as tendências da vida económico-financeira global e da
ferocidade capitalista que hoje governa o mundo. E na Londres desse tempo,
abaixo da classe dos muito pobres, havia ainda a dos mais pobres do que os
muito pobres, a classe de onde Chaplin provinha.
- Por tudo isso
compreenderá agora que eu não suporte que na minha presença se fale de dinheiro
em tom frívolo.
- É verdade que foi comunista, Mr.
Chaplin?
- Não. Nunca, não, nunca fui
comunista.
- Mas olhe que na América toda a
gente o tomou por comunista.
- Claro que sim. Eles são tão
primários! Um comunista a viver aqui entre todo este luxo… isso cabe na cabeça
de alguém?
Sim, Chaplin tomara o partido da União Soviética durante a II Guerra.
Estava de acordo com Stalin. Era preciso que os aliados abrissem uma nova
frente ocidental de guerra para aliviar a pressão alemã na frente russa e
dividir as tropas nazis. A guerra seria ou ganha ou perdida nos campos de batalha
russos. E depois desta posição tomada, a cada estreia de um filme seu, Chaplin
veria manifestações à porta dos cinemas a exigir a sua expulsão dos EUA.
Oona, a mulher, começara a odiar Hollywood e a América e queria
partir para a Europa, pôr os filhos em bons colégios europeus, afastar-se do
ódio e do racismo americanos. Passaram temporadas em Londres e Paris até
decidirem fixar-se na Suíça.
- Foi certamente muito
triste para si, Mr. Chaplin, ser obrigado a abandonar o país onde tinha
triunfado profissionalmente…
- Está enganado, meu caro marquês, o
que mais me entristeceu foi exactamente o não ter pena nenhuma de abandonar o
país em que tinha triunfado profissionalmente…
Que tipo de futuro teria Chaplin previsto para os filhos que
Oona lhe dera?
- Oh, não, para o melhor como para o pior já não são os pais a
decidir o futuro dos filhos. O futuro dos filhos caberá aos próprios filhos
decidi-lo.
Chaplin não pedia mundos e fundos aos seus, nem que eles fossem
mais ambiciosos nem mais inteligentes dos que os filhos dos outros. Mas também
não gostaria que eles o fossem menos. Ele e os filhos eram produtos de épocas
muito diferentes e a experiência de Chaplin, segundo ele, fora construída sobre
uma quantidade de erros que a geração dos filhos já não cometeria. Cometeriam
outros. Outros que ele mesmo talvez não soubesse evitar.
As filhas de Chaplin entusiasmavam-se cívica e politicamente com
Cuba, e com o que chamavam de milagre cubano. Chaplin não ia por aí. Não
acreditava em milagres daqueles. Milagres havia ele conseguido.
- E sabe o meu caro
marquês qual foi o meu maior milagre? Olhe, foi ter conseguido que a minha mãe
não morresse num asilo miserável dessa cinzenta Inglaterra e viesse a morrer
numa clínica de luxo da Califórnia, rodeada de limoeiros e laranjeiras, com limousine
e chauffeur à porta e três
enfermeiras a cuidar permanentemente dela.
E diz o marquês que Chaplin, quiçá para se convencer a si mesmo
de que não se transformara num odioso burguês esquecido das suas origens, fazia
muitas vezes de palhaço para os filhos, entrando por exemplo na sala de jantar
apoiado nas palmas das mãos e de pés para o ar. Aos 83 anos. 83 anos e ainda se
sentia capaz de continuar a ser um acrobata.
Chaplin não suportava o contacto concreto, directo, com o
dinheiro. Não tocava em dinheiro. Era Oona que tratava de tudo lá em casa, na
luxuosíssima casa de Vevey, toda ela arte e bom gosto e porcelanas inglesas,
Wedgwoods, Derbys, Staffordshires, Chelseas…
José Luis de Vilallonga regressa a Paris e passa uns dias a
transcrever a entrevista que gravara com Charlie Chaplin, antes de entregá-la,
pronta, ao editor do Paris Match.
Quando a entregou, o editor felicitou-o muito pela qualidade do
material e convocou-o para o dia seguinte de manhã. Podia haver alguma coisa a
corrigir ou a retocar.
Vilallonga apresentou-se na manhã seguinte na redacção do Paris
Match e foi recebido com ares graves pelo editor, que se chamava Gaston
Bonheur. Bonheur felicitou-o uma vez mais pela magnífica entrevista, mas tinha
a comunicar-lhe que o Paris Match não a publicaria. O proprietário da
revista estava de acordo com esta decisão editorial.
- Não a vão publicar?
- Não.
- Mas porquê, se gostam tanto dela
O editor coloca-lhe a questão:
- Suponho que você
gravou toda a entrevista com Chaplin - evidentemente que sim, que tinha
gravado. - E tem consigo as fitas
gravadas? - claro que tinha. - Incluindo
aquela passagem em que Chaplin garante que não é judeu?
- Sim, sem dúvida. Mas que diabo se está a passar?
Que aconteceria se o Paris Match publicasse a entrevista
onde Chaplin declarava sensacionalmente que, afinal de contas, não era judeu?
- Não sei. Aconteceria que…
Aconteceria que os judeus do mundo inteiro cairiam em cima do Paris
Match acusando a revista de manipulação da verdade histórica.
- Mas como, se a voz do próprio Charlie Chaplin lá está gravada?
Os judeus negariam que fosse a verdadeira voz do verdadeiro
Chaplin. Haveria protestos. Haveria desmentidos. Haveria polémicas,
controvérsias, acusações de anti-semitismo. E processos sem fim nos tribunais.
José Luis de Vilallonga, marquês espanhol e jornalista sem
tarimba, estava para a vida dele, a cabeça em água, cheia de confusões.
- Mas ouça… foi o
próprio Chaplin que mo disse, conforme provam as gravações! Não pode haver
polémica. Ninguém poderá atacar o Paris Match. O próprio Chaplin poderá confirmar tudo o que me disse!
Ele, Vilallonga, que não estivesse tão certo disso. O editor conhecia
bem a gente da laia do Chaplin, sempre preparados para emudecer ou para se
esconder logo que lhes cheirasse a problemas e polémicas.
Aos proprietários do Paris Match sempre tinham agradado
as grandes e sensacionais revelações dadas por eles em primeira mão. Todavia,
eram muito refractários a alguma notícia ou revelação que desse escândalo. E
aquela era uma das revelações que seguramente provocaria um escândalo mundial
de todo o tamanho.
- Bom, mas então, como
é que vamos resolver este assunto?
O
assunto seria resolvido do seguinte modo: Vilallonga seria pago pela entrevista,
conforme o contratado, e tal como se o Paris Match a tivesse publicado,
reservando entretanto a revista o direito de destruir as fitas gravadas –
primeira proposta.
Segunda proposta: o Paris Match não pagaria a Vilallonga
nem um tostão (nem sequer as despesas de viagem), e Vilallonga ficaria
proprietário das fitas gravadas e faria com elas o que muito bem entendesse.
E foi mesmo da redacção do Paris Match que Vilallonga
telefonou ao seu agente, pedindo encarecidamente um conselho quanto à decisão a
tomar: ser pago pelo trabalho mesmo sem o ver publicado e ficar sem as
gravações; ficar com as gravações e não ver um cêntimo pelo trabalho –
continuando embora a fazer entrevistas para a revista.
O agente de Vilallonga aconselha-o de imediato a aceitar a segunda
proposta antes que esfrie: não receber nada e ficar com as fitas sensacionais.
E ele assim fez, para grande alívio do editor do Paris Match
.
Logo no dia seguinte, ainda o aristocrata jornalista não tinha
acabado o pequeno-almoço quando alguém lhe telefona da parte da revista Lui -
revista de luxo para o homem moderno, segundo a publicidade.
Era assim: a revista estava disposta a ficar-lhe com a escandalosa
entrevista feita a Charlie Chaplin e por um cachet
muito mais alto do que o Paris Match lhe oferecia.
- Mas como é possível
se os homens da Lui nem leram o
material?
- Não é preciso. Basta-lhes saber que Chaplin declarara não ser
judeu.
A revista Lui – revista de luxo para o homem moderno da
época – publicou a entrevista no número seguinte. E com as revistas apareceram
nos quiosques de toda a Paris uns posters anunciando a publicação a
letras enormes e vermelhas e com o chamariz das palavras de Charlot em discurso
directo: Não, eu não sou judeu.
E tudo o que o editor do Paris Match havia previsto não
foi nada em comparação com o charivari que se armou.
Lui vendeu
mais exemplares nessa semana do que no ano inteiro.
A revista, e o próprio Vilallonga, foram arrasados pela opinião
pública – ou pela opinião publicada - e acusados de falsear, manipular,
estropiar as palavras de Chaplin.
A imprensa de esquerda pôs em causa a veracidade da própria
entrevista. Chaplin nunca teria concedido aquela entrevista. Tudo aquilo era
forjado. Aquilo fazia parte de uma monstruosa conspiração para manchar o
prestígio de um dos maiores artistas do nosso tempo.
O Nouvel Observateur escreveu: não podemos esquecer
que José Luis de Vilallonga é um conhecido fascista que na guerra civil de
Espanha combateu ao lado dos franquistas – o que realmente não era mentira
nenhuma.
Vilallonga recebe ameaças de morte, por um lado, e por outro
recebe propostas milionárias para ampliar a entrevista e desenvolver mais as
declarações de Chaplin naquele capítulo do ser ou não ser judeu – ou do ser e
não se judeu…
O editor do Paris Match esfrega as mãos de contente por
terem sido outros a correr os riscos e ele ter o jornalista em causa sob
contrato. Apressa-se a telefonar a Vilallonga perguntando para quando e com
quem seria a próxima entrevista. Orson Welles? Herbert von Karajan? De Gaulle?
Fellini?
E agora, vamos a saber: qual foi a reacção de Charlie Chaplin a
tanto alvoroço?
Nenhuma.
Pois não, Chaplin nunca confirmou nem desmentiu os dizeres da
entrevista concedida a José Luis de Vilallonga. O que levaria o mesmo
Vilallonga a escrever nas suas memórias (“não autorizadas”) que Chaplin, de
facto um dos maiores artistas do nosso tempo, além de ser e não ser judeu… era
um cobarde.
Nada existe mais do que aquilo que não existe (ou daquilo de que nunca se fala!).
ResponderEliminarÉ uma grande verdade.
O gigante, o ícone, Ch. Chaplin não passaria afinal, como homem, na vida real, de um cobarde de merda?...