UM BILHETE, UM
RETRATO E UM ANEL
Há horas nesta vida que são mesmo sei lá o quê – do diabo? Horas,
coincidências, azares, predestinações…
No dia 24 de Abril
de 1864, Meyerbeer, o rei da ópera parisiense, o judeu mais odiado por Wagner,
cai à cama gravemente doente. Ainda assim, no seu apartamento da Avenue
Montaigne – dizem que modesto, apesar de ele ser um dos mais populares, e
certamente dos mais bem pagos compositores do tempo – superintende uma equipa
de assistentes que copiam as partes cavas da sua última partitura, L’Africaine.
E no dia 2 de Maio
desse 1864, Meyerbeer solta o último dos seus melhores suspiros e apaga-se,
morre.
E no dia 2 de Maio
desse 1864, depois de ter corrido a meia Europa de Viena, de Zurich, de Milão,
de Basileia, Herr Pfistermeister (Franz Seraph von Pfistermeister), o
secretário particular do rei solitário, sonhador e sentimental chegado dois
meses antes ao trono da Baviera, encontra finalmente, em Sttutgart, o homem que
procura, Richard Wagner, o eterno fugitivo dos credores.
Herr Pfistermeister
entrega a Richard Wagner, da parte do seu rei, um bilhete, um retrato e um
anel. Ou dizendo de outra maneira, Pfistermeister oferece a Wagner a protecção
pessoal do novo rei da Baviera, o que equivale a dizer que oferece a Wagner a
redenção de vida, o que ainda equivale a dizer que oferece a Wagner os meios de
se livrar para sempre dos seus algozes credores, e os meios de realizar todas
as suas mais caras e improváveis fantasias artísticas.
Não, Wagner nunca
julgara possível que tal prodígio pudesse algum dia acontecer. E deve ter
ficado especado, paralizado, de boca aberta, a olhar para Herr Pfistermeister,
sabe-se lá se desconfiado. Aquilo seria alguma partida que algum dos seus
amigos lhe estava a pregar? Seria uma cilada? Seria um truque abjecto de algum
dos seus (muitos) credores?
Não era. Não era
nada disso. Era verdade. Era real. Wagner estava a olhar para o homem sem pinga
de sangue. Acho eu que devia estar – como eu estaria. E mesmo os seus mais
próximos, ao saberem da novidade a custo se refizeram da estupefacção. E porque
se lembravam de o ter ouvido dizer num dia em que a vida lhe andava para trás,
muito para trás, vocês verão que um dia, de
repente, os véus do destino se abrirão para mostrar ao mundo a minha mais
indescritível felicidade.
E
para que essa felicidade fosse ainda mais indescritível e inominável, no
preciso dia em que o emissário do rei lhe traz a protecção régia e o convite para
o palácio, outro emissário lhe chega com mais novas de alegria ao comunicar-lhe
o falecimento nesse mesmo dia do seu
maior inimigo – de raça e de arte – Meyerbeer.
Wagner confessa a
Cosima que por outro lado, e pensando bem, a morte do detestado Meyerbeer
naquele preciso dia foi uma pena. Foi uma pena e foi um golpe de sorte para
Meyerbeer. E foi golpe de sorte porque assim, morto, a providência poupava
Meyerbeer de assistir, sem dúvida cinzento de raiva, ao triunfo final do seu
inimigo Richard Wagner.
E mais nada. Como
disse, a protecção régia vai libertar Wagner de todas as atribulações de tipo
material que lhe envenenavam a alma, libertando-lhe por consequência o estro
para os mais altos vôos de arte.
Naquele dia 2 de
Maio de 1864 Wagner tinha cinquenta e um anos. Os mesmos que Verdi.
Moral (uma das várias possíveis...) da história: sem patronos pouco (ou nada) se consegue.
ResponderEliminarSem dúvida, prego.
ResponderEliminarMas sem talento, nem tenacidade, não se conseguem bons patronos.
E dois anos mais tarde a Europa mudava: a Prússia batia a Áustria, numa célebre peleja, abrindo o caminho para o ansiado nascimento da Alemanha, sob a sua égide - o qual, por seu turno, acarretaria o fim do Reino da Baviera...