TRISTÃO E ISOLDA PASSEIAM
PELO
GRANDE CANAL
Não
me tinha dito já numa carta que conhecia Veneza? Pois bem: o palácio onde estou
agora e mais ou menos a meio caminho entre a piazzetta e o Rialto, onde o canal
faz um cotovelo. É aí o Palazzo Foscari (agora feito quartel), que fica muito
perto do meu. Em frente, tenho o Palazzo Grassi, que o proprietário, signor
Sina, está a restaurar.
Instalado no Palácio Giustiniani-Brandolin, Wagner escreve
a uma cara e venerada amiga, Elisa Wille, a 30 de Setembro de 1858.
Viera fugido de Zurich, a 17 de Agosto de
1858, estivera até 25 desse mês em Genéve, e depois partira para Veneza. Não
era a primeira vez que estava em Itália. Já tinha ido anos antes a Turim e a
Génova – onde por sinal adoecera.
Em Veneza, em 1858, começa por alugar um
quarto na Riva degli Schiavoni, a meias com um amigo, Carlo Ritter, mas foi
depois viver sozinho para um apartamento nesse Palácio Giustiniani-Brandolin,
no Grande Canal.
A saúde é que nem sempre o vai favorecer
na estadia veneziana. Cólicas intestinais e diarreias, problemas
gastro-nervosos, furúnculos nas pernas…
Na tarde de 29 de Agosto desse ano de 1858, Wagner chegava
a Veneza. Subia o Canal. Chegava à piazzetta
e todo ele eram impressões melancólicas e mau humor meditabundo. Grandeza,
beleza, decadência, tudo isso a um tempo, é o que os seus olhos podem contemplar.
Por outro lado, alegra-se: não há o mais pequeno sinal da próspera modernidade
que ele odeia, nenhuma vulgaridade que lhe sugira o mundo dos negócios (que
deixara para trás na Suíça).
A Praça de S. Marcos causa-lhe uma
impressão de fábula, fala-lhe de um mundo antigo, muito distante, e pensa que a
paisagem se vai harmonizando excelentemente com o desejo de solidão que o levara
a Veneza. Nada ali lhe lembrava a dura vida real e tudo se figurava para ele
com se estivesse habitando uma obra de arte.
O silêncio típico do Canal iria influir muito agradavelmente
no espírito de Wagner e o Palácio Giustiniani era qualquer coisa de majestoso.
Altas e vastas salas. Podia movimentar-se à larga e isso satisfazia-o. O
apartamento era para fazer as vezes de invólucro para o mecanismo criativo que
ele era. Esperava o seu Erard – o piano – que naquela imponente sala haveria de
soar magnificamente.
Sobre a mesa de trabalho colocava um
retrato do pai, um rosto nobre e sofredor, de traços delicados. Gostava muito
daquele retrato.
Às cinco saía para comer alguma coisa. Depois, passeio
pelo jardim público. Desemboca em S. Marcos. A praça produz nele um efeito
teatral. A multidão que o rodeia é–lhe indiferente, não conhece ninguém na
cidade, incomoda-o um tanto, mas também lhe excita a imaginação. Por volta das
nove apanha uma gôndola e regressa a casa. Há uma lâmpada acesa. Lê um pouco
antes de se deitar.
Mas a sua presença na cidade já é notícia nas gazetas.
Viver da arte para te
agradar, para te consolar: eis o meu desígnio, que corresponde absolutamente à minha natureza, ao meu destino, à minha vontade, ao meu amor. Aqui terminarei o
meu Tristão, e com ele regressarei a ti, se tal me for
permitido, para te ver, para te fazer feliz. É esse o mais belo e o mais
sagrado dos meus desejos. Ânimo, pois! Herói Tristão! Heroína Isolda!
Ajudem-me!
Pelo texto das notícias que saíam dava-se a entender que
a chegada de Richard Wagner a Veneza decorria de motivações políticas, e que
Veneza seria a cidade ideal para ele se poder escapulir mais ou menos em
segurança para a Alemanha, com escala em Viena. Liszt avisara-o. Que tivesse
cuidadinho. E que não contasse muito com o sucesso das óperas dele em Itália.
Itália não era terreno adequado para ele.
Pouco depois de chegar, a polícia tinha-o visitado e
tinha-lhe pedido o passaporte. Passaporte que ficara retido e fora examinado
pelas autoridades…eu a pensar no conjunto
de medidas desagradáveis que seriam impostas…e lhe fora devolvido com a garantia
de que nenhum óbice seria colocado à sua estadia na cidade.
É a Áustria que me
concede decididamente asilo, e isto é digno de nota.
Há um profundo silêncio, e do âmago desse
silêncio nasce música. Wagner vai à janela. Profanando o silêncio, uma gôndola
toda iluminada de cores variegadas aparece no Canal, carregada de cantores e
músicos populares. Atrás dessa outras gôndolas aparecem com gente a ouvir e a aplaudir.
Ocupam o Canal a toda a largura e deslizam muito suavemente à flor das águas.
Cantam canções. Belas vozes, instrumentos sofríveis. Chegam à curva e
desaparecem.
As cartas para Matilde Wesendonck estavam
a chegar, devolvidas, intactas. A comunicação entre os amantes era feita
através da amiga Elisa Wille.
Ontem
vi-te em sonhos; estavas no terraço,
vestida com roupas de homem e com um chapéu de viagem na cabeça. Olhavas na
direcção que eu seguira ao ir-me embora, eu vinha pelo lado oposto, direito a
ti. Procurava uma maneira de te dar um sinal da minha presença e comecei a
chamar-te baixinho… Matilde… Matilde…
Era o único hóspede do Palácio
Giustiniani-Brandolin. Não encontrara nada de mais económico para morar. Nem
nada de mais cómodo. Encantara-se com o grande salão, o enorme salão. O tecto de
afrescos era passável. Mas o chão era de mosaico, esplêndido. Apercebia-se
entretanto do que ali havia que lhe parecia menos acolhedor, e por isso mandou
tirar as portas que do imponente quarto de dormir deitavam para um
gabinetezinho contíguo. Nas cores predominava o vermelho, excepto no quarto de
dormir, decorado em verdes. Um corredor bastante longo para o convidar a um
passeio matutino,abrindo de um lado para uma varanda sobre o Grande Canal, e do
outro para o jardim interior muito bem cuidado.
Todo
o dia fui assaltado por violenta nostalgia, por um tédio doloroso de vida…
Claras estrelas na noite do Canal. A lua
no seu último quarto. Uma gôndola. O grito distante e cantado dos gondoleiros a
chamarem-se jnspira-o.
Vai à varanda. Não tem sono. A noite no Canal é bela e
pura.
Quando,
pelo fim das tardes ,deslizo sobre as
águas numa gôndola e observo a superfície do mar, liso e imóvel como um
espelho, a casar-se no horizonte com o
céu, tenho diante de mim o quadro da minha vida presente: o que para mim é
presente, passado e futuro pouco se pode distinguir, ou poderá distinguir-se
tanto quanto no horizonte do fim das tardes se pode distinguir o que é mar e o
que é céu.
Será pelo halo fabuloso da cidade, o certo é que Wagner
se sente envolvido por um círculo de encantamento melancólico-cordial que muito
lhe melhora a disposição. A passear de gôndola, indo até ao Lido, sentia no ar
ressonâncias e vibrações de violino.
Fugira de Zurich acossado pelos credores.
Não conseguindo deitar-lhe a mão, os credores mandaram apreender o Erard, o
piano, como penhor. Foi preciso portanto que alguém, não sei quem,
regularizasse os contenciosos em Zurich (talvez o músico Ignazio Heim) para que
o piano pudesse ser despachado para Veneza.
E eis que no dia 6 de Outubro chega finalmente o piano.
Apressara-se a soltá-lo da embalagem, a colocá-lo no lugar que lhe destinara e
a experimentar-lhe a doce sonoridade, leve e algo melancólica. E de novo se
sente atraído para a música. Como se
chamasse o Cisne para reconduzir à sua terra o pobre Lohengrin.
E começa nesse mesmo dia a composição do 2º acto de Tristão. Aquela atmosfera onírica de
Veneza proporcionava-lhe um feliz reencontro com a música, a que ele chama a
existência.
O Tristão ainda me
custará muita canseira. Mas dá-me a impressão de que quando estiver acabado um
período maravilhoso da minha vida será concluído e eu poderei admirar o mundo
com calma clareza e espírito avisado, e através do mundo admirar-te a ti.
Se a fantasia dele estivesse em
actividade tudo lhe pareceria bem. O trabalho espiritual, quando se pode
desenvolver sem obstáculos, é alta compensação para os espíritos atribulados. E
tais intelectuais fervores, entendia ele, tiravam seu alimento do coração. Tudo
o resto, o mundo em redor, era para ele um deserto, estranho, frio. Não tenho um olhar, uma voz carinhosa. Jurei
a mim mesmo não procurar ter nem um cãozinho ao pé de mim. Não tenho junto de
mim nenhum ente querido.
Faz agora um ano
acabei o poema do Tristão e dei-te o último acto.
Tu vieste comigo até a poltrona em frente ao divã, abraçaste-me e disseste:
“depois disto não desejo mais nada”. E naquele dia 18 de Setembro de 1857,
àquela hora, eu nasci verdadeiramente para uma nova vida.
Meditava muito durante suas passeatas
pela cidade. Uma ideia recorrente era a do casamento consumado em idade muito
juvenil. Salvo raras exepções não tinha conhecimento de nenhum casamento
contratado na primeira juventude que não se tivesse revelado um enorme erro.
Que interesse pode ter uma união?, pergunta-se
nos diários. O que é que une um casal por toda a vida, uma vida para que o
casal foi empurrado na fase da sua mais tumultuosa juventude? E havia o caso
estranho dos pais, que mesmo depois de passados da miséria de vida ao obtuso
bem-estar da maturidade esquecem tudo quanto passaram e sem a mínima preocupação
de espírito deixam que os filhos se precipitem no mesmo erro.
Ontem
senti-me miserável. Para quê viver? Porquê viver? Será cobardia minha, ou será
coragem?
Das
nossas canções eu só tinha comigo alguns esboços a lápis e um tanto difíceis de
decifrar, o que me fez temer não poder apreender-lhes devidamente o conteúdo se
a memória não viesse em meu socorro. Executei-os então ao piano. Transcrevi-os
com cuidado. E foi esse o meu primeiro trabalho neste 2º acto de Tristão.
Era bom que experimentasse as asas antes de tentar voar.
Wagner continuava a pensar que nunca até aí tinha
composto alguma coisa que superasse as canções que dedicara a Matilde. E até
quanto ao futuro, nesse Outubro veneziano ainda duvidava que pudesse vir a
fazer melhor, ou sequer a igualar o que fizera com aquelas canções.
Andava a ler pouco. Raros livros o
atraíam naquela fase da vida, e acabava sempre por recorrer ao seu
Schopenhauer, o que lhe dava um impulso quase sobrenatural no tocante ao
concatenar das ideias.
Lia as cartas de Humboldt. Quem
conhecesse bem Humboldt acharia por certo que aquele notável cientista era
pessoa simpática e muito agradável. Um
homem como ele aqui ser-me-ia de muita utilidade. Para os espíritos
criativos e produtivos era necessário estabelecer amáveis relacionamentos com
naturezas receptivas, nem que fosse só para alimentar a necessidade que se tem
de alguma expansão intelectual. E quando
se avaliam os resultados de tais relacionamentos regozijamo-nos a pensar que a nossa ilusão de sermos plenamente
compreendidos não era senão isso mesmo, ilusão.
Recordava muitas vezes as conversas havidas com o seu
amigo Schopenhauer. Recordava tê-lo ouvido dizer que era mais fácil destacar os
erros, os defeitos e as inexactidões contidos na obra de um grande espírito do
que expor nitidamente, completamente, o valor dessa obra. As imperfeições são
nesse caso acidentes, e em geral apareciam bem definidos, o que dava azo a
serem mais facilmente detectáveis na sua inteireza. Mas o que faria
inesgotável, ou mesmo insondável, a excelência de uma grande obra seria a marca
pessoal que o génio criador lhe imprimia.
Da
criatura comum, à qual ofereço a minha compaixão, sinto-me obrigado a fugir
logo que ela exija de mim uma comunhão de alegria. Foi esse o motivo da minha
última desavença com minha mulher. A pobre interpretou à maneira dela a minha
decisão de não franquear nunca mais o limiar da vossa porta e imaginava que eu tivesse
tomado essa decisão na sequência de uma ruptura entre nós.
Sentia na solidão veneziana que ninguém
se ocupava dele, ninguém queria saber dele a sério, fervorosamente. Pensava
então mais uma vez no amigo Schopenhauer e começava a concordar com ele, e
consequentemente a duvidar da real possibilidade de uma verdadeira amizade
entre as pessoas. Tudo aquilo a que era atribuído o nome de amizade seria de
relegar para o reino fabuloso da fantasia.
Sentado ao piano, entre hesitações, dúvidas, demoras,
descreve por música as fugazes delícias do reencontro dos dois enamorados,
Tristão e Isolda.
Acontecia-lhe, ao instrumentar, abandonar-se com alguma
complacência ao gozo do seu próprio trabalho, da sua criação, enquanto ao mesmo
tempo se deixava levar por memórias e pensamentos de toda a
ordem,desencontrados, desirmanados, provavelmente evocando a natureza peculiar
do poeta, ou, enfim, do artista, que ele julgava eternamente vedada à compreensão
do mundo circundante no estridente contraste entre o maravilhoso e o vulgar da
vida. Enquanto esta última categoria, o vulgar da vida, provinha exclusivamente
da experiência dessa mesma vida, a visão poética recolhia e assimilava de tudo
quanto desse sentido e significação aos frutos dessa experiência de vida.
Estaríamos então a lidar com o fenómeno pelo qual é concedido ao homem, de
forma apriorística, adquirir consciência e conhecimento das coisas.
Explico-me: o mecanismo
do espaço, do tempo e da causalidade através do qual o mundo se nos apresenta
sensível já pré-existe no nosso cérebro e é propriedade da nossa mente antes de
ser conhecimento experimentado. Se assim não fosse, nunca poderíamos reconhecer
as coisas.
Pois sim, mas havia coisas, estados, situações que
transcendiam os condicionamentos causais, espaciais ou temporais, e cuja
consciência deles era efectiva, ainda que sem os subsídios oferecido por
qualquer meio auxiliar. Seria uma qualquer coisa, estado, situação, que
Schiller classificava como verdadeira, e
justamente por nunca ter acontecido. Um qualquer coisa, estado, situação que só
ao poeta seria dado reconhecer, e assim devido à sua natureza de poeta e ao
correspondente dom de poder pressentir e acrescentar uma forma ao pressentido.
E esta configuração do poeta confirmava-a Wagner na sua
própria pessoa e no seu trabalho. As concepções poéticas que lograva precediam
sempre, e de largo, as experiências pessoais, ou os conhecimentos objectivados…
a minha educação moral pode dizer-se
nascida nas minhas concepções apriorísticas. O Holandês ( do Navio Fantasma), o Tannhäuser, o Lohengrin, os Nibelungos, Wotan, estiveram-lhe na mente
antes de deles ter a experiência. E seria nesse momento o caso do Tristão, e das relações dele, criador,
com Tristão, a criatura, poética e
musical. E digo com firmeza que nunca uma
ideia penetrou tão fundo e com tanta determinação na minha experiência.
Vai dar a um ponto de venda de criação e
aprecia a mercadoria exposta, que lhe parece higiénica e apetitosa. Olha para
um lado e vê um homem a depenar um frango. Olha para o outro lado e vê outro
homem a tirar uma galinha da capoeira e depois a torcer-lhe o pescoço… o grito agudo do animal, primeiro, e depois
os lamentos pouco a pouco mais débeis ao morrer trespassam-me a alma…
Tomaram-me
por alguém que experimenta maior compaixão pelas naturezas inferiores do que
pelos seres superiores. Porque o ser superior o é por saber elevar-se através
dos próprios infortúnios às alturas da resignação, ou porque tem em si as
faculdades necessárias para atingir as alturas. O ser superior está próximo de
mim. É meu igual. Com ele me posso irmanar em alegre comunhão. Aí está porque
nutro menos compaixão pelos homens do que pelos animais. Aos animais foi negada
a capacidade de superação da dor e a resignação e a calma que dela deriva. É
por isso que digo que o Homem recolhe a existência falhada do animal, reconhece
o erro da existência, torna-se redentor do mundo – mas tudo isto será por mim
esclarecido no terceiro acto do meu Parsifal, na manhã de Sexta-Feira Santa.
Sim, já pensava no Parsifal.
E já esboçara alguns versos que seriam a base de um futuro, e por enquanto
impreciso, Parsifal. Ocorria-lhe uma
figura de mulher. Singular mulher, fascinante e demoníaca. Se algum dia
chegasse a concluir aquele poema teria conseguido alguma coisa de
verdadeiramente original.
Pois
bem, agora que Sawitri (Parsifal) encheu o meu espírito grávido de
pressentimentos e tende a assumir a forma poética… e agora que na fase final do
meu trabalho artístico me inclino com plástica calma contemplativa sobre o meu Tristão,
agora, sim, que tal prodígio me invade,
sinto-me cada dia mais longe do mundo, como se o mundo tivesse desaparecido da
minha experiência de vida comum e objectiva.
Interessava-se pelo budismo e lia sobre o
assunto. Aprendia que Buda não estivera de acordo com a admissão de mulheres na
comunidade dos eleitos. As mulheres, por força da sua própria natureza, seriam
demasiado dominadas pela sensualidade e pelo capricho para poderem atingir um
alto grau de recolhimento e contemplação, única via individual para redenção.
Mas por fim o mestre, por influência de alguém, contemporizou, e as mulheres
tiveram acesso ao círculo santificado.
O apartamento no Palácio Giustiniani era
muito belo, indiscutivelmente, muito belo e terrivelmente frio. Nunca em dias
de vida Wagner sentira o corpo a inteiriçar-se de frio, não, nunca como
naqueles dias de Itália, na bela Veneza e no céu claro e límpido.
As gôndolas passariam a funcionar para
ele apenas como meio de transporte. Passear nelas era impossível. Gelava-se
dentro delas por via do vento norte que
soprava constantemente. E sentia muito a falta desses passeios de gôndola.
Estava reduzido à piazzetta, ao jardim público, ao caminho de meia horita
pela Riva degli Schiavoni, acotovelando aquela multidão indescritível de todas
as horas.
Veneza era uma maravilha. Mas só isso:
uma maravilha.
E a escrita do Tristão vai avançando.
Isto sim, é música!
Poderei
levar toda a vida a trabalhar unicamente dedicado a esta música. Aquela
música ia-se tornando bela e profunda e os mais sublimes momentos musicais
fundiam-se perfeitamente com a Ideia. Sentia igualmente que aquela música o
poderia esgotar. Nunca compusera nada que se assemelhasse àquele 2º acto de Tristão. Jogava tudo naquela partitura,
e quando a obra estivesse pronta talvez não quisesse mais ouvir falar dela.
Eu vivo, eterno,
nesta música…
Tentei
tocá-la ao piano. Não consegui o que queria. Fiquei penalizado. Não conseguia
avançar. Mas o Espírito bateu à minha porta. Fui abrir, e diante de mim
apareceu a Musa suavemente benéfica. Sentei-me novamente ao piano e pude
transcrever rapidamente o que antes me parecera impossível, como se já soubesse
aquela música de memória há muito tempo.
Mas não, não te
arrependas daquelas carícias com que enfeitaste a minha pobre vida. Pelo teu
coração, pelos teus olhos, pela tua boca fui eu resgatado às servis obrigações
do mundo.
Pensava em Matilde, e pensava no seu Tristão. E pensava exprimir no seu Tristão a profunda arte musical do
silêncio. A isso o convidava a solidão e a privacidade em que estava a viver, e
que o fariam readquirir, e reunir, as forças vitais que julgara despedaçadas,
dispersas. Já andava dormir melhor e estava certo de poder conservar essa graça
preciosa do sono tranquilo e profundo até acabar o trabalho. Sempre quero ver, depois, que cara me
apresentará o mundo.
Dia
1 de Novembro. Dia dos mortos. Estava à minha varanda a fixar a vista no
imperceptível movimento das águas enegrecidas do Canal. Soprava um vento
raivoso, prenúncio de tempestade. Ergui a mão e apoiei-a na balaustrada de modo
a subir para o parapeito e saltar. Se saltasse ficaria liberto de todos os meus
sofrimentos.
Até por volta das cinco da tarde
costumava deixar-se estar por casa a trabalhar, a trastejar - era ele que
preparava o chá da manhã. Às cinco é chamado o gondoleiro… porque estou num sítio que quem quiser vir ver-me terá de percorrer um
longo caminho de água... e ia de gôndola até ao restaurante, na Praça de S. Marcos, e aí se encontrava com o amigo Ritter. Jantava. Davam um passeio e
abancavam no Caffè della Rotonda para
comer um gelado. Às oito estava em casa.
O
maravilhoso contraste entre a melancólica austeridade do meu apartamento e o
constante bulício da praça, o flutuar da multidão, os gondoleiros barulhentos,
e o regresso, ao longo do Canal, pelo crepúsculo, tudo isto me concede uma
impressão de bem-estar e de paz.
Àquela norma de vida nos primeiros tempos venezianos
Wagner se limitava. Ainda não sentira desejo de visitar as grandes obras de
arte que a cidade guardava. Poderia fazê-lo apenas entrado o inverno. Por
enquanto, comprazia-se com a agradável rotina do nascer e do morrer de cada um
dos seus dias.
Não poderia ter
escolhido melhor lugar de estadia e mais adequado às minhas necessidades. Este
incessante espectáculo teatral que é a vida desta cidade, o espectáculo que
quotidianamente se renova e mantém vivo e fresco cada contraste não deixa
nascer em mim o desejo de desempenhar nele algum papel pessoal.
Aos domingos, na praça, tocava a banda militar, e
misturado nos ajuntamentos Wagner ouvia trechos de Tannhäuser e de Lohengrin como
se aquelas músicas nada tivessem a ver com ele.
Mas já era uma
figura conhecida. Os oficiais austríacos cumprimentavam-no com grande
deferência – o que o surpreendia, aliás.
Se a saúde não o satisfazia em pleno,
tentava pelo menos não o perder o humor, ou de o manter, como dizia, límpido.
Era preciso sorrir quando o Espírito, a Musa, se fazia presente.
Sei
que como homem não poderei mudar muito. Conservo as minhas pequenas fraquezas,
gosto de viver em ambientes confortáveis, gosto de tapetes e de belos móveis,
gosto de me vestir de sedas e veludos… e gosto de manter em dia a minha
correspondência…
No dia 1 de Dezembro estava de cama.
Aliás, recolhera à cama oito dias antes e nesse dia levantara-se e aguentara-se
de pé até o sentarem numa poltrona, de onde foi levado outra vez para a cama à
força de braços. Chamava àquilo doença externa. E paradoxalmente considerava-a
benéfica para a saúde.
Por doente que estivesse, o intelecto
mantinha-se activo, muito activo, congeminando planos, esboços musicais,
situações poéticas. E problemas filosóficos. Relia o sacramental Schopenhauer. Pensava
possível ampliar o sistema schopenhaueriano de pensamento. Pensava no meio de
placar a vontade por meio do amor. Não um amor abstracto, provavelmente
filantrópico, não. Pensava no amor que brotava do desejo sexual mesmo, o amor
que se esboça na recíproca inclinação entre homem e mulher. É interessante que eu, aqui como filósofo e
não como poeta, possa valer-me do material conceptual que Schopenhauer me
oferece.
Mas nas reflexões da convalescença
entende que as representações filosóficas que faz o conduzem em profundidade e
em amplitude muito mais longe. Indagava sobre a determinação precisa do estado
no qual uma pessoa estaria pronto a reconhecer uma ideia, reconhecer sobretudo
o estado de genialidade em si, que ele não concebia como uma condição
automática do intelecto, da vontade. Seria uma elevação do intelecto do
indivíduo como órgão de reconhecimento da espécie; expressão da vontade mesma,
sim, mas da vontade como coisa em si. E só esse reconhecimento poderia
identificar a felicidade, o entusiasmo, os supremos momentos de genial intuição
onde Schopenhauer apenas conhecia o silêncio dos impulsos individuais.
No dia 8 de Dezembro respirava enfim um
pouco de ar fresco. Levantava-se. Aquele seu último episódio doentio deixara-o
na dependência de toda a gente, visto que não se podia mexer sem ajuda.
Servia-lhe como experiência que ia adquirindo de si mesmo. Fora os médicos e os
criados não tinha a quem dirigir a palavra. E, o que era mais estranho, não
sentira necessidade de companhia. Um certo príncipe russo visitara-o. Homem
inteligentíssimo e de apurado sentido musical, sem dúvida. Todavia, quando o
príncipe se despediu ele sentiu-se bastante feliz, extraordinariamente feliz… a partida dele, muito sinceramente o digo,
deu-me muito mais prazer do que a chegada. Entreter-se com uma companhia
custava-lhe sempre algum esforço. Um esforço que de resto reputava de inútil e
sem finalidade. Mas gostava de ver o movimento dos criados, de lhes ouvir os
ditos. Em cada um deles fala o homem simples com todas as qualidades e todos
os defeitos.
E foi à cidade. Meteram-no numa gôndola e ele foi ver o
movimento incessante da multidão na piazzetta. Jantou num restaurante e
regressou ao severo palácio que lhe servia de morada. Silêncio e austeridade.
Uma lâmpada deixada a arder para ele. No
meu íntimo há a segura e não ambígua sensação de que é aqui o meu mundo e que
deste meu mundo não poderei daqui em diante separar-me sem dor. Sinto-me feliz
aqui.
Mas alguma coisa, uma resistência, um fatalismo, estava
nele a opor-se ao acabamento do Tristão.
Foi por alturas do Natal. Sentia não dever apressar o trabalho por causa disso.
Antes pelo contrário, talvez. Compunha o Tristão
como se pelo resto da sua vida não quisesse trabalhar noutro projecto. Mas como
compensação a essa resistência e a esse fatalismo tinha a certeza de que o que
estava a criar era o que de mais belo alguma vez na vida criara.
Na passagem de ano recebe a visita do amigo Carlo Ritter,
de regresso a Veneza, e que daí em diante passa a visitá-lo todos os dias por
volta das oito. Ritter dá-lhe notícias de Minna, a mulher, cuja saúde mental
piorara, mas que o amigo achara com melhor aspecto, apesar de tudo. Não gostaria que nada faltasse ao bem-estar
dela, e pela minha parte tudo farei para isso.
Estava preparado para renunciar à Alemanha, com o coração calmo e frio, sei que o devo fazer. Mas nada resolvo quanto ao meu
futuro. Salvo uma coisa: acabar o meu Tristão.
De Dresden recebe uma espécie de proposta que é também
uma intimação… de lá me deslocar com um
salvo-conduto, apresentar-me ao juiz, e deixar que organizem um processo contra
mim, de forma que, quando fosse condenado, pudesse estar seguro de contar com a
clemência do rei. Tudo isso pareceria extremamente sedutor a quem acreditasse
poder tirar vantagens submetendo-se a audiências no tribunal, sofrendo com os
inevitáveis e capciosos sofismas jurídicos. E que ganharia ele com isso?
Exasperações, angústias, tudo o que sempre o perturbara E em troca de quê? De
uma ou outra representação das suas óperas…
Não dá seguimento à proposta de Dresden. Mas está ciente
de que a sua vida e trabalhos estariam suspensos sabia-se lá por quanto tempo,
e dado que nenhuma das suas óperas poderia subir à cena sem a sua presença nas
fases preparatórias.
O único príncipe que demonstrava firme benevolência para
com ele era o Grão-Duque de Baden. E o Grão-Duque já lhe fizera saber com toda
a certeza que poderia contar com uma estreia da nova ópera, o Tristão, em Karlsruhe, ensaiada e
dirigida por ele. Possivelmente a 6 de Setembro do ano que acabava de entrar,
1859, a coincidir com o onomástico do Grão-Duque. Da parte dele, tudo bem, nada
contra. Seria mais questão de saber se o príncipe estaria em condições de
manter a promessa e se o Tristão iria
estar pronto a tempo.
Basta. O que mais
importa é que o Tristão tenha sucesso. E terá. Terá até mais sucesso
do que qualquer outra das minhas óperas.
9 de Março de 1859. Acaba de compor o 2º acto de Tristão. Está naturalmente de óptimo
humor. O trabalho correra-lhe a contento. Pensa começar a esboçar ainda em
Veneza o 3º acto, para depois o instrumentar quando estiver de regresso à Suíça.
Para o amigo Ritter e para um visitante e admirador,
Winterberger, trazido por Ritter, concorda em tocar ao piano as passagens
principais do que acabara de compor e sente reforçada a convicção de ter
escrito alguma coisa de muito belo.
Todos os meus
trabalhos anteriores se reduzem a quase nada, pobres deles, em confronto com
este segundo acto. E assim é como se estivesse a matar todos os meus filhos,
menos um, este. Só conhece a palma, o galardão, aquele que sofreu a coroa de
espinhos, e essa palma pousa, suave, na minha mão e assentará depois na minha
cabeça como a mais pura e aérea asa de um anjo portador da mais alta
consolação.
E no dia 25 de Março de 1859…
E assim, minha boa
amiga, disse adeus em seu nome à minha Veneza de sonho. Como se atravessasse um
outro mundo envolvo-me nos estrépitos, nas estradas, nas poeiras, na aridez…
Vai a Milão, a Verona. Depois atravessa os Alpes. Pára em
Lucerne.
…Veneza já me fica
longe, como uma cidade fantástica e inexistente, apenas entrevista na minha
imaginação. Um dia, Veneza poderá ouvir o sonho que nela converti em sons.
Ele ainda não o sabe, mas voltará.
Voltará a Veneza para
morrer.
E haverá melhor Cidade para se morrer vivendo, do que Veneza?
ResponderEliminarObrigado!
ResponderEliminarConfesso que começo a gostar quase tanto deste "blogue", quanto gostava do seu programa homónimo na «Antena 2»...