domingo, 8 de dezembro de 2013

               O ENCENADOR QUE SAIU DO FRIO

À entrada dos anos 70 do passado século XX, o último dos herdeiros da dinastia Wagner, Wolfgang, neto do mestre, entendia que o prestígio e a importância do Festival de Bayreuth no panorama social e cultural europeu começava a ir por água abaixo e que alguma coisa teria de ser inventada em ordem a um reavivamento.


Outros e novos cantores? Difícil. Sim, difícil encontra-los disponíveis para aturar as madurezas do já envelhecido e todo-poderoso Wolfgang Wagner. E com respeito a novos e bons chefes de orquestra, idem. Encenadores! A salvação só poderia estar aí. Vamos embora rapazes com jeitinho para montar espectáculos, impõem-se novas ideias para suceder à revolução de meu falecido irmão Wieland, vá, ideias novas, depressa.


Havia na altura em acção uma estimável dupla encenador-cenógrafo nas pessoas de August Everding e Joseph Svoboda. Tinham montado um Navio Fantasma, muito bem, espectáculo admirável mas não o bastante no capítulo da restauração do velho impacto das produções do Festival.
E Wolfgang lá pensou que o melhor seria deitar a mão a alguma coisa de realmente heterodoxo, quando não mesmo de provocador. E cá vem a ideia de levar a Bayreuth encenadores de ideias avançadas, de estéticas eventualmente abstrusas, alguém até que não tivesse relação alguma com o mundo wagneriano. Ou mais: Wolfgang já dava de barato que a muito wagneriana redenção do Festival poderia vir de um homem que não conhecesse nem de ouvido a obra do avô Richard. Ou mais ainda: um homem que nunca tivesse visto uma ópera, que nem soubesse como funcionava esse estranho espectáculo.


Wolfgang queria produzir um novo Tannhäuser e lembrou-se de confiar o encargo ao então muito celebrado encenador milanês Giorgio Strehler. Que recusou o convite. Que há-de ser, quem não há-de ser? Porque não um rapaz pouco conhecido, que é do outro lado do Muro mas que foi aluno dileto do Walter Felsenstein, Götz Friedrich?


E assim foi. A contratação de Götz Friedrich era um risco mas um senhor risco. Um risco que Wolfgang se dispunha calculadamente a correr. E outro risco estava a ser contratação crescente, e por questão de cachet, de cantores vindos também da outra Alemanha, a de Leste, consideravelmente mais baratos do que os ocidentais.

                   

Risco porquê, senhores? Estava-se em 1972, não esquecer, e o grande risco era desagradar ao governo da Baviera que entrava com bom dinheiro para o sustento do Festival e não queria nem ouvir falar na hipótese de estar a pagar a comunistas. E o risco, outro, e parecido era cair nas antipatias da maçonaria de Bayreuth, a Sociedade dos Amigos de Bayreuth, que não morriam de simpatias comunistas e que além da autoridade do seu estatuto moral também a exerciam pelo estatuto financeiro de ajudar a custear os luxos e bizarrías que viessem à cabeça dos Wagner.
Götz Friedrich nunca na vida tinha trabalhado numa ópera de Wagner. Wolfgang contratara-o às cegas, porque também, em consciência, nunca na vida tinha visto um trabalho de Friedrich na Kömische Oper de Berlim Leste.


Acresce que as diferenças entre o que poderia ser uma estética de vanguarda no quadro da Alemanha Ocidental e o que poderia ser uma estética de vanguarda sob os cânones da Alemanha Oriental eram gritantes. Outro risco, pois claro.



No lado oriental, a palavra de ordem, como seria de prever, era um realismo por assim dizer socialista, ou na base de um materialismo histórico, e com a inevitável e naturalíssima influência exercida pela ideologia política sob a qual os artistas trabalhavam. O tratamento artístico-teatral dado às circunstâncias históricas em que a obra fora criada, mais as circunstâncias históricas e pessoais do próprio criador eram pontos assentes nas concepções estéticas alemãs sob a tutela soviética, e mais determinantes ainda do que os aspectos formais da peça.


Espectáculos dinâmicos, clareza dramatúrgica, precisão cenográfica, contornos fortes na definição de cada personagem, rigorosa direcção de actores – as linhas capitais da estética teatral do outro lado do Muro. O que prometia espectáculos rígidos, sóbrios, despidos, frios.
Quem trabalha na ópera, no teatro musical, deve perguntar-se sempre: porquê esta obra deve ser representada, com vista a que finalidades esta obra deve ser representada, para quem deve esta obra ser representada – cartilha do encenador contratado para aquele Tannhäuser de Bayreuth, em 1972, Götz Friedrich, o encenador que vinha do frio.
E a resposta era dada por ele: Tannhäuser continha uma mensagem muito oportuna para a sociedade dos anos 70. A chave da obra poderia ser encontrada no contexto social e político contra o qual fora escrita, a luta de um Wagner político contra uma ordem política opressora e uma hierarquia social muito vincadamente classista – e com a qual, na visão de Friedrich, o protagonista se confronta ao longo da ópera.
O drama transferir-se-ia então do homem atormentado por uma luta íntima entre o amor lascivo e o amor espiritual para uma crónica do artista (poeta) na relação coma sociedade do seu tempo – em vez da encruzilhada entre Vénus e Elisabeth, o problema da situação do poeta entre a elite de Wartburg.


Como conservar o poder criativo e a integridade artística pretendendo ao mesmo tempo preservar a liberdade num contexto das apertadas regras de uma sociedade da qual o artista necessita como destinatária do seu trabalho e da sua mensagem?
(Ah, pois nenhum artista, suponho eu, nos tempos económico-financeiros que correm se coloca tais problemas…)
O assunto de Tannhäuser toca nesses pontos, eternos pontos excruciantes para o artista de qualquer tempo, olhado como um marginal quando não se conforma aos costumes sociais em vigor. Friedrich acentuava nas notas de programa o lado político e rebelde do Wagner de 1849, mais do que o do Wagner criador, e sem evitar um relance sobre ele próprio Götz Friedrich, um artista que se queria livre a trabalhar num Estado comunista.


 As simbologias próprias da ópera Tannhäuser saíram um bocado baralhadas naquela produção de 1972. Se o protagonista vem do paraíso sensual de Venusberg não irá exactamente dar ao concurso de poesia e canto de Wartburg, irá, em vez disso, confrontar-se com a intolerante e retrógrada casta militar e política da Turíngia, com a opressão social de Wartburg, e também, alegoricamente, da Roma que se afirma no poder papal de condenar ou absolver eternamente o pecador.
As alternativas são escassas. E se o poeta não se sente inteiramente realizado nos braços de Vénus longe disso também se sentirá ao lidar com o autoritarismo dos poderes, os terrenos e os espirituais.


O amor carnal e o amor celestial na dicotomia Vénus-Elisabeth tratou-os Götz Friedrich não como antíteses, mas como faces da mesma moeda, por assim dizer – e coma significativa circunstância de os antitéticos papeis de Vénus e Elisabeth seriam na ocasião, e pela primeira vez na História desta ópera, cantados pela mesma cantora, Gwyneth Jones.


Elisabeth, contrariamente à ortodoxia dramatúrgica de Tannhäuser, não morria em cheiro de santidade, morria sim, como uma mulher envelhecida, gasta e solitária. Assim como o herói Tannhäuser não morria como pecador perdoado e redimido de todos os nefandos pecados de luxúria, morria sim, como um homem cuja tragédia foi o falhanço estrondoso da sua procura de si mesmo. Uma reinterpretação do lugar da religião redentora, e, em suma, uma moral: a crença na tolerância social a substituir, no século XX, a fé na religião e nos respectivos milagres.
Para quem se interessa por estas coisas o DVD desta produção de Bayreuth está aí à venda no mercado. É só o trabalho de bem o procurar – FNAC, Corte Inglês…


Dizem os “interpretadores”, os entendidos, os críticos que a moral nova de Götz Friedrich para acrescentar a Tannhäuser era visível e compreensível logo desde a primeira subida do pano e nos primeiros compassos da famosa abertura, encenada desta vez, o que então era caso raro, e que, só por isso, também desafiava frontalmente as convenções.


Heinrich Tannhäuser sente-se transportado da vida real de Wartburg ao mundo ideal, licencioso e orgiástico de Vénus, Venusberg, ou seja, da ingenuidade de um amor adolescente para a realidade de um amor físico entre homem e mulher maduros. Há o célebre bacanal. Que aliás Friedrich encena com laivos de pesadelo sado-maso, morte e depravação, o sexo em excesso que promove a barbárie, a crueldade e a morte.


O amplo átrio do 2º acto, onde se vai desenrolar o concurso, induz a estratificação social impiedosa, o ritual da tirania numa comunidade fortemente hierarquizada, fechada, iniciática quase – era para simbolizar a posição de um artista nos tempos do III Reich, encorajado e beneficiado se desse os ámens todos ao regime, expedido para o campo de concentração se lhe fosse contestatário.
E o 3º acto todo ele é desolação – dissolução. Nem a sombra de uma esperança redentora. O sentido de uma vida (queria ele dizer) não seria de o procurar na fé e no milagre sobrenatural, senão na verdade, nas realidades concretas do mundo.


Friedrich não encenava em Bayreuth, em 1972, o Wagner espiritualizado e crente na redenção final do género humano. Friedrich preferiu mostrar o Wagner politicamente empenhado e interventivo, revoltado. Revolucionário, vamos lá…
E Wolfgang Wagner queria para o Festival uma vulgarmente chamada “lufada de ar fresco”, não queria? 
Pois aí a tinha. 
O ar fresco que Götz Friedrich lhe trouxe em 1972 era um ar mais que fresco, era uma aragem devastadora, um ciclone. Alguém disse (ou escreveu) que desde a tempestuosa estreia de Tannhäuser em Paris, 1861, não se via turbulência tamanha na estreia de uma obra do mestre. Friedrich encenara na “colina sagrada” uma espécie de sacrilégio, intolerável sacrilégio.


O guarda-roupa dos convidados do 2º acto era um dos elementos mais desestabilizadores da ortodoxia wagneriana dado a ver a um público burguês e conservador até ao reaccionário. O fato e os modos do Landgrave da Turíngia eram os do comandante de uma tropa de assalto, enquanto o atavio e as atitudes cénicas dos peregrinos na volta de Roma eram os de um proletariado explorado e duramente reprimido que regressava do trabalho.


O mais consoante às tradições da Casa era o alto nível das prestações vocais de Gwyneth Jones, Bernd Weikl e Hans Sotin. E o mais insólito era a produção ter no seu próprio chefe de orquestra um dos maiores críticos, o célebre maestro Erich Leinsdorf, um dos últimos especialistas da interpretação wagneriana. Leinsdorf dirigiu as récitas de estreia, sim senhor, mas recusou-se terminantemente a voltar para as reposições dos anos seguintes.


Nas suas memórias, Erich Leinsdorf aponta o dedo àquele indesejável encenador que tinha saído do frio. Era um incompetente que comprometera a integridade artística do espectáculo a favor de uma visão politizada em estremo. Quando preparava o trabalho, o encenador deve ter lido e relido os seus Marx, Engels, Trotzky, Karl Liebknecht. O que de certeza não deve ter lido foi Wagner – escreveu Leinsdorf. E escreveu mais: Friedrich amputou da produção a redenção de Tannhäuser por uma questão de segurança pessoal para quando regressasse a Berlim Leste. Lá certamente o chamariam a contas por ter encenado em Bayreuth alguma coisa de cristão.
E ainda quanto aos aspectos mais técnicos da encenação, Leinsdorf queixava-se da incompetência de Friedrich também nesse capítulo. O encenador tinha que saber que colocando os cantores solistas e o coro numa plataforma tão elevada daria como resultado as vozes desvanecerem-se, perderem-se na cenografia e na teia, em lugar de se projectarem para a frente, para o público as ouvir. E outra: a cruz que os peregrinos (o coro) carregavam às costas era de tal modo pesada que o trajecto (de uma ponta a outra do palco) se tornava penoso e obrigava os cantores a baixar notoriamente de tom em três ou quatro momentos essenciais.


Bom, mas para Leinsdorf nem era o encenador saído do frio o principal (e original) responsável pelo desmando daquela produção. O responsável era quem o tinha mandado vir. O responsável maior era o velho Wolfgang Wagner. Era a desonestidade calculista do velho Wolfgang que repugnava a Leinsdorf, o ele contratar encenadores em detrimento da tal integridade artística e só por razões de publicidade, e só para causar para causar escândalo e (sic) épater les bourgeois.
E se era isso, o velho Wolfgang conseguiu o que queria.
Na verdade, a alta burguesia de Bayreuth ficou em estado de choque com o que viu naquele Tannhäuser em 1972.
Disseram alguns comentadores que muito raramente se via um espectáculo em que a vida imitava a arte como se vira naquele Tannhäuser do Festival de Bayreuth de 1972. E isso pela transposição para a plateia do que estava a ser representado no palco. Götz Friedrich era ele o próprio poeta Heinrich Tannhäuser (que aliás teve existência real), enquanto o público burguês era o establishment germânico da Turíngia do século XIII. Götz Friedrich foi denunciado como um perigoso “vermelho”. Götz Friedrich era uma ameaça para a República Federal da Alemanha. Götz Friedrich devia ser imediatamente escorraçado para o lado de lá do Muro, recambiado para junto dos seus amigos comunistas do lado oriental. Götz Friedrich era acusado de ter feito de Tannhäuser um panfleto comunista. Götz Friedrich era acusado de ter usado Tannhäuser para celebrar a vitória dos pobres sobre os ricos. Um repórter do New York Times ouviu gritos da assistência a reclamar vingança contra o encenador que tinha vindo do frio, e viu uma velhota a levantar a mala de mão, dizendo-se disposta a dar com ela na cara do traste do encenador saído do frio se o visse passar perto dela.


É claro que tudo isto, estas reacções, estas acusações, enfermavam de um mal entendido, de um pressuposto diria paradoxal.
Quem poderia afirmar que as significações e simbologias da encenação de Götz Friedrich se dirigiam mais à Alemanha do século XIII, à Alemanha hitleriana, ou mesmo à Alemanha contemporânea, a dos anos 70, do que à sua própria Alemanha comunista e estreitamente controlada pela União Soviética?
Ninguém poderia afirmar tal coisa.


Götz Friedrich, o propagandista de Marx e de Lenine, era por sinal olhado de través na sua Berlim Oriental, e justamente porque era um crítico severo da situação que se vivia nessa Alemanha comunista e há muito estava assinalado como rebelde relapso ao que considerava uma opressão ideológica imposta pelo regime. 
 Nunca se vira em Bayreuth, ou pelo menos de modo tão explícito, uma produção tão ideologicamente marcada de anti-religião, de anti-clericalismo, de anti-situacionismo. E por isso mesmo ficou como um marco nos anais da instituição.


E como digo, se o velho Wolfgang queria restituir ao Festival alguma agitação, ou o frisson de outros tempos, sem dúvida que o conseguira. Todavia, ao defender o seu encenador, levou com o ónus de ser olhado como cúmplice de um sacrilégio, de ser culpado de associação política e ideologicamente espúria – para não dizer criminosa – ao ponto de receber cartas envenenadas e ameaças de bomba no teatro – cartas que traziam no endereço Para o vermelho director do Festival de Bayreuth, e que lhe chamavam cavalheiro comunista, e mui distinto propagandista das ideias soviéticas.


Os mais ultrajados eram os maçónicos wagnerianos, os da Sociedade dos Amigos de Bayreuth – que obviamente, e sem prejuízo de outros azedumes, não queriam ver o seu rico dinheirinho investido em propaganda subversiva.
Mas, pensava o velho Wolfgang, quem poderia doravante afirmar que as obras do seu avô Richard já não tinham serventia, ou que a mensagem wagneriana perdera a validade no mundo contemporâneo?


Cultura e política combinadas ainda eram matéria explosiva na moderna Alemanha Ocidental.
Mas tudo foi esquecido muito depressa.
No ano seguinte a produção foi reposta e foi aclamada em delírio.


1 comentário:

  1. Quase tudo o que tem qualidade e começa como muito radical e vanguardista se torna depois moda e tem grande sucesso popular. Em muitos casos, em seguida degenera em convencionalismo e banalidade...


    Parabéns, Joel Costa. O seu estilo de contar histórias é inconfundível!


    Consegue transformar qualquer assunto, por mais impenetrável ou maçudo que pareça, numa narrativa emocionante...


    Qual é o seu segredo?

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