O ENCENADOR QUE SAIU DO FRIO
À entrada dos anos 70 do passado século XX, o último dos
herdeiros da dinastia Wagner, Wolfgang, neto do mestre, entendia que o
prestígio e a importância do Festival de Bayreuth no panorama social e cultural
europeu começava a ir por água abaixo e que alguma coisa teria de ser inventada
em ordem a um reavivamento.
Outros e novos cantores? Difícil. Sim, difícil
encontra-los disponíveis para aturar as madurezas do já envelhecido e
todo-poderoso Wolfgang Wagner. E com respeito a novos e bons chefes de
orquestra, idem. Encenadores! A salvação só poderia estar aí. Vamos embora
rapazes com jeitinho para montar espectáculos, impõem-se novas ideias para
suceder à revolução de meu falecido irmão Wieland, vá, ideias novas, depressa.
Havia na altura em acção uma estimável dupla
encenador-cenógrafo nas pessoas de August Everding e Joseph Svoboda. Tinham
montado um Navio Fantasma, muito bem,
espectáculo admirável mas não o bastante no capítulo da restauração do velho
impacto das produções do Festival.
E Wolfgang lá pensou que o melhor seria deitar a mão a
alguma coisa de realmente heterodoxo, quando não mesmo de provocador. E cá vem
a ideia de levar a Bayreuth encenadores de ideias avançadas, de estéticas
eventualmente abstrusas, alguém até que não tivesse relação alguma com o mundo
wagneriano. Ou mais: Wolfgang já dava de barato que a muito wagneriana redenção
do Festival poderia vir de um homem que não conhecesse nem de ouvido a obra do
avô Richard. Ou mais ainda: um homem que nunca tivesse visto uma ópera, que nem
soubesse como funcionava esse estranho espectáculo.
Wolfgang queria produzir um novo Tannhäuser e lembrou-se de confiar o encargo ao então muito
celebrado encenador milanês Giorgio Strehler. Que recusou o convite. Que há-de
ser, quem não há-de ser? Porque não um rapaz pouco conhecido, que é do outro
lado do Muro mas que foi aluno dileto do Walter Felsenstein, Götz Friedrich?
E assim foi. A contratação de Götz Friedrich era um
risco mas um senhor risco. Um risco que Wolfgang se dispunha calculadamente a
correr. E outro risco estava a ser contratação crescente, e por questão de cachet, de cantores vindos também da
outra Alemanha, a de Leste, consideravelmente mais baratos do que os
ocidentais.
Risco porquê, senhores? Estava-se em 1972, não esquecer,
e o grande risco era desagradar ao governo da Baviera que entrava com bom
dinheiro para o sustento do Festival e não queria nem ouvir falar na hipótese
de estar a pagar a comunistas. E o risco, outro, e parecido era cair nas
antipatias da maçonaria de Bayreuth, a Sociedade dos Amigos de Bayreuth, que
não morriam de simpatias comunistas e que além da autoridade do seu estatuto
moral também a exerciam pelo estatuto financeiro de ajudar a custear os luxos e
bizarrías que viessem à cabeça dos Wagner.
Götz Friedrich nunca na vida tinha trabalhado numa ópera
de Wagner. Wolfgang contratara-o às cegas, porque também, em consciência, nunca
na vida tinha visto um trabalho de Friedrich na Kömische Oper de Berlim Leste.
Acresce que as diferenças entre o que poderia ser uma
estética de vanguarda no quadro da Alemanha Ocidental e o que poderia ser uma
estética de vanguarda sob os cânones da Alemanha Oriental eram gritantes. Outro
risco, pois claro.
No lado oriental, a palavra de ordem, como seria de
prever, era um realismo por assim dizer socialista, ou na base de um
materialismo histórico, e com a inevitável e naturalíssima influência exercida
pela ideologia política sob a qual os artistas trabalhavam. O tratamento
artístico-teatral dado às circunstâncias históricas em que a obra fora criada,
mais as circunstâncias históricas e pessoais do próprio criador eram pontos
assentes nas concepções estéticas alemãs sob a tutela soviética, e mais
determinantes ainda do que os aspectos formais da peça.
Espectáculos dinâmicos, clareza dramatúrgica, precisão
cenográfica, contornos fortes na definição de cada personagem, rigorosa
direcção de actores – as linhas capitais da estética teatral do outro lado do
Muro. O que prometia espectáculos rígidos, sóbrios, despidos, frios.
Quem trabalha na
ópera, no teatro musical, deve perguntar-se sempre: porquê esta obra deve ser
representada, com vista a que finalidades esta obra deve ser representada, para
quem deve esta obra ser representada –
cartilha do encenador contratado para aquele Tannhäuser de Bayreuth, em 1972, Götz Friedrich, o encenador que
vinha do frio.
E a resposta era dada por ele: Tannhäuser continha uma mensagem muito oportuna para a sociedade
dos anos 70. A chave da obra poderia ser encontrada no contexto social e
político contra o qual fora escrita, a luta de um Wagner político contra uma
ordem política opressora e uma hierarquia social muito vincadamente classista –
e com a qual, na visão de Friedrich, o protagonista se confronta ao longo da
ópera.
O drama transferir-se-ia então do homem atormentado por
uma luta íntima entre o amor lascivo e o amor espiritual para uma crónica do
artista (poeta) na relação coma sociedade do seu tempo – em vez da encruzilhada
entre Vénus e Elisabeth, o problema da situação do poeta entre a elite de
Wartburg.
Como conservar o poder criativo e a integridade
artística pretendendo ao mesmo tempo preservar a liberdade num contexto das
apertadas regras de uma sociedade da qual o artista necessita como destinatária
do seu trabalho e da sua mensagem?
(Ah, pois nenhum artista, suponho eu, nos tempos
económico-financeiros que correm se coloca tais problemas…)
O assunto de Tannhäuser
toca nesses pontos, eternos pontos excruciantes para o artista de qualquer
tempo, olhado como um marginal quando não se conforma aos costumes sociais em
vigor. Friedrich acentuava nas notas de programa o lado político e rebelde do
Wagner de 1849, mais do que o do Wagner criador, e sem evitar um relance sobre
ele próprio Götz Friedrich, um artista que se queria livre a trabalhar num
Estado comunista.
As simbologias
próprias da ópera Tannhäuser saíram
um bocado baralhadas naquela produção de 1972. Se o protagonista vem do paraíso
sensual de Venusberg não irá exactamente dar ao concurso de poesia e canto de
Wartburg, irá, em vez disso, confrontar-se com a intolerante e retrógrada casta
militar e política da Turíngia, com a opressão social de Wartburg, e também,
alegoricamente, da Roma que se afirma no poder papal de condenar ou absolver
eternamente o pecador.
As alternativas são escassas. E se o poeta não se sente
inteiramente realizado nos braços de Vénus longe disso também se sentirá ao
lidar com o autoritarismo dos poderes, os terrenos e os espirituais.
O amor carnal e o amor celestial na dicotomia
Vénus-Elisabeth tratou-os Götz Friedrich não como antíteses, mas como faces da
mesma moeda, por assim dizer – e coma significativa circunstância de os
antitéticos papeis de Vénus e Elisabeth seriam na ocasião, e pela primeira vez
na História desta ópera, cantados pela mesma cantora, Gwyneth Jones.
Elisabeth, contrariamente à ortodoxia dramatúrgica de Tannhäuser, não morria em cheiro de
santidade, morria sim, como uma mulher envelhecida, gasta e solitária. Assim
como o herói Tannhäuser não morria como pecador perdoado e redimido de todos os
nefandos pecados de luxúria, morria sim, como um homem cuja tragédia foi o falhanço
estrondoso da sua procura de si mesmo. Uma reinterpretação do lugar da religião
redentora, e, em suma, uma moral: a crença na tolerância social a substituir,
no século XX, a fé na religião e nos respectivos milagres.
Para quem se interessa por estas coisas o DVD desta
produção de Bayreuth está aí à venda no mercado. É só o trabalho de bem o
procurar – FNAC, Corte Inglês…
Dizem os “interpretadores”, os entendidos, os críticos
que a moral nova de Götz Friedrich para acrescentar a Tannhäuser era visível e compreensível logo desde a primeira subida
do pano e nos primeiros compassos da famosa abertura, encenada desta vez, o que
então era caso raro, e que, só por isso, também desafiava frontalmente as
convenções.
Heinrich Tannhäuser sente-se transportado da vida real
de Wartburg ao mundo ideal, licencioso e orgiástico de Vénus, Venusberg, ou
seja, da ingenuidade de um amor adolescente para a realidade de um amor físico
entre homem e mulher maduros. Há o célebre bacanal. Que aliás Friedrich encena
com laivos de pesadelo sado-maso, morte e depravação, o sexo em excesso que
promove a barbárie, a crueldade e a morte.
O amplo átrio do 2º acto, onde se vai desenrolar o
concurso, induz a estratificação social impiedosa, o ritual da tirania numa
comunidade fortemente hierarquizada, fechada, iniciática quase – era para
simbolizar a posição de um artista nos tempos do III Reich, encorajado e
beneficiado se desse os ámens todos ao regime, expedido para o campo de
concentração se lhe fosse contestatário.
E o 3º acto todo ele é desolação – dissolução. Nem a
sombra de uma esperança redentora. O sentido de uma vida (queria ele dizer) não
seria de o procurar na fé e no milagre sobrenatural, senão na verdade, nas
realidades concretas do mundo.
Friedrich não encenava em Bayreuth, em 1972, o Wagner
espiritualizado e crente na redenção final do género humano. Friedrich preferiu
mostrar o Wagner politicamente empenhado e interventivo, revoltado.
Revolucionário, vamos lá…
E Wolfgang Wagner queria para o Festival uma vulgarmente
chamada “lufada de ar fresco”, não queria?
Pois aí a tinha.
O ar fresco que
Götz Friedrich lhe trouxe em 1972 era um ar mais que fresco, era uma aragem
devastadora, um ciclone. Alguém disse (ou escreveu) que desde a tempestuosa
estreia de Tannhäuser em Paris, 1861,
não se via turbulência tamanha na estreia de uma obra do mestre. Friedrich
encenara na “colina sagrada” uma espécie de sacrilégio, intolerável sacrilégio.
O guarda-roupa dos convidados do 2º acto era um dos
elementos mais desestabilizadores da ortodoxia wagneriana dado a ver a um
público burguês e conservador até ao reaccionário. O fato e os modos do
Landgrave da Turíngia eram os do comandante de uma tropa de assalto, enquanto o
atavio e as atitudes cénicas dos peregrinos na volta de Roma eram os de um
proletariado explorado e duramente reprimido que regressava do trabalho.
O mais consoante às tradições da Casa era o alto nível
das prestações vocais de Gwyneth Jones, Bernd Weikl e Hans Sotin. E o mais
insólito era a produção ter no seu próprio chefe de orquestra um dos maiores
críticos, o célebre maestro Erich Leinsdorf, um dos últimos especialistas da
interpretação wagneriana. Leinsdorf dirigiu as récitas de estreia, sim senhor,
mas recusou-se terminantemente a voltar para as reposições dos anos seguintes.
Nas suas memórias, Erich Leinsdorf aponta o dedo àquele
indesejável encenador que tinha saído do frio. Era um incompetente que
comprometera a integridade artística do espectáculo a favor de uma visão
politizada em estremo. Quando preparava o
trabalho, o encenador deve ter lido e relido os seus Marx, Engels, Trotzky,
Karl Liebknecht. O que de certeza não deve ter lido foi Wagner – escreveu
Leinsdorf. E escreveu mais: Friedrich amputou da produção a redenção de
Tannhäuser por uma questão de segurança pessoal para quando regressasse a
Berlim Leste. Lá certamente o chamariam a contas por ter encenado em Bayreuth
alguma coisa de cristão.
E ainda quanto aos aspectos mais técnicos da encenação,
Leinsdorf queixava-se da incompetência de Friedrich também nesse capítulo. O
encenador tinha que saber que colocando os cantores solistas e o coro numa
plataforma tão elevada daria como resultado as vozes desvanecerem-se,
perderem-se na cenografia e na teia, em lugar de se projectarem para a frente,
para o público as ouvir. E outra: a cruz que os peregrinos (o coro) carregavam
às costas era de tal modo pesada que o trajecto (de uma ponta a outra do palco)
se tornava penoso e obrigava os cantores a baixar notoriamente de tom em três
ou quatro momentos essenciais.
Bom, mas para Leinsdorf nem era o encenador saído do
frio o principal (e original) responsável pelo desmando daquela produção. O
responsável era quem o tinha mandado vir. O responsável maior era o velho
Wolfgang Wagner. Era a desonestidade calculista do velho Wolfgang que repugnava
a Leinsdorf, o ele contratar encenadores em detrimento da tal integridade
artística e só por razões de publicidade, e só para causar para causar
escândalo e (sic) épater les bourgeois.
E se era isso, o velho Wolfgang conseguiu o que queria.
Na verdade, a alta burguesia de Bayreuth ficou em estado
de choque com o que viu naquele
Tannhäuser em 1972.
Disseram alguns comentadores que muito raramente se via
um espectáculo em que a vida imitava a arte como se vira naquele Tannhäuser do Festival de Bayreuth de 1972.
E isso pela transposição para a plateia do que estava a ser representado no
palco. Götz Friedrich era ele o próprio poeta Heinrich Tannhäuser (que aliás
teve existência real), enquanto o público burguês era o establishment germânico da Turíngia do século XIII. Götz Friedrich
foi denunciado como um perigoso “vermelho”. Götz Friedrich era uma ameaça para
a República Federal da Alemanha. Götz Friedrich devia ser imediatamente
escorraçado para o lado de lá do Muro, recambiado para junto dos seus amigos
comunistas do lado oriental. Götz Friedrich era acusado de ter feito de Tannhäuser um panfleto comunista. Götz
Friedrich era acusado de ter usado Tannhäuser
para celebrar a vitória dos pobres sobre os ricos. Um repórter do New York Times ouviu gritos da
assistência a reclamar vingança contra o encenador que tinha vindo do frio, e
viu uma velhota a levantar a mala de mão, dizendo-se disposta a dar com ela na
cara do traste do encenador saído do frio se o visse passar perto dela.
É claro que tudo isto, estas reacções, estas acusações,
enfermavam de um mal entendido, de um pressuposto diria paradoxal.
Quem poderia afirmar que as significações e simbologias
da encenação de Götz Friedrich se dirigiam mais à Alemanha do século XIII, à
Alemanha hitleriana, ou mesmo à Alemanha contemporânea, a dos anos 70, do que à
sua própria Alemanha comunista e estreitamente controlada pela União Soviética?
Ninguém poderia afirmar tal coisa.
Götz Friedrich, o propagandista de Marx e de Lenine, era
por sinal olhado de través na sua Berlim Oriental, e justamente porque era um
crítico severo da situação que se vivia nessa Alemanha comunista e há muito
estava assinalado como rebelde relapso ao que considerava uma opressão
ideológica imposta pelo regime.
Nunca
se vira em Bayreuth, ou pelo menos de modo tão explícito, uma produção tão
ideologicamente marcada de anti-religião, de anti-clericalismo, de
anti-situacionismo. E por isso mesmo ficou como um marco nos anais da
instituição.
E como digo, se o velho Wolfgang queria restituir ao Festival
alguma agitação, ou o frisson de
outros tempos, sem dúvida que o conseguira. Todavia, ao defender o seu
encenador, levou com o ónus de ser olhado como cúmplice de um sacrilégio, de
ser culpado de associação política e ideologicamente espúria – para não dizer
criminosa – ao ponto de receber cartas envenenadas e ameaças de bomba no teatro
– cartas que traziam no endereço Para o
vermelho director do Festival de Bayreuth, e que lhe chamavam cavalheiro comunista, e mui distinto propagandista das ideias
soviéticas.
Os mais ultrajados eram os maçónicos wagnerianos, os da
Sociedade dos Amigos de Bayreuth – que obviamente, e sem prejuízo de outros
azedumes, não queriam ver o seu rico dinheirinho investido em propaganda
subversiva.
Mas, pensava o velho Wolfgang, quem poderia doravante
afirmar que as obras do seu avô Richard já não tinham serventia, ou que a
mensagem wagneriana perdera a validade no mundo contemporâneo?
Cultura e política combinadas ainda eram matéria
explosiva na moderna Alemanha Ocidental.
Mas tudo foi esquecido muito depressa.
No ano seguinte a produção foi reposta e foi aclamada em
delírio.
Quase tudo o que tem qualidade e começa como muito radical e vanguardista se torna depois moda e tem grande sucesso popular. Em muitos casos, em seguida degenera em convencionalismo e banalidade...
ResponderEliminarParabéns, Joel Costa. O seu estilo de contar histórias é inconfundível!
Consegue transformar qualquer assunto, por mais impenetrável ou maçudo que pareça, numa narrativa emocionante...
Qual é o seu segredo?