NOS
BRAÇOS DA VERDADEIRA CARMEN
E
então, de forma triste e injusta, coitado, o grande pianista Arthur Rubinstein viu-se
desprezado pela amante, a famosa contralto Gabriella Besanzoni. E ainda por cima
levando o labéu de maricas. E tudo por mor de ajudar um (célebre) amigo em hora de
aflição.
Mas
disso trataremos depois, um dia destes…
Por agora, vejamos
como tudo começou – e continuou – no romance entre o célebre pianista – aliás,
na altura ainda não tão célebre – e a já célebre cantora: ou seja, entre o pequeno,
feioso e delicado Arthur e a poderosa, imponente, opulenta e capitosa
Gabriella, mulheraça ardentemente cobiçada pelos homens com quem se cruzava,
uma das grandes carmens do seu tempo, tempo esse que são os primeiros decénios
do século XX.
Segundo o afamado tenor Lauri
Volpi, a Bezanzoni era a última grande e
verdadeira contralto do canto italiano; segundo o poeta D’Annunzio era da
Bensanzoni a verdadeira voz do Arcanjo Gabriel.
E sim, claro que ela e o
pequeno Arthur pareciam desajustados. Assim à primeira vista, pelo menos. Mas as
coisas são como são e foram assim mesmo como eu vou contar – ou melhor: como as
contou em memórias o próprio Arthur Rubinstein.
Uma bela noite, no Teatro
Real de Madrid, mais ou menos por volta
de 1916, 1917, ribombava ainda pela Europa a I Guerra Mundial, tinha Arthur
Rubinstein 30 anos e cantava-se a Carmen.
A grande sensação era a
protagonista. Para Rubinstein era ela a maior Carmen que ouviu em toda a
sua vida. Um registo grave – é ele que a descreve – que pedia meças ao barítono
mais pintado, registo ao qual correspondia uma estonteante facilidade nos
agudos. E depois, a composição da personagem. Uma selvejaria, uma sensualidade
animal que deixava um homem confuso. Não era o que se dissesse uma beleza – opina
Rubinstein -, não, parece que não era.
Era só a encarnação ideal de um certo tipo fatal de mulher. A Carmen.
No final daquelas récitas do
Teatro Real de Madrid, como se costuma dizer, vinha a casa abaixo com aplausos.
E agora entra aqui o Faustino
da Rosa. Quem diacho era esse?
Pois o Faustino da Rosa era um empresário. Talvez argentino, talvez uruguaio, talvez mexicano - quem sabe se mesmo espanhol. Um empresário de espectáculos que estava em Madrid com o fito de contratar artistas para a temporada do Colón de Buenos Aires. Entre esses artistas estavam Rubinstein e a Besanzoni.
Pois o Faustino da Rosa era um empresário. Talvez argentino, talvez uruguaio, talvez mexicano - quem sabe se mesmo espanhol. Um empresário de espectáculos que estava em Madrid com o fito de contratar artistas para a temporada do Colón de Buenos Aires. Entre esses artistas estavam Rubinstein e a Besanzoni.
Faustino da Rosa costumava
tomar café a seguir ao almoço no bar do Palace de Madrid com a Gabriella
Besanzoni e com outra senhora. Uma vez, Rubinstein aproximou-se. Queria trocar impressões com o empresário e,
já agora, protestar as suas homenagens à grande contralto.
Aproximou-se da mesa e
esperou do Faustino da Rosa as respectivas apresentações. Mas o Faustino, ao
vê-lo, levanta-se, pede desculpa às senhoras e atende-o à parte, sem o deixar
aproximar-se da mesa.
O que Faustino da Rosa não
pôde impedir foi que a Besanzoni lançasse alguns olhares prometedores àquele
pequeno e delicadíssimo pianista.
E então, uma noite…
Sim, uma noite, num corredor
deserto do Palace Hotel, Arthur Rubinstein vê a majestosa Besanzoni caminhar direita a
ele. E cora de excitação – é ele quem o diz. Ao passarem um pelo outro, quando
Rubinstein, todo mesuras, ia a fazer um salamaleque para se apresentar e
cumprimen… zás! A Bensanzoni pára de repente,
agarra-o pela cabeça, e pespega-lhe um beijão na boca com violência tão inaudita que
Rubinstein sentia o sangue fugir-lhe dos lábios.
E isto sem trocarem uma
palavra.
Era carnaval.
Quando recuperou, Arthur
Rubinstein não achou proposta melhor para fazer àquela calmeirona que o beijava
assim sem mais nem ontem do que convidá-la para a carruagem dele e descerem
juntos a Castellana durante uma batalha de flores. A Besanzoni bateu literalmente as palmas de
contente e aceitou.
E assim foi. Batalharam os dois
entre flores, e, furtivamente, de caminho, trocaram uns poucos de beijos
arrebatados.
E depois regressaram ao
hotel.
“Olha, querido… e se fossemos
os dois ali para o meu quarto descansar um bocadinho ? Que tal, an? “
Era o mesmo que perguntar a
um cego se queria vista.
E três horas depois…
deixemo-lo falar, ainda está ofegante…
“Ui, amigos, três horas
depois, saí do quarto dela, cansado, mas exuberante e feliz. E orgulhoso da
aventura. Tinha tido nos meus braços a verdadeira Carmen."
Bom, julgava Rubinstein que aquilo não tinha
passado de uma cena sensual, um improviso passageiro e sem consequências. E
estava muito enganado. Gabriella passou a comportar-se com ele como se
comportam as mulheres apaixonadas.
Um dia, Gabriella confessa-se: tem um affaire com o tal empresário, o tal Faustino
da Rosa.
“Tem que ser, filho.”
“Tem que ser? Ora essa! Mas
tem que ser porquê?”
“Não vês tu que é preciso
acautelar a carreira?”
“Ah. Sim. “
Passa a a chamar a Rubinstein
Tutullo, pet name que Rubinstein detesta.
“Ma ti giuro, Tutullo, que
ando com ele só por causa da minha carreira…. ah, noi… povere donne…”
Gabriella partiria dentro de
dias para a Argentina para cumprir um contrato para o Faustino no Teatro Colón
de Buenos Aires, e Rubinstein, também contratado para o mesmo teatro, ainda tinha uns concertos para dar em Valência e Barcelona antes de partir.
Gabriella estava em lágrimas.
“Deixa lá, mulher… não chore
isso… muito em breve, vais ver, lá estarei, a tocar para ti e tu a cantares
para mim e então é que será a felicidade completa.”
Mas Gabriella atrasa a
partida por causa dele.
Aparece-lhe de surpresa em
Valência. Quer fazer a viagem com ele. Mas o Faustino já andava desconfiado. E eles podiam-se
prejudicar.
E ela lá vai para a Argentina
sozinha, como sempre, lavada em lágrimas.
O Faustino anda tão
desconfiado do esquema que adia a estreia da Besanzoni no Colón.
“Mas eu mesmo
assim amo-te hoje mais do que nunca, meu queridoTutullo!”
Naquela época, as viagens
eram longas e cansativas. Uma tournée
de concertos podia ser uma verdadeira aventura. Estávamos, vamos lá a ver, numa
guerra mundial.
E depois do reencontro em
Buenos Aires e dos concertos, o pianista
parte para o Brasil, e a Besanzoni fica por um tempo fora da cena
de Rubinstein.
Rubinstein apaixona-se pelo
Rio de Janeiro, e depois de uma série de
sucessos estrondosos e aventuras interessantes no Brasil, vai procurar vida em
Cuba. Tem contratos para Havana. Mete-se
num barco. Passa pelo Chile. Está em Valparaíso. Recebe um telefonema.
Gabriella está agora no Rio de Janeiro a cantar. Mas apanhou a gripe espanhola,
epidemia então muito em moda. Sente-se só e sonha com o regresso a Itália para
o pé da mãe. Feliz e eterno amor para ti,
meu querido Tutullo.
Daí a dias um telegrama. Completamente restabelecida da gripe, vou
ter contigo ao Panamá. Gabriella.
Rubinstein não tem a mínima
intenção de se casar com a Besanzoni, é claro. E pela-se de medo só de pensar que a
intenção dela seja mesmo essa.
Arranjar naqueles tempos uma
passagem de barco era uma complicação dos diabos. Grande parte dos navios
estavam afectados ao transporte de tropas. Mas Rubinstein e Gabriella
reencontram-se no Panamá.
“Tutu, Tutullo,
Tutullino!” - berra Gabriella.
E vão, saltitantes, até ao
hotel, danadinhos para a brincadeira e para matar saudades.
Sobem.
Rubinstein acompanha a
senhora ao quarto dela.
E entra com ela. Fecham a
porta. No momento em que fecham a porta ouvem uma voz muito áspera em espanhol:
“O cavalheiro deve
deixar imediatamente o aposento da senhora e dirigir-se ao seu próprio quarto. “
Mas que era aquilo? Abrem a
porta. No corredor está um militar de má catadura. Gabriella e Rubinstein, após
uma tão longa separação, estavam naturalmente com a água na boca para se
encontrarem a sós e ficam estarrecidos com a moralidade dos hoteis panameanos.
“Ma come? Sono matti questi
qui?” -
grita Gabriella. -
“Esta gente está toda doida, ou quê? Desde quando é permitido
impedir que um homem e uma mulher sejam felizes?”
E
ficam condenados a verem-se às refeições, ou nos corredores do hotel. Nunca num
quarto com uma cama.
Rubinstein
vai ter com o governador.
O governador, depois de estudar minuciosamente o estranho passaporte espanhol de um judeu polaco em
tempo de guerra, e depois de várias peripécias lá lhes arranja passagens para
Havana num barco da Grace Fruit Company, com escala na Colômbia e em Nova
Orleães.
Passam as passas do Algarve
nesse pequeno barco. Gabriella, exuberante mulher de beleza latina, era a única
mulher a bordo e muito assediada por passageiros solitários e pelos próprios
marinheiros.
O barco tinha poucas cabines
e foi o cabo dos trabalhos para se alojarem, Rubinstein e o seu criado pessoal
numa única cabine, e Gabriella, sozinha, noutra, cedida pelo médico de bordo.
Um calor de morrer, cachos e
cachos de bananas e respectivos parasitas por todos os lados. E de manhã à noite os olhos
famélicos dos homens da tripulação sobre o corpo dela. E Rubinstein sem saber
como protegê-la.
E lá foram. Que remédio…
Problemas
em Nova Orleães com o famoso passaporte espanhol de um judeu polaco em plena
guerra, judeu polaco que os americanos tomaram por um espião russo. O cabo dos
trabalhos, mais uma vez.
Mas lá chegaram a Havana.
Contratos. Concertos. Récitas
de ópera. Negócios com o famoso empresário das américas António Bracale.
A Besanzoni fica apalavrada
para uma Aída, e logo ao lado de
Caruso. E quando Rubinstein, ao cabo
de semanas de viagens e aventuras, sem
estudar, vai a pôr as mãos num piano para começar a cumprir os seus contratos,
os dedos não lhe obedecem e ele fica hirto de pânico. Tem que praticar horas e horas
todos os dias, o que deixa Gabriella fula porque aquilo são horas roubadas ao
amor.
Chopin e música espanhola
fazem a glória de Rubinstein em Cuba. A Aída,
com Caruso, é um triunfo para a Besanzoni.
Mas rebenta uma bernarda no
teatro na noite de estreia. Caruso ia ganhar $1.000. Em Cuba a miséria é muita.
Revolta. Na cena do triunfo alguém faz estoirar um petardo.
Caruso não faz mais nada e
foge do teatro mesmo vestido de Radamés. Põe os pés ao caminho e vai para o
hotel.
Há
outras versões a dizer que o celebérrimo Caruso foi preso, apanhado na rua
vestido à egípcia, de saias, a cara empoada para o palco, os lábios pintados. E
que o levaram para a esquadra por atentado à moral e mariquice pública - é o
que conta o romancista cubano Alejo Carpentier.
E
acrescente-se que os empresários do teatro de Havana, tomados de pavor porque
Caruso era a maior celebridade artistica da época e eles não sabiam dele, e que
se ele desaparecesse seria o maior dos escândalos, um escândalo mundial e o
maior dos prejuízos para o país,
correram toda a cidade antes de darem com ele na esquadra, todo
contente, a fumar um charuto e a cavaquear com os guardas.
Rubinstein vai para a
América. E volta a separar-se da Besanzoni. Mas recomenda-a a um certo baixo
peruano da companhia de ópera, ele que
tomasse conta dela e que a ajudasse no que fosse preciso.
Rubinstein faz um grande
sucesso na América, obviamente. E passado tempos recebe uma carta enviada de
Cienfuegos. Cuba.
Lembras-te,
Tutullo, do baixo peruano a quem tu pediste para tomar conta de mim? Pois assim
que tu viraste costas começou o malandro com os avanços e as propostas
nojentas, numa linguagem do mais obsceno que tu, Tutullo, possas imaginar.
Deixei de lhe falar. Enxotei-o e escorracei-o conforme pude, mas o quê, ele…
oh, rai’s partissem o homem que parece que tem o diabo no corpo. Tornou-se
violento. Quis-me arrombar a porta do
quarto aos berros e aos palavrões, uma coisa que só vista. Até ao dia em que
puxou de uma navalha para mim. Estou mortinha de medo, Tutullo. Tu é que me
podes valer. Pede aí ao embaixador de Cuba que faça qualquer coisa. O raio do
homem está maluco, é doido varrido…
Bom judeu, Rubinstein
culpa-se amargamente a si próprio de ter tido aquela maldita ideia de pôr o peruano
a tomar conta da moça…
O consulado de Cuba em Nova
York. Contacto com a polícia de Cienfuegos. O peruano era de facto um elemento
perigoso. Atacara a própria polícia. Jurava a pés juntos que havia de matar a
Besanzoni. Foi preso. Gabriella escreve a Rubinstein outra carta em lágrimas.
Mas agora toda ela era gratidão e felicidade.
Entretanto a I Guerra Mundial
acabava.
Rubinstein está hospedado no
Biltmore Hotel, cujo pessoal já tinha dado provas de puritanismo considerável naquela
questão de estarem homem e mulher metidos no mesmo quarto. De maneira que,
quando Gabriella telegrafa de Cuba a dizer que vai ter com o seu Tutullo a Nova
York, Rubinstein fica apreensivo. Lembra-se dos dias horríveis de jejum que
tinham passado no Panamá por causa do puritanismo dos militares.
Gabriella chega a Nova York
e, por causa das moscas, Tutullo reserva-lhe aposentos no 1º andar do hotel –
estando ele aposentado no 12º. E tem que lhe explicar porquê. Gabriella ouve-o e diz entre dentes:
“America non mi piace.”
A presença da Besanzoni em
Nova York faz logo movimentar o mundo da ópera. Rubinstein faz as vezes de
agente da Besanzoni nas negociações com Gatti Casazza, o todo-poderoso manager do Met, e descobre que até gosta
daquilo. Sim, daquilo de ser empresário.
A Besanzoni não quer assinar
contrato algum que não inclua a Carmen
no repertório - tinha um repertório curto. Mas o Met tinha uma estrela intocável que era
a Carmen ajuramentada da casa, uma
espécie de proprietária daquele papel, Geraldine
Farrar.
Como digo, metido a agente de
Gabriella, Rubinstein vai-se entender com o patrão da RCA Victor. Eles estavam
interessados em ter a Besanzoni na lista de artistas em que figurava Caruso.
“E ouça lá… ela sabe
alguma coisa de gravação de discos?”
“Parece-me bem que não” – responde Rubinstein.
“Temos que ensiná-la.”
“Muito bem. Mas vamos lá ao que interessa” – começa Rubinstein armado em duro. – Qual é a vossa oferta?”
“Que é que você quer dizer com isso de oferta? Ela leva 10% das vendas, como os outros, e é um pau. E não diga que vai
daqui…”
“Nem pensar nisso é bom” – replica Rubinstein no papel de difícil negociador.
“Pois olhe, amigo Arthur, pode apostar a sua vida em como
ela aceita e torna a aceitar. E ainda lhe digo mais: se você, amigo Arthur,
conseguir que ela venha trabalhar connosco ainda lhe damos a si uma abébia…
duas ou três peçazitas lá do piano de lambugem para você gravar… e não seria
nada mau para a sua carreira…”
“Não, não vou nisso. Vocês que negoceiem directamente com madame Besanzoni… eu cá por mim… o quê? Tenham juízo. O som do piano
nas vossas máquinas fica parecido com um banjo…”
E a Besanzoni, de facto,
ainda lhe dá uma descasca por ele não ter aceite os 10% logo à cabeça.
E foi o fim da carreira de Rubinstein como
empresário.
Cidade
do México. 1920.
Revoluções.
Guerra civil.
Átrio do Hotel Vitória. Rubinstein está sentado à espera de
Gabriella.
Gabriella
chega. Novidades. O empresário faliu. Tita Ruffo, o barítono, o divo máximo da
companhia, tinha-lhe roído a corda. Pode ser que um consórcio bancário lhe
valha.
Rubinstein
estava de concertos marcados, mas nada com respeito a publicidade, o empresário
estava sem cheta.
Ainda assim, o primeiro
concerto de Rubinstein realiza-se. Na sala, o público não chegava a cem
pessoas. Era quando Rubinstein tocava melhor. Quanto menos gente quanto mais
ele tocava bem. Aqueles que ali estavam eram a elite de uma casa cheia.
Foi-se a ver, e o empresário
da temporada de ópera e concertos era um empresário de touradas que não
percebia népia de música clássica.
Afastado esse empresário, os
novos responsáveis pelo teatro garantem a Rubinstein dois meses seguidos de
concertos, com 85% de lucros de bilheteira para ele.
“Como? 85%? “
Rubinstein desconfiou da
fartura. Os novos empresários ainda por cima se responsabilizavam pela publicidade.
Como era? E onde ia ele desencantar repertório para dois meses de concertos?
“Ouça lá, ó amigo, eu não sou
nenhum show-man!”
“Esteja descansado, sr.
Arthur, o público daqui quando gosta de um artista, oh, meu amigo…”
“Mas ouça, eu só tive cem
pessoas no outro dia…”
“Essas cem pessoas vão
transformar-se em milhares se você tocar à terça, à quinta, ao sábado e ao domingo à matinée.”
E foi mesmo verdade. 26 concertos para casas
esgotadas, incluindo cinemas nos arredores da Cidade do México. Por cada peça
que repetia, Rubinstein dizia à assistência:
“E agora, a pedido do público!”
E assim o repertório já lhe chegava e sobrava.
Gabriella triunfava na Carmen, evidentemente. Mandavam-lhe flores e perseguiam-na nas
ruas. A Rubinstein chegam a levá-lo em triunfo do teatro ao hotel.
E entretanto, a guerra civil.
Os bancos começavam a ser atacados por guardas disfarçados de bandidos e agindo
às ordens do ditador Venustiano Carranza. Havia generais de vinte anos. Toda a
gente andava armada de revólveres. Nos bares e restaurantes mais finos
chegava-se a fazer tiro ao alvo aos lustres e candeeiros. Os artistas eram
pagos em barras de ouro que amontoavam em pilhas nos quartos de hotel.
Um dia, Gabriella põe os pés
à parede e declarou que nessa noite não cantava. Não cantava, não cantava e não
cantava. Queixava-se de uma intriga que corria no teatro contra ela. Rubinstein
tenta chamá-la à razão.
“Também você está contra mim? Toda a gente está contra mim.”
Do teatro chegam os avisos. A senhora conhece as nossas leis. A senhora
Besanzoni vai cantar esta noite quer queira quer não.
A Besanzoni faz ouvidos de
mercador.
“Está bem abelha, o meu público há-de defender-me, e ai de alguém que tente fazer-me mal. Pode cair morto no momento -
Gabriella vai, atira-se para cima da cama e declara: “Estou doente, não posso
cantar.”
Aparece o médico do teatro.
Declara sob palavra de honra: Madame Besanzoni está de perfeita saúde.
Arthur aconselha-a a vestir-se
e a pôr-se a andar para o teatro. Gabriella trata-o como um traidor. Aparecem
dois polícias no quarto,
“Vamos embora, Madame, toca a vestir e toca a andar à
nossa frente para o teatro, já. Se não obedecer vai dentro.”
“Arturo, se eles me tentarem matar, tens que me defender.”
E lá vai ela.
Arthur também se vai arranjar,
também vai para o teatro. Senta-se numa frisa e assiste ao espectáculo. Tudo
corre à maravilha. Até à entrada de Carmen.
Quando Carmen aparece, qual
não é o espanto de Rubinstein ao ver a
Besanzoni entrar em cena com a roupa da rua, de chapelinho e tudo. O
pandemónio. O público desata a gritar. Antes de atacar a Habanera, a Besanzoni
levanta as mãos, manda calar o público…
A Bensanzoni fala. Metade em
italiano, metade em espanhol. Acusações contra as leis mexicanas, contra a
injustiça e contra o cruel sadismo da direcção do teatro. Mas voz dela depressa
é silenciada pela vozearia do pagode. Os mesmos dois polícias que a tinham
arrastado do hotel para o teatro entram em cena
e voltam a arrastá-la, desta vez para fora do palco. Rubinstein sentado
na sua frisa todo ele são suores frios. Corre para os bastidores. Confusão.
Gabriella estava desfeita, em
estado de choque, meio desmaiada.
Mas de súbito levanta-se e
começa a vestir-se de Carmen.
Regressa à cena.
Ataca a Habanera. O público perdoa-lhe tudo e a Besanzoni averba um
triunfo.
No fim da récita Rubinstein
está cheio de fraqueza. Tinha passado todo o santo dia quase sem comer nada
devido aos caprichos e conflitos da sua Carmen, a verdadeira Carmen. Alguns
amigos convidam-nos para uma ceia. Mas qual quê… Gabriella não admite cá ceias.
“Agora, Arturo vamos a todos os jornais da Cidade do México contar a verdadeira história desta noite.”
E isto foram facadas para o
estômago esfomeado do Arturo.
Meteram-se num táxi e
correram os jornais da cidade – que se estiveram efectivamente nas tintas para
os problemas de uma diva italiana no meio de uma guerra civil. Eram quatro da
matina quando entraram num restaurante para jantar.
A comida era bastante boa.
Havia uma salada especialmente gostosa. A
Besanzoni pede a receita para levar para a mãe.
“Como é que vocês cozinham isto?”
Os mexicanos disseram como
era, e também disseram que aquele gostinho tão bom era dado por uns vermes que
lhe deitavam e que se chamavam gusanos. A Besanzoni ouve isto e desata num berreiro
a chamar assassinos aos cozinheiros.
No quarto do hotel não parou
de vomitar até alta manhã. Com Rubinstein a amparar-lhe a cabeça e sem achar
tempo para preparar como devia os seus próprios programas de concerto.
E pronto. Rubinstein parte de
novo para a América. E depois para Londres. E depois para Espanha. A Bensanzoni
fica no México para umas récitas ao lado de Caruso, oportunidade que não queria
perder nem por nada desta vida.
Depois decorre um longo
silêncio entre os dois.
Até que se encontram em Nova
York.
Abraços e beijos. Gabriella
acaba de se estrear no Met. E também no Met encontrara um ambiente hostil, uma
cabala contra ela. A culpada era a contralto alemã (aliás, húngara) Margaret Matzenauer,
“Arturo, aquilo é a criatura mais venenosa que existe ao cimo da terra" - chegada ao Met da Besanzoni não era boa coisa
para a carreira da Matzenauer. - "Chegou a pôr a correr, calcula tu, Arturo, que
o meu sucesso na América do Sul com a Carmen era falso e nem era por causa da
minha voz nem da minha maneira de cantar… era por causa dos gestos indecentes
que eu fazia para o público e que excitavam muito os homens, calcula tu,
Tutullo…”
Estreara-se na Aída. Mas a Matzenauer tinha pago à
claque para patear a grande Besanzoni. Caruso ficara indignado. O director,
Gatti Casazza, disse que o público do Met a apreciava muito. Mas nada de lhe
renovar o contrato. E em casa, a mãe da Besanzoni, em vez de a confortar
passava o dia a gritar vingança!,
vingança!
Quando Gabriella volta para
Itália, Rubinstein sente que recuperou por fim a sua total liberdade de
movimentos e que com toda a tranquilidade poderia agora, em Nova York,
dedicar-se à sua própria carreira.
E Rubinstein volta ao Brasil.
E passa pelo Uruguai, por Buenos Aires. E depois, Paris.
Paris, onde um belo dia
recebe carta da Besanzoni a dizer que chegaria em breve para ver as vistas.
Paris onde se dará o desagradável quiproquo
que contarei um dia destes e devido ao qual terminaram, ingloriamente, as
relações entre o grande pianista e a grande contralto, e pelo qual o grande
pianista, por uma questão de moral pessoal, fica com fama de invertido só
porque correu a ajudar um amigo numa noite de aflição.
Bom, pelo menos é o que o
próprio Rubinstein conta. Se quanto a esse particular alguma coisa havia por
detrás, já não sei. Nunca me constou nada que desabonasse a virilidade de
Rubinstein.
E aquilo também, na volta,
foi um pretexto que a Besanzoni arranjou para o pôr com dono. Talvez já tivesse arranjado outro. Se calhar o brasileiro riquíssimo dos navios mercantes com
quem veio a casar.
Mas, assim como assim, e não
obstante ter pago por isso o seu preço - como sempre acontece nestas coisas
- Rubinstein também tinha passado os
seus bons bocados nos braços da verdadeira Carmen.
Ao seu jeito muito pessoal, mais uma deliciosa "fofoquice" sobre um dos grandes nomes da música.
ResponderEliminarObrigada, Joel.
ResponderEliminarFantástico, fluente e hilariante! Obrigado...