quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

           NOS BRAÇOS DA VERDADEIRA CARMEN

 

E então, de forma triste e injusta, coitado, o grande pianista Arthur Rubinstein viu-se desprezado pela amante, a famosa contralto Gabriella Besanzoni. E ainda por cima levando o labéu de maricas. E tudo por mor de ajudar um (célebre) amigo em hora de aflição.

                                                                             

Mas disso trataremos depois, um dia destes…
       Por agora, vejamos como tudo começou – e continuou – no romance entre o célebre pianista – aliás, na altura ainda não tão célebre – e a já célebre cantora: ou seja, entre o pequeno, feioso e delicado Arthur e a poderosa, imponente, opulenta e capitosa Gabriella, mulheraça ardentemente cobiçada pelos homens com quem se cruzava, uma das grandes carmens do seu tempo, tempo esse que são os primeiros decénios do século XX.  
Segundo o afamado tenor Lauri Volpi, a Bezanzoni era  a última grande e verdadeira contralto do canto italiano; segundo o poeta D’Annunzio era da Bensanzoni a verdadeira voz do Arcanjo Gabriel.


E sim, claro que ela e o pequeno Arthur pareciam desajustados. Assim à primeira vista, pelo menos. Mas as coisas são como são e foram assim mesmo como eu vou contar – ou melhor: como as contou em memórias o próprio Arthur Rubinstein.
Uma bela noite, no Teatro Real de Madrid, mais ou menos  por volta de 1916, 1917, ribombava ainda pela Europa a I Guerra Mundial, tinha Arthur Rubinstein 30 anos e cantava-se a Carmen.
A grande sensação era a protagonista. Para Rubinstein era ela a maior Carmen que ouviu  em toda a sua vida. Um registo grave – é ele que a descreve – que pedia meças ao barítono mais pintado, registo ao qual correspondia uma estonteante facilidade nos agudos. E depois, a composição da personagem. Uma selvejaria, uma sensualidade animal que deixava um homem confuso. Não era o que se dissesse uma beleza – opina Rubinstein -, não,  parece que não era. Era só a encarnação ideal de um certo tipo fatal de mulher. A Carmen.


No final daquelas récitas do Teatro Real de Madrid, como se costuma dizer, vinha a casa abaixo com aplausos.
E agora entra aqui o Faustino da Rosa.  Quem diacho era esse? 
Pois o Faustino da Rosa era um empresário. Talvez argentino, talvez uruguaio, talvez mexicano - quem sabe se mesmo espanhol. Um empresário de espectáculos que estava em Madrid com o fito de contratar artistas para a temporada do Colón de Buenos Aires. Entre esses artistas estavam Rubinstein e a Besanzoni.
Faustino da Rosa costumava tomar café a seguir ao almoço no bar do Palace de Madrid com a Gabriella Besanzoni e com outra senhora. Uma vez, Rubinstein aproximou-se.  Queria trocar impressões com o empresário e, já agora, protestar as suas homenagens à grande contralto.
Aproximou-se da mesa e esperou do Faustino da Rosa as respectivas apresentações. Mas o Faustino, ao vê-lo, levanta-se, pede desculpa às senhoras e atende-o à parte, sem o deixar aproximar-se da mesa.
O que Faustino da Rosa não pôde impedir foi que a Besanzoni lançasse alguns olhares prometedores àquele pequeno e delicadíssimo pianista.
E então, uma noite…


Sim, uma noite, num corredor deserto do Palace Hotel, Arthur Rubinstein  vê a majestosa Besanzoni caminhar direita a ele. E cora de excitação – é ele quem o diz. Ao passarem um pelo outro, quando Rubinstein, todo mesuras, ia a fazer um salamaleque para se apresentar e cumprimen… zás! A Bensanzoni pára de repente,  agarra-o pela cabeça, e pespega-lhe um beijão  na boca com violência tão inaudita que Rubinstein sentia o sangue fugir-lhe dos lábios.
E isto sem trocarem uma palavra.
Era carnaval.


Quando recuperou, Arthur Rubinstein não achou proposta melhor para fazer àquela calmeirona que o beijava assim sem mais nem ontem do que convidá-la para a carruagem dele e descerem juntos a Castellana durante uma batalha de flores. A Besanzoni bateu literalmente as palmas de contente e aceitou.
E assim foi. Batalharam os dois entre flores, e, furtivamente, de caminho, trocaram uns poucos de beijos arrebatados.
E depois regressaram ao hotel.
“Olha, querido… e se fossemos os dois ali para o meu quarto descansar um bocadinho ? Que tal, an? “
Era o mesmo que perguntar a um cego se queria vista.
E três horas depois… deixemo-lo falar, ainda está ofegante…
“Ui, amigos, três horas depois, saí do quarto dela, cansado, mas exuberante e feliz. E orgulhoso da aventura. Tinha tido nos meus braços a verdadeira Carmen."
Bom,  julgava Rubinstein que aquilo não tinha passado de uma cena sensual, um improviso passageiro e sem consequências. E estava muito enganado. Gabriella passou a comportar-se com ele como se comportam as mulheres apaixonadas.
Um dia,  Gabriella confessa-se: tem um affaire com o tal empresário, o tal Faustino da Rosa.
“Tem que ser, filho.”
“Tem que ser? Ora essa! Mas tem que ser porquê?”
“Não vês tu que é preciso acautelar a carreira?”
“Ah. Sim. “
Passa a a chamar a Rubinstein Tutullo, pet name  que Rubinstein detesta.
“Ma ti giuro, Tutullo, que ando com ele só por causa da minha carreira…. ah, noi… povere donne…”
Gabriella partiria dentro de dias para a Argentina para cumprir um contrato para o Faustino no Teatro Colón de Buenos Aires, e Rubinstein, também contratado para o mesmo teatro,  ainda tinha uns concertos para dar em Valência e Barcelona antes de partir.
Gabriella estava em lágrimas.
“Deixa lá, mulher… não chore isso… muito em breve, vais ver, lá estarei, a tocar para ti e tu a cantares para mim e então é que será a felicidade completa.”
Mas Gabriella atrasa a partida por causa dele.
Aparece-lhe de surpresa em Valência. Quer fazer a viagem com ele. Mas o Faustino  já andava desconfiado. E eles podiam-se prejudicar.
E ela lá vai para a Argentina sozinha, como sempre, lavada em lágrimas.
O Faustino anda tão desconfiado do esquema que adia a estreia da Besanzoni no Colón.
    “Mas eu mesmo assim amo-te hoje mais do que nunca, meu queridoTutullo!”
Naquela época, as viagens eram longas e cansativas. Uma tournée de concertos podia ser uma verdadeira aventura. Estávamos, vamos lá a ver, numa guerra mundial.
E depois do reencontro em Buenos Aires e dos concertos,  o pianista  parte para o Brasil,  e a Besanzoni fica por um tempo fora da cena de Rubinstein.


Rubinstein apaixona-se pelo Rio de Janeiro,  e depois de uma série de sucessos estrondosos e aventuras interessantes no Brasil, vai procurar vida em Cuba. Tem contratos para Havana. Mete-se num barco. Passa pelo Chile. Está em Valparaíso. Recebe um telefonema. Gabriella está agora no Rio de Janeiro a cantar. Mas apanhou a gripe espanhola, epidemia então muito em moda. Sente-se só e sonha com o regresso a Itália para o pé da mãe. Feliz e eterno amor para ti, meu querido Tutullo.
Daí a dias um telegrama. Completamente restabelecida da gripe, vou ter contigo ao Panamá. Gabriella.
Rubinstein não tem a mínima intenção de se casar com a  Besanzoni,  é claro. E pela-se de medo só de pensar que a intenção dela seja mesmo essa.
Arranjar naqueles tempos uma passagem de barco era uma complicação dos diabos. Grande parte dos navios estavam afectados ao transporte de tropas. Mas Rubinstein e Gabriella reencontram-se no Panamá.
         “Tutu, Tutullo, Tutullino!” -  berra Gabriella.
E vão, saltitantes, até ao hotel, danadinhos para a brincadeira e para matar saudades.
Sobem.
Rubinstein acompanha a senhora ao quarto dela.
E entra com ela. Fecham a porta. No momento em que fecham a porta ouvem uma voz muito áspera em espanhol:
        “O cavalheiro deve deixar imediatamente o aposento da senhora e dirigir-se ao seu próprio quarto. “
Mas que era aquilo? Abrem a porta. No corredor está um militar de má catadura. Gabriella e Rubinstein, após uma tão longa separação, estavam naturalmente com a água na boca para se encontrarem a sós e ficam estarrecidos com a moralidade dos hoteis panameanos.
“Ma come? Sono matti questi qui?”  -  grita  Gabriella. -
“Esta gente está toda doida, ou quê? Desde quando é permitido impedir que um homem e uma mulher sejam felizes?”
E ficam condenados a verem-se às refeições, ou nos corredores do hotel. Nunca num quarto com uma cama.

                                  

Rubinstein vai ter com o governador.
O governador, depois de estudar minuciosamente o estranho passaporte espanhol de um judeu polaco em tempo de guerra, e depois de várias peripécias lá lhes arranja passagens para Havana num barco da Grace Fruit Company, com escala na Colômbia e em Nova Orleães.
Passam as passas do Algarve nesse pequeno barco. Gabriella, exuberante mulher de beleza latina, era a única mulher a bordo e muito assediada por passageiros solitários e pelos próprios marinheiros.
O barco tinha poucas cabines e foi o cabo dos trabalhos para se alojarem, Rubinstein e o seu criado pessoal numa única cabine, e Gabriella, sozinha, noutra, cedida pelo médico de bordo.
Um calor de morrer, cachos e cachos de bananas e respectivos parasitas por  todos os lados. E de manhã à noite os olhos famélicos dos homens da tripulação sobre o corpo dela. E Rubinstein sem saber como protegê-la.
E lá foram. Que remédio…
Problemas em Nova Orleães com o famoso passaporte espanhol de um judeu polaco em plena guerra, judeu polaco que os americanos tomaram por um espião russo. O cabo dos trabalhos, mais uma vez.
Mas  lá chegaram a Havana.


Contratos. Concertos. Récitas de ópera. Negócios com o famoso empresário das américas António Bracale.
A Besanzoni fica apalavrada para uma Aída, e logo ao lado de Caruso.  E quando Rubinstein, ao cabo de  semanas de viagens e aventuras, sem estudar, vai a pôr as mãos num piano para começar a cumprir os seus contratos, os dedos não lhe obedecem e ele fica hirto de pânico. Tem que praticar horas e horas todos os dias, o que deixa Gabriella fula porque aquilo são horas roubadas ao amor.
Chopin e música espanhola fazem a glória de Rubinstein em Cuba. A Aída, com Caruso, é um triunfo para a Besanzoni.


Mas rebenta uma bernarda no teatro na noite de estreia. Caruso ia ganhar $1.000. Em Cuba a miséria é muita. Revolta. Na cena do triunfo alguém faz estoirar um petardo.
Caruso não faz mais nada e foge do teatro mesmo vestido de Radamés. Põe os pés ao caminho e vai para o hotel.
Há outras versões a dizer que o celebérrimo Caruso foi preso, apanhado na rua vestido à egípcia, de saias, a cara empoada para o palco, os lábios pintados. E que o levaram para a esquadra por atentado à moral e mariquice pública - é o que conta o romancista cubano Alejo Carpentier.


E acrescente-se que os empresários do teatro de Havana, tomados de pavor porque Caruso era a maior celebridade artistica da época e eles não sabiam dele, e que se ele desaparecesse seria o maior dos escândalos, um escândalo mundial e o maior dos prejuízos para o país,  correram toda a cidade antes de darem com ele na esquadra, todo contente, a fumar um charuto e a cavaquear com os guardas.
Rubinstein vai para a América. E volta a separar-se da Besanzoni. Mas recomenda-a a um certo baixo peruano da companhia de ópera,  ele que tomasse conta dela e que a ajudasse no que fosse preciso.
Rubinstein faz um grande sucesso na América, obviamente. E passado tempos recebe uma carta enviada de Cienfuegos. Cuba.
 Lembras-te, Tutullo, do baixo peruano a quem tu pediste para tomar conta de mim? Pois assim que tu viraste costas começou o malandro com os avanços e as propostas nojentas, numa linguagem do mais obsceno que tu, Tutullo, possas imaginar. Deixei de lhe falar. Enxotei-o e escorracei-o conforme pude, mas o quê, ele… oh, rai’s partissem o homem que parece que tem o diabo no corpo. Tornou-se violento. Quis-me arrombar  a porta do quarto aos berros e aos palavrões, uma coisa que só vista. Até ao dia em que puxou de uma navalha para mim. Estou mortinha de medo, Tutullo. Tu é que me podes valer. Pede aí ao embaixador de Cuba que faça qualquer coisa. O raio do homem está maluco, é doido varrido…
Bom judeu, Rubinstein culpa-se amargamente a si próprio de ter tido aquela maldita ideia de pôr o peruano a tomar conta da moça…
O consulado de Cuba em Nova York. Contacto com a polícia de Cienfuegos. O peruano era de facto um elemento perigoso. Atacara a própria polícia. Jurava a pés juntos que havia de matar a Besanzoni. Foi preso. Gabriella escreve a Rubinstein outra carta em lágrimas. Mas agora toda ela era gratidão e felicidade.
Entretanto a I Guerra Mundial acabava.
Rubinstein está hospedado no Biltmore Hotel, cujo pessoal já tinha dado provas de puritanismo considerável naquela questão de estarem homem e mulher metidos no mesmo quarto. De maneira que, quando Gabriella telegrafa de Cuba a dizer que vai ter com o seu Tutullo a Nova York, Rubinstein fica apreensivo. Lembra-se dos dias horríveis de jejum que tinham passado no Panamá por causa do puritanismo dos militares.
Toda a Nova York estava possessa da euforia de vitória.
                                                                                               
Gabriella chega a Nova York e, por causa das moscas, Tutullo reserva-lhe aposentos no 1º andar do hotel – estando ele aposentado no 12º. E tem que lhe explicar porquê.  Gabriella ouve-o e diz entre dentes:
“America non mi piace.”


A presença da Besanzoni em Nova York faz logo movimentar o mundo da ópera. Rubinstein faz as vezes de agente da Besanzoni  nas negociações com  Gatti Casazza, o todo-poderoso manager do Met, e descobre que até gosta daquilo. Sim, daquilo de ser empresário.
A Besanzoni não quer assinar contrato algum que não inclua a Carmen no repertório - tinha um repertório curto.  Mas o Met tinha uma estrela intocável que era a Carmen ajuramentada da casa, uma espécie de proprietária daquele papel,  Geraldine Farrar.
E discos! Discos era o que estava a dar, ou iria dar dentro em breve…
Como digo, metido a agente de Gabriella, Rubinstein vai-se entender com o patrão da RCA Victor. Eles estavam interessados em ter a Besanzoni na lista de artistas em que figurava Caruso.
     “E ouça lá… ela sabe alguma coisa de gravação de discos?”
   “Parece-me bem que não” – responde Rubinstein.
“Temos que ensiná-la.”
       “Muito bem. Mas vamos lá ao que interessa” – começa Rubinstein armado em duro. – Qual é a vossa oferta?”
          “Que é que você quer dizer com isso de oferta? Ela leva 10% das vendas, como os outros, e é um pau. E não diga que vai daqui…”
          “Nem pensar nisso é bom” – replica Rubinstein no papel de  difícil negociador.
      “Pois olhe, amigo Arthur, pode apostar a sua vida em como ela aceita e torna a aceitar. E ainda lhe digo mais: se você, amigo Arthur, conseguir que ela venha trabalhar connosco ainda lhe damos a si uma abébia… duas ou três peçazitas lá do piano de lambugem para você gravar… e não seria nada mau para a sua carreira…”
    “Não, não vou nisso. Vocês que negoceiem directamente com madame Besanzoni… eu cá por mim… o quê? Tenham juízo. O som do piano nas vossas máquinas fica parecido com um banjo…”
E a Besanzoni, de facto, ainda lhe dá uma descasca por ele não ter aceite os 10% logo à cabeça.
      E foi o fim da carreira de Rubinstein como empresário.
Cidade do México. 1920.


Revoluções. Guerra civil.
      
                     

 Átrio do Hotel Vitória. Rubinstein está sentado à espera de Gabriella.
Gabriella chega. Novidades. O empresário faliu. Tita Ruffo, o barítono, o divo máximo da companhia, tinha-lhe roído a corda. Pode ser que um consórcio bancário lhe valha.
Rubinstein estava de concertos marcados, mas nada com respeito a publicidade, o empresário estava sem cheta.
Ainda assim, o primeiro concerto de Rubinstein realiza-se. Na sala, o público não chegava a cem pessoas. Era quando Rubinstein tocava melhor. Quanto menos gente quanto mais ele tocava bem. Aqueles que ali estavam eram a elite de uma casa cheia.
Foi-se a ver, e o empresário da temporada de ópera e concertos era um empresário de touradas que não percebia népia de música clássica.
Afastado esse empresário, os novos responsáveis pelo teatro garantem a Rubinstein dois meses seguidos de concertos, com 85% de lucros de bilheteira para ele.
         “Como? 85%? “ 
Rubinstein desconfiou da fartura. Os novos empresários ainda por cima se responsabilizavam pela publicidade. Como era? E onde ia ele desencantar repertório para dois meses de concertos?


         “Ouça lá, ó amigo, eu não sou nenhum show-man!” 
        “Esteja descansado, sr. Arthur, o público daqui quando gosta de um artista, oh, meu amigo…”
        “Mas ouça, eu só tive cem pessoas no outro dia…”
        “Essas cem pessoas vão transformar-se em milhares se você tocar à terça, à quinta, ao sábado e ao domingo à matinée.”
E foi mesmo verdade. 26 concertos para casas esgotadas, incluindo cinemas nos arredores da Cidade do México. Por cada peça que repetia, Rubinstein dizia à assistência:
         “E agora, a pedido do público!”
E assim  o repertório já lhe chegava e sobrava.
Gabriella triunfava na Carmen, evidentemente. Mandavam-lhe flores e perseguiam-na nas ruas. A Rubinstein chegam a levá-lo em triunfo do teatro ao hotel.
E entretanto, a guerra civil. Os bancos começavam a ser atacados por guardas disfarçados de bandidos e agindo às ordens do ditador Venustiano Carranza. Havia generais de vinte anos. Toda a gente andava armada de revólveres. Nos bares e restaurantes mais finos chegava-se a fazer tiro ao alvo aos lustres e candeeiros. Os artistas eram pagos em barras de ouro que amontoavam em pilhas nos quartos de hotel.


Um dia, Gabriella põe os pés à parede e declarou que nessa noite não cantava. Não cantava, não cantava e não cantava. Queixava-se de uma intriga que corria no teatro contra ela. Rubinstein tenta chamá-la à razão.
      “Também você está contra mim?  Toda a gente está  contra mim.”
Do teatro chegam os avisos. A senhora conhece as nossas leis. A senhora Besanzoni vai cantar esta noite quer queira quer não.


A Besanzoni faz ouvidos de mercador.
       “Está bem abelha, o meu público há-de defender-me, e ai de alguém que tente fazer-me mal. Pode cair morto no momento - Gabriella vai, atira-se para cima da cama e declara: “Estou doente, não posso cantar.”
Aparece o médico do teatro. Declara sob palavra de honra: Madame Besanzoni está de perfeita saúde.
Arthur aconselha-a a vestir-se e a pôr-se a andar para o teatro. Gabriella trata-o como um traidor. Aparecem dois polícias no quarto,  
         “Vamos embora, Madame, toca a vestir e toca a andar à
nossa frente para o teatro, já. Se não obedecer vai dentro.”
Bom, Gabriella lá se foi vestindo. A resmungar. Quando fica pronta vira-se para o amante e diz:  
         “Arturo, se eles me tentarem matar, tens que me  defender.”
E lá vai ela.
Arthur também se vai arranjar, também vai para o teatro. Senta-se numa frisa e assiste ao espectáculo. Tudo corre à maravilha. Até à entrada de Carmen.
Quando Carmen aparece, qual não é o espanto  de Rubinstein ao ver a Besanzoni entrar em cena com a roupa da rua, de chapelinho e tudo. O pandemónio. O público desata a gritar. Antes de atacar a Habanera, a Besanzoni  levanta as mãos, manda calar o público…
A Bensanzoni fala. Metade em italiano, metade em espanhol. Acusações contra as leis mexicanas, contra a injustiça e contra o cruel sadismo da direcção do teatro. Mas voz dela depressa é silenciada pela vozearia do pagode. Os mesmos dois polícias que a tinham arrastado do hotel para o teatro entram em cena  e voltam a arrastá-la, desta vez para fora do palco. Rubinstein sentado na sua frisa todo ele são suores frios. Corre para os bastidores. Confusão.
Gabriella estava desfeita, em  estado de choque, meio desmaiada.
Mas de súbito levanta-se e começa a vestir-se de Carmen.
Regressa à cena.
Ataca a Habanera. O público perdoa-lhe tudo e a Besanzoni averba um triunfo.


  No fim da récita Rubinstein está cheio de fraqueza. Tinha passado todo o santo dia quase sem comer nada devido aos caprichos e conflitos da sua Carmen, a verdadeira Carmen. Alguns amigos convidam-nos para uma ceia. Mas qual quê… Gabriella não admite cá ceias.
       “Agora, Arturo vamos a todos os jornais da Cidade do México contar a verdadeira história desta noite.”
E isto foram facadas para o estômago esfomeado do Arturo.
Meteram-se num táxi e correram os jornais da cidade – que se estiveram efectivamente nas tintas para os problemas de uma diva italiana no meio de uma guerra civil. Eram quatro da matina quando entraram num restaurante para jantar.
A comida era bastante boa. Havia uma salada especialmente gostosa. A  Besanzoni pede a receita para levar para a mãe.  
          “Como é que vocês cozinham isto?”
Os mexicanos disseram como era, e também disseram que aquele gostinho tão bom era dado por uns vermes que lhe deitavam e que se chamavam gusanos. A Besanzoni ouve isto e desata num berreiro a chamar assassinos aos cozinheiros.
No quarto do hotel não parou de vomitar até alta manhã. Com Rubinstein a amparar-lhe a cabeça e sem achar tempo para preparar como devia os seus próprios programas de concerto.
E pronto. Rubinstein parte de novo para a América. E depois para Londres. E depois para Espanha. A Bensanzoni fica no México para umas récitas ao lado de Caruso, oportunidade que não queria perder nem por nada desta vida.
Depois decorre um longo silêncio entre os dois.
Até que se encontram em Nova York.
Abraços e beijos. Gabriella acaba de se estrear no Met. E também no Met encontrara um ambiente hostil, uma cabala contra ela. A culpada era a contralto alemã (aliás, húngara) Margaret Matzenauer,
          “Arturo, aquilo é a criatura mais venenosa que existe ao cimo da terra" - chegada ao Met da Besanzoni não era boa coisa para a carreira da Matzenauer. - "Chegou a pôr a correr, calcula tu, Arturo, que o meu sucesso na América do Sul com a Carmen era falso e nem era por causa da minha voz nem da minha maneira de cantar… era por causa dos gestos indecentes que eu fazia para o público e que excitavam muito os homens, calcula tu, Tutullo…”
Caruso era o maior amigo, o único com que podia contar naquele malvado teatro de Nova York.
Estreara-se na Aída. Mas a Matzenauer tinha pago à claque para patear a grande Besanzoni. Caruso ficara indignado. O director, Gatti Casazza, disse que o público do Met a apreciava muito. Mas nada de lhe renovar o contrato. E em casa, a mãe da Besanzoni, em vez de a confortar passava o dia a gritar vingança!, vingança!
Quando Gabriella volta para Itália, Rubinstein sente que recuperou por fim a sua total liberdade de movimentos e que com toda a tranquilidade poderia agora, em Nova York, dedicar-se à sua própria carreira.
E Rubinstein volta ao Brasil. E passa pelo Uruguai, por Buenos Aires. E depois, Paris.
Paris, onde um belo dia recebe carta da Besanzoni a dizer que chegaria em breve para ver as vistas. Paris onde se dará o desagradável quiproquo que contarei um dia destes e devido ao qual terminaram, ingloriamente, as relações entre o grande pianista e a grande contralto, e pelo qual o grande pianista, por uma questão de moral pessoal, fica com fama de invertido só porque correu a ajudar um amigo numa noite de aflição.
Bom, pelo menos é o que o próprio Rubinstein conta. Se quanto a esse particular alguma coisa havia por detrás, já não sei. Nunca me constou nada que desabonasse a virilidade de Rubinstein.
E aquilo também, na volta, foi um pretexto que a Besanzoni arranjou para o pôr com dono. Talvez já tivesse arranjado outro. Se calhar o brasileiro riquíssimo dos navios mercantes com quem veio a casar.
Mas, assim como assim, e não obstante ter pago por isso o seu preço - como sempre acontece nestas coisas -  Rubinstein também tinha passado os seus bons bocados nos braços da verdadeira Carmen.


2 comentários:

  1. Ao seu jeito muito pessoal, mais uma deliciosa "fofoquice" sobre um dos grandes nomes da música.
    Obrigada, Joel.

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