DE VIOLÊNCIA SOCIAL
Ou sou eu que estou
redondamente confundido, ou houve uma das chamadas agências de gestão de risco
que que incluiu para este ano Portugal (e pela primeira vez) no mapa de risco
político e de latente violência pública, e assim em consequência da conjuntura
crítica em que o país vive.
Até hoje não
dei por nada.
Mas ao colocar
Portugal num grupo de risco de violência pública, de violência social,
dir-se-ia que essa agência internacional tem em vista, e fundamenta-se, num
princípio de ritualização da violência pública em si mesma, prevendo a sujeição
dos actos a um conjunto de normas operativas aceites e ritualizadas.
Num primeiro passo do
ritual, o Estado implementaria medidas desequilibradas ou injustas sobre a
população, e num segundo tempo cerimonial a população revoltar-se-ia contra
essas medidas e praticaria uma quantidade de distúrbios públicos. E seria
ritual porque seria, além de simbólico, lógico, e normativo, acção e reacção,
causa e consequência óbvia. E tudo isso no quadro de uma civilização de
violência, tendente a devassar os limites burgueses do bem-estar e a passar de
uma revolta metafísica aos alvores de uma revolução social.
Pois a mim
impressionaram-me sempre aqueles que cassandramente vêm profetizando a próxima
eclosão das violências sociais no brando e resignado Portugal. Desde a chegada
da primeira delegação troikista que se lê e ouve a mesma profecia. E dita não
pelas agências internacionais, nem por uns quaisquer zés-ninguém, mas prevista
por gente de inquestionável estatura intelectual e política.
É facto que se têm
visto pela televisão os tremendos movimentos insurrectos que correm esse mundo,
Atenas, Madrid, Barcelona, Istambul, Brasil (upa, upa), Ucrânia...
E, sempre no respeito
da ordenança ritual, esperou-se qualquer coisa do género por cá. Seria simbólico,
lógico, normativo. Mas por cá, por enquanto, algumas manifs empolgantes e
cordatas, sim, e devidamente enquadradas pelos poderes sindicais. No máximo,
soube-se de pequenas escaramuças nos arrabaldes de S. Bento a correrem por fora
dos eixos de uma Intersindical de horas marcadas, sempre atenta ao severo
mandamento de que uma violência sem tensão revolucionária descambará facilmente
em violência reaccionária.
Mas talvez não
seja erro notável dizer que as revoltas populares de Atenas, Madrid, Istambul e
Brasil pouco, que se perceba, terão alterado a implacável ordem das coisas
instituída nesses países.Os governos, e respectivos sistemas de actuação, como
é evidente, estão, neste momento histórico, em perfeitíssimas condições de
absorver sem pestanejar os protestos, ou mesmo de integrar esses protestos no
seu próprio modo de funcionamento e na mesma implacável ordem das coisas.
O sistema
global da economia sempre percebeu muito da psicologia e dos dados motivacionais
das massas. No nosso caso, percebeu muito do jogo dinâmico disputado entre a
probabilidade de mobilização e o formidável impulso da desmobilização que
palpita no mais íntimo do ser português. Daqui a própria dinâmica de revolta
popular passar a fazer parte do arsenal auto-defensivo do governo financeiro
global, no momento em que a violência popular poderia ser o elemento
contrapontístico da correspondente violência de uma autoridade – neste caso
económico-financeira. E isto assim a fingir que acreditamos que existe mesmo uma
violência popular espontânea e desenquadrada e nunca por nunca arrebanhada e
paga por gente muito estranha às massas populares de cada Estado.
A eclosão de
uma violência política e social na sociedade portuguesa, se determinada pela
causalidade concreta que é a insuportável devastação das condições de vida de
tanta gente, seria uma violência de claros objectivos e de límpidas motivações.
Simplesmente, aquilo a que de actos violentos doravante se assiste na terra dos
brandos costumes remete para uma violência meramente individual, passional,
familiar. Ou uma violência pela violência, sem finalidades nem objectivos precisos
ou relevantes – e muito menos políticos. Possivelmente a tal violência
incompreensível segregada por uma sociedade metida à obsessão do bem-estar e da
segurança.
É corrente
supormos que ao vivermos em sociedade de abundância os riscos de erupção das violências
políticas e sociais estão afastados de nós, e visto que eles são inerentes à
vida numa sociedade de penúria. Errado. Numa como noutra das sociedades as
violências espreitam. Será talvez a sociedade da abundância a que tende a
produzir mais episódios públicos violentos sem finalidade aparente, uma
qualidade de violência, por assim dizer, diversa de uma violência política e
economicamente objectivada, justamente a que se espera seja segregada pela
sociedade de penúria.
Sim, claro, a
abundância acarreta a suas fundamentais contradições produtoras de violência.
Ainda mais quando se vive numa sociedade dita da abundância e se descobrem nela
as pegadas fundas e frescas da penúria, e quando se conclui que se viveu foi na
sociedade da ilusão…
Posso é perguntar-me
cinicamente quem é que em Portugal pode ser a vanguarda de uma violência social
a explodir um destes dias nas ruas.
A Intersindical
nunca. E bem. E nunca porque fidelíssima cumpridora dos rituais; e porque a tais
violências de rua seguramente faltariam as tensões revolucionárias e logo as
arruaças se transformariam em acções de violência reaccionária que em nada
poderiam favorecer a justa luta dos trabalhadores. A Intersindical faz parte de
uma ordem das coisas e assegura com escrúpulo o regular funcionamento dessa
ordem, em funções protestativas toleráveis, a começar às seis e a acabar às
dez, adstritas ao razoável e sem deslizes para a margem dessa ordem das coisas
onde se integra a sua função institucional.
Então, quem?
Serão os estudantes a dar vigor à justa revolta popular – todos nos lembramos,
como é óbvio, do Maio de 68. Mas por mim duvido. A menos que essa violência
esteja já contida no outro ritual violento e gratuito que pode ser o das praxes
académicas. E porque, ora adeus, estudantes com visão social e política eram
aqueles grávidos de ideologia dos anos 60 e 70. Chão que deu uvas.
Talvez até
porque os universitários de hoje em dia, com a democratização dos ensinos, já
não sejam filhos de tão boas e abastadas famílias e não tenham quem lhes financie
as rapaziadas ou as cavalarias altas da subversão, e por isso pensem primeiro
que tudo em tirar o cursozinho de Economia e Gestão (ou de uma das muitas
engenharias que agora há), e depois… ou Samsonite aviada para a Suíça ou para a
Inglaterra (se ainda forem a tempo), ou chegarem-se ao sopé do conselho de administração de uma empresa de topo, serem
absorvidos pela ordem geral das coisas e curtirem a vidinha na sociedade da
abundância.
Será a classe
operária a liderar a insurreição pública? Noutro tempo não lhe competiria menos
do que isso. E hoje talvez continuasse a ter excelentes razões para o fazer. O
que pode acontecer é a classe operária não ter já tanta consciência de si
enquanto classe, em comparação com os outros tempos, e depois de operária a
classe ter sonhado ser pequeno-burguesa e tratado de se integrar na ordem das
coisas da sociedade da abundância, do bem-estar e da segurança.
Então só podem
ser os desempregados a agitar a bandeira da revolta popular.
A questão é que
grande parte dos não sei quantos milhares deles estão desesperados e nem por
nada lhes passa pela cabeça agravar a situação em que já estão pegando em cocktails Molotov, dando por paus e por
pedras, estilhaçando montras, invadindo S. Bento, insultando a reformada presidente
lá daquilo, pilhando bancos, e o diabo a sete.
Além dos
desesperados, temos os de longa duração. E por de tão longa duração ser o calvário
desse desemprego já eles esqueceram a condição de desempregados, quer dizer, já
só são revoltados, potencialmente violentos, sim, mas canalizando as violências
para outros territórios mais chegados, mais privados – bater na mulher; ou, se
for caso disso, matá-la mesmo, alegadamente por ciúmes.
Deixando os
desempregados, e passando por alto os empregados, os profissionalmente activos
que não têm tempo para revoltas e se limitam a cumprir os horários cada dia
mais leoninos e a trabalhar nos dias santos que estavam habituados a guardar,
restam os mais afectados pela tal conjuntura de crise e pelas medidas do governo:
os velhos, os reformados.
Quem havia de ser?
Quem havia de dizer?
Os mais velhos
e os menos bem reformados, digo, porque ele reformados há muitos. Os menos bem
reformados, no vigor dos seus 60, 70 ou 80 anos, teriam as mais fortes
motivações para partir para o desacato público, para marchar contra a polícia
de choque, para invadir o Parlamento armados de catanas, a darem também eles
por paus e por pedras, a partirem tudo, a insultarem a colega reformada
presidente lá daquilo.
Pois sim, a acontecer
a profetizada violência civil derivada da conjuntura de crise só consigo ver na
vanguarda dela os reformados, os pensionistas, os mais velhos, os mais mal
reformados.
Enfim, simplificando,
a mais forte motivação para a violência pública será a fome. Quem, na
conjuntura de crise, se arrisca a passar mais fome?
Até apetece
meter aqui a citação de um desusado Wladimir Ilitch Ulianov – mais conhecido pela
alcunha de Lenine: a liberdade na
sociedade capitalista é sensivelmente sempre como o foi na Grécia antiga, uma
liberdade para os proprietários de escravos. E em consequência da exploração
capitalista, os escravos assalariados de hoje vivem tão oprimidos pela
necessidade que se desinteressaram da democracia e da política (…) e no decurso
normal dos acontecimentos a maioria da população acha-se apartada da vida
política.
Será a fome a levar
os portugueses, por mais reconciliados com a ordem das coisas na sociedade da
abundância, para a revolta social. Mas só se me esquecer dos records de levantamentos no multibanco
batidos todos os anos pelos portugueses por alturas do Natal; só se me esquecer
dos tantos que continuam a ir de férias (Natal, Carnaval, Páscoa, verão) para o
Brasil e para as Caraíbas - os destinos de férias da Páscoa já esgotados este ano (dos jornais); só se me esquecer dos portugueses da sociedade da
abundância que continuam a ir todos os dias de carro para o trabalho e a
engarrafar monstruosamente o trânsito das manhãs e do fim das tardes.
Serão uma
minoria estes que acabo de mencionar? Não sei. Estou em crer que sim. Mas a
maioria, que é dela? Continua silenciosa, como sempre. Está em casa, recolhida,
a pedir a todos os santinhos da corte do céu que o Estado, através do seu braço
armado que é o governo, não exerça mais violência sobre eles.
Quem tem
exercido (e continuará a exercer) mais violência social no país da conjuntura
de crise do que o Estado mesmo?
A violência social,
bem se pode dizer, tem sido monopólio do Estado. E nem estou a ver no espectro
sócio-institucional quem possa ter mais competência do que o Estado para
cumprir as profecias da violência cívica – a pública e a privada.
Ao cobrar
impostos – e isto é dos mais velhos livros -, e sem ter de recorrer à força
policial, a chanfalhos, cargas de água ou gases que fazem do mais teso dos
revoltados um chato choramingas, o Estado exerce a sua fundamental violência
sobre a sociedade. E mais violência, e mais brutal ainda, quando a infâmia
fiscal se abate privilegiadamente sobre os mais velhos, os menos bem reformados
e mais vulneráveis dos seus governados.
As contribuições de
compulsiva solidariedade lançadas sobre os que evidentemente vivem da
solidariedade social mais não são do que os chanfalhos, as cargas de água, os
gases e as balas (por enquanto) de borracha.
Contribuição de
solidariedade. Solidariedade em benefício de quem? Sem dúvida que em benefício
dos detentores de cargos públicos e das respectivas e imutáveis mordomias. Sem
dúvida que em benefício dos jovens introduzidos à pendura no aparelho de Estado
para assegurarem as mais caninas lealdades ao seu partido. Sem dúvida que em
benefício dos banqueiros. Sem dúvida que em benefício dos parasitários deputados, esses sim, os grandes falsificadores da democracia que compõem as leis mais conformes aos
seus interesses privados, que estão todos serenamente de acordo numa feliz
unidade esquerda-direita quando aumentam os próprios salários e as próprias
benesses, que acumulam a deputação com posições em escritórios de advocacia
milionariamente pagos para fornecem pareceres ao governo…
Sim, senhores, é aos
mais desprotegidos, nomeadamente aos reformados, que cabe o duro encargo moral de
salvar o país da bancarrota para onde o atiraram aqueles em que temos
alegremente votado de há 40 anos para cá. Cabe aos mais desprotegidos e
carecidos de solidariedade solidarizarem-se com quem os tem enganado e contribuírem
que nem uns heróis para o funcionamento da gigantesca máquina agressora que é o
Estado.
E só não se poderiam
considerar como violência (e porque não terrorismo?) de Estado as imposições de
solidariedade aos mais pobres em benefício dos mais favorecidos se se reduzisse
o conceito de violência pública a comoventes gases, a refrescantes cargas de
água, a suaves cassetetadas e macios impactos de balas de borracha. Se toda a
violência do Estado se resumisse a repressão física. Ou seja, a tudo aquilo que
nos cardápios da violência da sociedade do bem-estar e da segurança passa a
estar definitivamente ultrapassado, em comparação com a imposição da fome a uns
para a fartura de outros.
Sim, sim, demagogia,
pois, mas também coisas que irritariam um santo…
E nem é preciso ir
buscar o Kropotkin para dizer que o Estado, de uma maneira ou de outra, é a
forma política do privilégio, e que a existência dele assenta sobre a força –
que já foi militarmente violenta, e que hoje lhe basta ser
económico-financeira, embora nem por isso menos violenta; ou até pelo
contrário, hoje muito mais eficaz.
Nem é preciso dizer
anarquisticamente o que já se sabe e já se sente no corpo e no estômago: que o
Estado é opressão organizada e moralmente legitimada para proveito de uma
minoria de privilégio – minoria bem grandinha, vamos lá com Deus...
Poder-se-ia então
concluir apressadamente nos tempos que por aqui correm pela efectiva realidade
de um excesso de Estado em contra-mão das convicções liberais que nos dizem que
o Estado intervém e protege por demais. Excesso de Estado, digo eu, não por
aquilo em que ele intervém como regulação das vidas e dos mercados, mas por
aquilo em que ele não intervém nessa mesma regulação, e numa dita conjuntura de
crise.
Nada existe mais do
que aquilo que não existe, como dizia o outro, e há entidades e instituições
(tal como pessoas singulares ou mitologias) que se afirmam muito mais
eficazmente pela ausência do que pela presença.
A faceta
tendencialmente liberal e não-interventiva do Estado apático na economia
favorece as injustiças, já se sabe, e criará uma constante virtualidade de
desordem pública pelo escavar do que de crise social decorre da ausência do
Estado em solidariedade e regulação.
Será questão de uma
ponderação moral entre o lícito e o ilícito, considerando a matriz injusta e
ilícita da violência pública indiscriminada. Mas pense-se na natureza injusta,
moralmente ilícita e muito mais socialmente gravosa que o Estado impõe de
penalização sobre os estratos menos favorecidos da população, premiando uma
pequena parte dos seus cidadãos com a manutenção intocada de alevantados
rendimentos, e condenando mais larga parte desses cidadãos à miséria e à fome
pela sua posição de recuo enquanto moderador de ganâncias económicas.
A acontecer por estes
reinos essa objectiva violência popular, os agentes dela estariam a tomar uma
atitude moral. Mas o mais certo é não vir a acontecer, claro, porque na
civilização da abundância, da segurança e da violência haverá sempre quem
recuse a moral do confronto aberto e sadio e adira de corpo e alma à outra
moral, a do compromisso. A bem da decrepitude democrática, é certo. A bem da
resignação social e da perpetuação do estado das coisas, também é certo.
ResponderEliminarTudo muito bem visto, sem dúvida...
Mas uma coisa é certa: quanto mais de próximo se estuda a "árvore", menos de consegue aperceber a totalidade da "floresta"!
Corrijo: "(...) menos se consegue", como é óbvio...
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