terça-feira, 8 de abril de 2014


QUANDO HOJE OS AMANHÃS
CANTAM, OUVE-SE A CANÇÃO DO BANDIDO, OU A MINHA CULTURA DE ESQUERDA


Nessun maggior dolor che ricordarsi del tempo felice nella miseria
                                 DANTE (Divina Comédia)

                           
      (...) demorou-se alguns dias em Portugal. Fizera a si         mesmo mil perguntas sobre o declínio desta nação cujo império se alargava a todo o globo. Conheceu escritores que não escreviam para ninguém homens políticos que governavam para os ingleses; homens de negócios que liquidavam as feitorias do Brasil e viviam de rendas exíguas nas cidades de província, sem qualquer objectivo. Concluiu que a pior das desgraças era nascer português. Em Lisboa, e pela primeira vez na vida, travara encontro com um povo que se tinha desinteressado.
                                            ROGER VAILLAND (A Lei)

      - Mas ainda tenho imensas perguntas a fazer: que             impressões levas tu de Portugal?
      Henry encolheu os ombros:
      - É uma nojice.
      - Porquê?
      - Por tudo.
                                      SIMONE DE BEAUVOIR (Os Mandarins)



                                       

Às portas de mais um Abril que já nem valerá a pena comemorar, talvez só nos reste pensar…

                                                                                            

      Pois não, não sabíamos, nem sonhávamos que quando os democráticos amanhãs cantassem para nós cantariam uma canção do bandido, que é a que estamos neste momento a ouvir…


Mas enfim, adiante.


Aqui há tempos, estava eu, tertuliano, num belíssimo palacete de Lisboa a palestrar acerca de assunto que, tanto quanto possível, nada tinha de político, quando, ao cabo de dez minutos de arenga sobre mecenas, música, músicos e teatros, uma senhora da audiência cochichou para o cavalheiro do lado, o marido, referindo-se a mim: “este é de esquerda”.

                                                                        

 Eu não ouvi. Alguém que estava perto do casal é que ouviu e me disse. E eu perguntei-me: como foi possível terem detectado em mim e nas minhas palavras banais sobre um tema em que não há esquerdas nem direitas (ou há?) uma especificidade ideológica de esquerda? Ou será que mesmo inócuo qualquer assunto pode trair ideologicamente quem o desenvolve? Se calhar é isso. Mas ainda hoje não estou certo da resposta à minha própria pergunta.
Ou será que a qualidade e a moral de ser de esquerda acaba por se agarrar às mãos, à cara, à voz  e às roupas daquele que não é de direita?
O facto de se ter sido de esquerda em anos de juventude – e juventude já bem avançada, de resto – mesmo não militante, nada de sprays, nada de cartazes, nada de sermões encomendados, nada de porrada nas ruas -, será sempre uma marca inapagável no corpo de um indivíduo – provavelmente como acontece com o indivíduo de direita. Uma maneira de ler. Uma maneira de olhar. Uma maneira de mover a cabeça, Uma maneira, em suma, de ser. Mesmo quando já não se é.


É a vida. A vida é que é. A vida é o que é.
Senti então, ao contarem-me o caso, ter chegado a um ponto da História da minha vida mesma em que, muito tristemente, me convenço de que pouco ou nada se cumpriu das convicções de esquerda da minha juventude. Quero eu dizer que pouco ou nada mudou nos sistemas que vigoravam quanto à circulação do capital, nas mecânicas que regulavam o mundo e a vida, sistemas e mecânicas que, ingenuamente, amadoristicamente, eu pensava transitórios, e tão passageiros quanto o regime que vigorava nessa minha juventude, nos meus 18, 19, 20 anos. Até aos 30. Pois foi. E foi porque fiz 30 anos dois meses antes do que foi chamado de revolução, a 25 de Abril de 1974.


O 25 de Abril, não o sendo na altura, acabou por ser mais um decepcionante impasse na minha consciência política. Ou, por outras palavras, na minha cultura de esquerda. Porque me roubou o sossego das convicções. O mundo como o quisemos entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975 era impossível, irrealizável – inverosímil!


Não o sabíamos bem, então. Sabemo-lo agora. O mundo e a vida que se instalaram na minha cultura de esquerda a seguir a 25 de Novembro, e até hoje, não é o que a minha cultura de esquerda desejaria, ou sonharia, vá lá…
Para mim, cidadão mais que comum – e julgo que para muitos -, o 25 de Abril foi primeiro que tudo uma emoção. Não sei se tem cabimento chamar a uma emoção de social, emoção social, emoção politica, emoção colectiva, emoção solidária. Isso mesmo. Não sei até que ponto a emoção entra na acção e na técnica políticas, ou até na História. Mas foi.


Não era muito conhecida a ocorrência de uma revolução feita por militares que não fosse um golpe de Estado de extrema direita nalgum país da América Latina. E o chato é que o que se estava a passar na madrugada de 24 para 25 de Abril de 74 era para ser. Um golpe militar. Só.


Ah, mas mas o pagode veio para a rua. O pagode que era de esquerda como todos os pagodes. O pagode de esquerda veio para a rua acometido por uma emoção politica. Diria até que acometido por uma emoção de esquerda, mais ou menos sistematizada ou consciente, mas uma emoção de reviralho, de esquerda, e fruto da tal cultura de esquerda que também era a minha. Porque, pensava eu, uma cultura de esquerda não era adquirida nas suas coordenadas íntimas em razão de uma conveniência puramente pessoal. A cultura de esquerda não era uma cultura de interesses – julgava eu que não era. É – era, pelo menos – a direita, ou alguma direita, que era chamada a direita dos interesses. A esquerda era a esquerda do mais nobre ideal.


A cultura de esquerda, oh, tanto a dizer!
Uma cultura da emoção, também. Ou seria um aprimoramento de alma sob melodias de solidariedade universal. E apontava para a direita como sendo, essa sim, uma cultura de mesquinhos interesses materiais classistas e egoístas que nunca sonhara com nenhum Homem novo, com nenhum mundo novo, porque o mundo mesmo bom era o que estava, o velho, selvático na multiplicidade dos interesses em jogo.

















                               

E todavia, em 1974, o mundo era velho e selvático, mas mesmo assim talvez não tão arcaico na sua selvejaria como o mundo que estamos a viver hoje, agora.


Cultura de esquerda. A esperança, primeiro. Tal como a doutrina neo-realista a mandar que por mais desgraçado e desesperante que fosse o entrecho do romance, ou do poema, ou da peça, ou do filme, as últimas sequências tinham que deixar no leitor ou no espectador um rasto esperançoso. Esperançoso de que as injustiças e desigualdades teriam um dia que acabar, que a miséria, a fome, a guerra, oh, teriam um dia que acabar, e que para que esse dia chegasse era absolutamente precisa uma militância de esquerda, e que nessa militância o Homem soubesse reciclar o natural instinto individualista e materialista e irmanar-se, e construir uma sociedade nova, uma nova ordem, um novo mundo, uma nova justiça. Construir-se a si mesmo como um novo Homem. Muitos acreditámos que isso seria possível. Eu fui um deles. E quando rebentou o 25 de Abril sou capaz de ter pensado “cá está o tal dia que haveria de chegar e finalmente a redenção do Homem português vai começar”.


Muitos acreditámos na redenção do Homem como possível. Mas, como diz o outro, não há nada como realmente.


Muitos acreditámos que a reciclagem do Homem começaria por uma revolução. Que diabo, o mundo já tinha mudado radicalmente depois de uma revolução, a de 1789, a francesa.

                                                       

 Será que o mundo e o Homem mudaram depois da de 1917, a russa? Ou mudado assim tanto?


Fizeram-nos crer que sim senhor. E muitos de nós, os emocionais de esquerda, acreditámos que sim até ao fim da década de 80. Na década de 90 já sabíamos que isso não seria inteiramente verdade. Que a História não se enganara, não senhora, o que nos tinha era contado uma mentira. A História também mente, oh, se mente!


E os que acreditámos na possibilidade de redenção do Homem e na reeducação da sua natureza profunda a começar por uma revolução, vimos chegada a oportunidade portuguesa, não na madrugada de 24 para 25 de Abril, porque estavamos a dormir na nossa santa e velha tranquilidade de direita, mas sim lá mais para o fim do dia 25 de Abril - segundo outros, lá para o fim do dia 11 de Março do ano seguinte.
                                                                                                  
                                                                    

Pois bem, mas a reeducação do Homem português, sabemo-lo hoje, se por acaso começou com a revolução do 25 de Abril, acabou no ano seguinte. E não foi preciso voltar ao fascismo. O Homem português que no escaldante verão de 75 era emotivo, solidário, consciente, coerente, justo… no outono desse mesmo ano estava livre de regressar aos seus sossêgos de direita capitalista. Os seus redentores e reeducadores tinham desistido. Ou não eram capazes. Ou nunca tinham pretendido redimir nem educar ninguém. Ou então tinham cinicamente enganado esse Homem emotivo, mostrando-lhe apenas o que havia a mudar para que tudo ficasse na mesma, como dizia o outro – na mesma ou mais ou menos na mesma.


Os que acreditaram nos tão engraçados amanhãs que cantavam, pelo tempo fora, convenceram-se de que os amanhãs não cantavam, nunca tinham cantado, e que só os hojes cantavam, e cantavam canções de bandido, e que os amanhãs eram metas tão distantes que nesses amanhã estaríamos todos mortos e já cá estariam outros, porventura também a pensar que os amanhãs existiam, e que até podiam cantar, para estarem também eles mortos antes que chegassem esses amanhãs em que já cá estariam outros, esses cada vez menos convictos de que poderiam chegar a um amanhã e muito menos de que esse amanhã lhes cantasse uma simples canção.

                                                     

Não. Os amanhãs, se cantassem, seria uma canção do bandido. E quando os amanhãs chegaram e começaram a cantar foi isso, uma canção do bandido, longa, longa, cheia de estrofes e de infinitas modulações, maior, menor, sustenido, bemol, a quarta aumentada… o diabolus in musica, claro… até hoje, ou até ao amanhã do próprio e desesperançado amanhã…



O 25 de Abril trouxe-nos de par a esperança e a descrença; a vitória de que nos ufanávamos nas ruas, à tarde, e o silêncio desconfiado que se refugiava nas casas, à  noite.
E todavia era necessário esse dia 25 de Abril. Não se podia continuar a viver assim, na cultura da esquerda sobre a prática da ditadura de direita.


E todavia, por um simples relance diário a qualquer telejornal, os espíritos incorrectos da esquerda que ainda hoje persistem são mesmo capazes de pensar que haveria mais razão objectiva para fazer sair para a rua, hoje -  revolucionário ou simplesmente revoltoso - um 25 de Abril, do que razão haveria para tal em 1974. Estou a pôr-me na pele dos espíritos incorrectos politicamente, anh?
A partir de uma imprecisa data do pós-25 de Abril, a esquerda passou a ser uma incorrecção política como tantas outras. Passou a ser de mau tom – salvo aquela esquerda cheirosa, da moda, dos bares da noite do Bairro Alto.
Os comentadores de esquerda nas televisões rareiam, é certo. E os que não rareiam já pouco se emocionam com uma cultura de esquerda.


Será porque os comentadores de esquerda já nada terão para dizer da realidade? Têm. Quilómetros de discurso. Mas o problema é já toda a gente saber o que eles pensam, toda a gente saber que o que eles podem dizer, que é precisamente o mesmo que pensariam e diriam há quarenta anos, se fossem vivos nesse tempo. E como tal são indesejáveis em termos de comunicação social. Porque não mudam. Porque pela conversa deles dír-se-ia que a realidade é a mesma e que ainda seria preciso lutar contra o fascismo, contra os monopólios, contra a guerra colonial, contra a carestia da  vida, contra a miséria, contra as prisões políticas, contra a censura, contra a injustiça social, contra a exploração capitalista, contra os Mellos, contra os Espírito Santo, contra os Champalimauds – só faltam nesta luta de hoje as prisões políticas e a guerra colonial. Será inútil ouvi-los, então, a esses sim, aos comentadores alimentados pela cultura de esquerda que havia em 74, e que é capaz de não ser a mesma que há hoje, mesmo que o seja – “o governo faz da vida dos reformados uma roleta russa”…

                     

Porque sim, deve ser – é com certeza – preferível ouvir sempre a mesma dezena de economistas dizer as mesmas tenebrosas trivialidades, porque ao menos esses não falam dos amanhãs que talvez cantem, e porque para eles não existem amanhãs, só existem os temíveis momentos do hoje.


Esses falam das brutas realidades do hoje, falam de dinheiro, porque o amanhã não interessa a ninguém – ainda que cada vez interesse mais a alguns, ou a muitos, a mais que muitos até – e porque amanhã estaremos todos mortos e não precisaremos de dinheiro, e quem cá estiver e precisar que se amanhe.


Porque o Homem nunca há-se ser novo.
Porque pode não ser incorrecto, hoje, na furiosa sociedade de mercado, da competição, da globalização, ser de esquerda. Pode simplesmente ser inútil.
Ser de esquerda, sim, pode ser inútil, porque a esquerda já não existe muito. Já ninguém dá crédito ao indivíduo que deixe sair de si algum sinal de uma cultura antiga de esquerda – um radical insuportável, esse.

                                                                                                

A esquerda não serviu para nada de prático. E a esquerda que acreditava no materialismo histórico e dialéctico e no social e na probabilidade de transformação do Homem do egoísmo para a solidariedade e para o colectivo, passou a ser considerada uma utopia, quase uma patetice radical. Não há paciência para ela.


Noutro tempo seriam facadas para para um comunista o dizer-lhe que ele estaria pronto a dar a vida por uma utopia irrealizável. Mas hoje, depois da queda dos ídolos, ouvindo o hoje cantochão dissonante do que foram os amanhãs, o comunista de ontem terá de engolir essa. Ou então pensar e convencer-se de que o ser comunista era capaz de não significar ser de esquerda.


Continuando o Homem a ser quem sempre foi, ganancioso, oportunista, egoísta, cruel, preguiçoso e individualista, a esquerda, que dava forma e discurso ao contrário de tudo isso, é uma inutilidade, um bric-à-brac, uma ociosidade, uma peça poeirenta da arqueologia da História. Ou terá sempre sido isso e éramos nós, os da cultura de esquerda, que andávamos miseravelmente enganados.


A esquerda, a palavra, e mais toda a soma de factores mitológicos e de valores que aderiram à palavra, foi para mim, a certa altura da vida, como que a figuração de um jardim do Eden, teoricamente perfeito, lógico, equilibrado. Irrefutável. E em vários capítulos: em incorrupção de princípios, por exemplo – aliás, antes de mais, em princípios – em rigor de aplicação desses princípios, em coerência, em exercício lúcido de cidadania e de crítica social. No limite, um instrumento de aferição da vida nos mais diversos cambiantes, a vida mesma, a vida toda. E ainda mais no limite, uma bússola, um governo, uma orientação, um sentido para essa vida.
Era de mais, não?


Ah, mas ninguém nesses tempos a que me reporto sabia o que sabe hoje. E só por isso não era - como ainda hoje não é, note-se - disparate nenhum, insanidade nenhuma a vivência de uma cultura de esquerda. Ou, ainda mais do que uma cultura, uma moral. Uma moral de esquerda. Aí é que bate o ponto. Uma moral que se foi desmoralizando com o andar da vida e com a fragilidade – ou com a realidade? - dos homens.
Os bons tempos de uma cultura de esquerda viveram-se melhor, estou em crer, no quadro de um regime de extrema direita.


A cultura de esquerda bateu com os costados no vazio quando percebeu que o sonho era impossível. E a cultura (se se lhe pode chamar assim) de direita esfregou as mãos de contente quando percebeu que afinal a realidade era possível, que a realidade lhe pertencia.


Possível e impossível o quê, exactamente? Possível e impossível cada uma configurar o mundo ao seu jeito. Impossível realizar o que afinal de contas era uma utopia patética. Possível continuar a viver e a ganhar dinheiro sem remorsos  num  mundo finalmente desatravancado de utopias e de chatos, invejosos do dinheiro dos outros, desmancha-prazeres que ao destino pediam a lua.


Bom, bom mesmo para a cultura de esquerda, era desacatar os bufos da PIDE, era ter medo deles, e ameaçar que quando as coisas virassem lhes daríamos na cabeça, os enforcaríamos no Rossio, ou, no mínimo, os deixaríamos em cuecas em pleno Chiado – o que aconteceu de facto, as cuecas, só.


Bom, bom, na minha cultura de esquerda, era todos os anos estar no Rossio por volta das sete da tarde de cada dia 1º de Maio, à espera do aparecimento da polícia de choque. E era ver. Ver os carros da água disparar azul sobre o populacho que saía dos empregos e provavelmente nada tinha que ver nem com esquerdas, nem com direitas, nem com culturas. Mas o homem da cultura de esquerda lá estava, a andar de um lado para o outro, jornal debaixo do braço, e quando a polícia aparecia fugia a sete pés, acoitava-se num portal. Assistia. Odiava. Ficava de consciência cívica aliviada. Tinha o seu dia feito. 


Bom mesmo era ler livros proibidos, filosofias, Marx, Althuser, Hegel, Engels, Mao, Aristóteles. E Sartre. E Gramsci. E Che Guevara. E Lenine. Livros que eram pouco menos do que impossíveis de compreender na parte em que as circunstâncias nacionais da nossa cultura de esquerda nos proibiam de compreender algumas das realidades que esses livros zurziam, como, por exemplo, o que vinha a ser isso de democracia representativa, de economia aberta, de sociedade de mercado, de liberalismo. Um tipo simplório como eu, de cultura e conhecimentos erráticos, e que toda a vida vivera em salazarismo, como podia acolher seriamente argumentos lançados contra tudo o que eu não fazia a mais pequena ideia do que fosse, a economia de mercado, a democracia parlamentar?

                                                                                                

Foi isso, essa dificuldade de compreender o que era mesmo a direita, que nos inutilizou a cultura de esquerda e nos fez aplaudir uma sociedade que nos parecia talhada à medida da nossa – ou pelo menos da minha - mal assimilada cultura de esquerda.
Mas bom mesmo era pensar em Cuba – talvez até mais do que nos gelados episódios da revolução de Outubro.


Em Cuba, as revoluções faziam-se entre mulheres giras, em fato de banho, à porta de luxuosos hoteis, em praias com palmeiras, a beber cocktails de rum e a fumar os belos charutos da casa. E os revolucionários eram, como se dizia, românticos – tão românticos como a cultura de esquerda -, giraços, barbudos, viris, cabeludos, hollywoodescos ou cristológicos, conforme o gosto.
Bom, mas mesmo bom, era dar uma saltada a todas as proibidas manifestações contra qualquer coisa, o colonialismo, a prisão e tortura em Caxias do sindicalista fulano de tal... 


Estava a milhas de pensar que os militantes profissionais de esquerda, uma vez encarcerados, denunciavam outros, quer dizer, os das outras esquerdas. Se o tivesse sabido teria continuado a ser de esquerda? Não sei. Mas teria de certeza continuado a minha preparação cultural de esquerda. E porque, no paradoxo da impossibilidade e do proibitivo dela, não havia outra tão acessível.


Não se pode dizer que houvesse uma cultura de direita. Nem mesmo se poderia dizer – estavamos nos anos 60 – que houvesse uma cultura de regime que passasse para lá das vozes magnificas, das bonitas melodias de amor e dos versos medíocres e evasivos do que mais tarde se chamou de nacional-cançonetismo.
Quem eram os vultos culturais eminentes declaradamente do regime? Quem eram os grandes escritores da ditadura? Não me lembro.
As montagens que iam no Teatro Nacional eram de direita fascista? Quem levava Pirandello, Bernardo Santareno, Shakespeare, Moliére, Ionesco ou Lorca fazia-o como propaganda do Estado Novo? Olhem que não…


Mas, por exclusão de partes, ou omissão explícita de uma mensagem claramente de direita, nada na minha simplicidade me coibia de pensar que toda a cultura, a grande, a alta cultura, era de esquerda…


A ópera de S. Carlos, era de direita? Era. Mas essa mesma ópera vista da geral do Coliseu já não era elitismo capitalista, já era cultura, logo, já era de esquerda. Porque a direita ou a esquerda também eram o lugar onde as coisas se passavam.


Bom mesmo, no tempo da cultura de esquerda e da pratica de direita extrema em que se vivia, era pensar nas obras-primas proibidas pela censura que os geniais autores da esquerda nacional haviam encafuado nas gavetas à espera do dia, daquele dia, isso, em que o homem habituado aos cinzentos de uma direita também pouco mobilizadora e já sem força nas canetas, acordaria homem de esquerda a arregaçar as mangas para mudar o mundo e abrir as mentalidades. E esse dia chegou. E passou. E passaram outros mais dias. E passaram muitos e muitos dias, e as obras-primas dos geniais autores de esquerda que deviam estar na gaveta não estavam, nunca apareceram a luz do dia. Era tudo mentira. Era tudo propaganda. E é isso o que uma consciência que foi alimentada por uma cultura de esquerda é tentada a pensar: que boa parte da sua vida interior foi consumida a sonhar com a verdade daquilo que era redonda mentira.
Essa das obras-primas na gaveta a saírem quando caísse o regime foi um dos maus serviços – talvez o pior dos serviços – que os mentores de uma cultura de esquerda prestaram a essa mesma cultura de esquerda. Mentiram. E é como diz o povo: a rico não devas e a pobre não prometas.

                                                                                             

Ser de esquerda era ser inteligente. Digo até: era ser mais inteligente do que os outros, os de direita.
Diria ainda que, noutro tempo, o ser de esquerda era mais do que isso: era o não ser de direita. Parece uma máxima da doutora Lili Caneças, mas, vendo bem…


E ser de direita era só o ser apoiante do Salazar. Quase.
Sim.Tudo muito simples. Que sabia o cidadão banal e mediano que eu era de democracias cristãs, de direitas liberais, de conservadorismo, de parlamentarismo, de social-democracia?

                                                                                         

Não era concebível para a cultura de esquerda feita mais ou menos ao acaso das leituras e das camaradagens de café a existência de uma direita democrática – ou só era concebível em teoria mal assimilada, lida no autocarro, de caminho. Direita era ditadura pela certa. Direita era ausência de liberdade de expressão. Direita eram prisões políticas. Direita era dirigismo económico. Direita era obscurantismo cultural. Direita, pois, era fascismo. Direita era nazismo.
E esquerda o que era? Seria o mais absoluto contrário de tudo isto...


Pergunto eu: quem mandava na consciência política daqueles que não apoiavam o regime salazarista? Quem era?
Evidente! Era o Partido Comunista. Sem qualquer dúvida. Quem mandava na consciência e no ajuizar das coisas políticas do tipo popular e vulgar que eu era, era algo que não se via, que não se ouvia, que praticamente não existia. Ah, mas insisto: lá dizia o velho Shakespeare que nada existe mais do que aquilo que não existe.


Conversas até às tantas com amigalhaços que talvez pertencessem secretamente ao partido – depois do 25 de Abril fiquei a saber de alguns deles que pertenciam mesmo. Livros passados pela surra de mão em mão. O tipo mais velho  acabado de chegar de Paris a saber das últimas verdades da guerra colonial e dos movimentos africanos. Rádios de Moscovo e outras. Decifração de frases de jornal aparentemente inocentes.

                                                                                 

Preferência de certos autores, Jorge Amado, Neruda, Vailland, Sartre, Camus e sei lá quantos mais; e os da casa, os mais ou menos panfletários, Alberto Ferreira, Rogério Fernendes, Manuel da Fonseca, Redol, Sttau Monteiro, Cardoso Pires, Soeiro Pereira Gomes, Armando Castro e esqueço-me de outros tantos, José Gomes Ferreira, muitos, Óscar Lopes, eminências de outrora de quem já ninguém ouve falar.Assistência às sessões da Cooperativa dos Trabalhadores, ali às Escadinhas do Duque, que iam pela madrugada fora...


A cultura de esquerda era ler religiosamente o Diário de Lisboa, a República, o Notícias da Amadora, o Letras e Artes, a Seara Nova.


Eramos os mais lúcidos, os mais informados, os mais objectivos, os mais internacionalistas, os mais analíticos, os mais críticos. Os mais inteligentes, pois então. Éramos de esquerda.

                                                                                                 

Outra coisa: comecei cedo a trabalhar – por péssimo estudante com perigosas tendências para o auto-didactismo – e assim comecei cedo a perceber as teorias do valor e o que os manuais de esquerda me diziam ser a exploração do homem pelo homem, o salariato, o dever, a maximização do lucro.


E comecei a considerar como tipos de direita os que, nalguns casos, eram apenas do Benfica ou do Sporting – e alguns mesmo de esquerda. E isto porque comecei a considerar necessariamente como tipos reaccionários, fascistas e de direita os colegas que engraxavam os chefes. Cá entendi na minha cultura de esquerda que um dos mandamentos da revolução era não ser sabujo, era não ser manteigueiro, era não ser bufo do chefe ou do patrão. Ser de esquerda era, pelo contrário ser crítico desassombrado e lúcido das instituições e das personalidades – desvios anarquizantes, claro.

                                                                                   

Que sabia eu nessa época da liberdade democrática? Após o 25 de Abril passei a ter uma ideia do que seriam as amplas liberdades – será que eram menos democráticas por serem amplas?
Não sabia que a liberdade cívica, e plena, era uma utopia tão grande como a própria esquerda, e pensava que a liberdade era a salvação. E estamos a ver o grau da nossa salvação quando descobrimos que aqueles que nos falavam de liberdade – antes e sobretudo depois do 25 de Abril – não pensavam na mesma liberdade que nós porventura pensavamos. Pensavam na liberdade que teriam de mais e melhor, e mais subtilmente, nos enganarem, nos explorarem, nos fazerem pagar o que fosse preciso aos interesses deles.


Falava-se na cultura de esquerda da exploração do homem pelo homem, e na exploração capitalista que em fascismo  – que era o que se dizia haver em Portugal – tocava o seu ponto mais agudo. Nada nos diziam da liberdade capitalista (muito ampla) de despedir trabalhadores. Nada nos diziam da exploração do homem pelo homem que todos os dias constatamos ser até mais possível – quando não mais desculpável - em democracia do que em fascismo salazarista, hoje, com a vontade inquebrantável do patronato quanto à desregulação do trabalho, com a tendência para a exploração rés-vés à escravatura que dá certos contratos a prazo que por uns 300 € mensais podem obrigar à disponibilidade pouco menos que total para trabalhar, seja em que dia for, a que horas for, para o capital usufruir da liberdade de ganhar mais. Ninguém nos disse isso.    

                                                                                                             

Com essa da liberdade, a cultura de esquerda enfiou-nos muitos e bons barretes.


Oh, a cultura de esquerda! O pensar hoje nela dá-me uma imensa saudade de mim mesmo. Sim, a saudade de ser contra qualquer coisa que não seja o F.C.Porto ou o Benfica ou o Sporting, ou os árbitros, ou o circunstancial  governo que está – ou contra Frau Merkel, ou contra a União Europeia, ou contra os mercados, ou contra o anonimato sem cara dos investidores.
A minha cultura de esquerda – peço desculpa, que é que querem – até quase me dá saudade do salazarismo. Não por ele em si, já se compreende, mas por mim mesmo. Foi pelo salazarismo que a minha cultura de esquerda se formou e me fez viver a entrada da idade adulta com alguma felicidade – inocente e simplória felicidade, bem sei, mas mesmo assim…
Porque outra das estranhas contradições da entidade 25 de Abril era acontecer uma revolução que passou a ser de esquerda, a olhar para o socialismo, ou para o poder popular, ou para as assembleias de freguesia, ou para a democracia directa – e também, vamos lá, para a ditadura do proletariado, ainda que tal fórmula não aparecesse oficialmente explícita - e essa revolução o que acabou por permitir foi a divulgação alargada, exagerada, ou até falsa,do que seria viver em países que se reclamavam de regimes e governos de esquerda.


Se era a URSS, lá vinham os goulags, a Sibéria, três famílias amontoadas num mesmo apartamento, dogmatismo teórico, dirigismo cultural, a invasão da Checoslováquia. Se era Cuba, era a pobreza de vida e as prisões dos intelectuais e dos opositores a Castro. Pelo lado da China, falava-se nas execuções em massa dos camponeses durante a grande marcha de Mao Tse Tung, a revolução cultural e todo pessoal vestido de verde.


Vivia-se em Portugal uma revolução de esquerda e não se encontrava um único país do mundo que se dissesse viver plenamente um regime de esquerda. Faltava o socialismo em liberdade. O que era? Ninguém sabia. Onde havia? Em lado nenhum.E quanto à União Soviética, a Cuba e à China, nunca em ditadura se ouvira dizer tanto mal delas como em plena revolução de esquerda. Então a esquerda, viver à esquerda, seria o quê, ao certo?
A esquerda, e respectivo governo, era o que nunca ninguém experimentara. Se União Soviética, Cuba e China eram regimes de esquerda, então eram regimes com métodos da mais férrea extrema direita, apesar das roupagens teóricas de esquerda. Então onde estava a esquerda nesse mundo de Deus? Onde estava o modelo que orientasse aqueles que, na ditadura, e com desvelos, tinham adquirido uma cultura de esquerda? Estava em nenhures. Não existia. Nunca existira.
Quer-se dizer, a utopia da esquerda ficou ainda mais utopia depois do 25 de Abril de esquerda ao desacreditarem-se os regimes ditos de esquerda.


Se se pensava no contexto de uma cultura pessoal de esquerda e se confrontasse essa cultura com o que se lia e ouvia como sendo a realidade, verificava-se depressa que a utopia da esquerda nem era utopia nenhuma, era uma fraude.
Muita gente da cultura de esquerda abandonou essa cultura de um ideal do desconhecido e passou a ir mais vezes à bola e jogar mais na lotaria; ou bandeou-se para a direita – ou para uma direita que fingia ainda pensar no Homem e nas suas angústias materiais; ou, os mais descarnados realistas, para a direita dos interesses, convencidos finalmente de que mesmo enchendo a boca com os ideais da esquerda, e com os amanhãs cantantes, o que importava antes de mais era ganhar dinheiro, todo o dinheiro possível. Até ao dia em que o crédito bancário escancarasse as portas de acesso e importasse não só ganhar todo o dinheiro possível, como até esse outro dinheiro, o dinheiro impossível.



Até ao dia de hoje, em que já não há esquerda, e em que o país anda às aranhas com o dinheiro impossível que uma cultura de direita o induziu a ganhar.


Vai fazer quarenta anos em que por volta das onze e tal da noite ainda ninguém sabia das voltas que a sua vida ia dar. Ninguém.


Vai fazer quarenta anos que pela hora em que me lerem ainda estavamos todos no remanso da nossa indiferença, ou da nossa utopia, ou da nossa conformação, e acordavamos, e dormiamos, ou preparavamo-nos para dormir na nossa ignorância santíssima do que era a crise financeira, a dívida pública, o poder dos mercados.


Vai fazer quarenta anos em que, por esta hora – e seja ela qual for -,  apesar dos rumores, ainda não acreditavamos que fosse possível acontecer alguma coisa na terra onde nada era costume acontecer.  

      

4 comentários:

  1. Obrigada, mais uma vez, por esta sua reflexão tão acutilante e com a qual (também mais uma vez) me identifico totalmente...

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  2. Obrigado, pela sua honesta (e entendível) catarse. Nem todos têm esta coragem. E este seu desassombro.


    De facto, muito mais do que a Política, é sempre a Moral que faz avançar (ou recuar) a História...

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  3. Adenda:

    Depois de lê-lo, alguém competente deveria começar, de imediato, a compor um grandioso «Requiem pelo Comunismo» (pelo menos o do Séc. XX). Uma obra coral sinfónica de grande fôlego, dividida em três Andamentos: 1º - Prestissimo Con Fuoco; 2º - Adaggio Maestoso; 3º - Morboso con Dolore...


    Se bem que, como todos sabemos, quando um corpo desce à Terra, todo um novo processo de fertilização lentamente recomeça...

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  4. Às vezes, temos a sensação de tudo não passou de uma ficção. De que nada realmente aconteceu neste País surrealista, onde quase todos são desprezados, amesquinhados, espoliados do direito de ter algum vislumbre de futuro, mas onde se continua alegremente a torcer pelo clube de eleição...É um espécime para estudo...Portugal.

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