QUANDO HOJE OS AMANHÃS
CANTAM, OUVE-SE A CANÇÃO DO BANDIDO, OU A MINHA CULTURA DE ESQUERDA
Nessun maggior dolor che
ricordarsi del tempo felice nella miseria
DANTE (Divina Comédia)
Nessun maggior dolor che ricordarsi del tempo felice nella miseria
DANTE (Divina Comédia)
(...) demorou-se alguns dias em Portugal. Fizera a si mesmo mil perguntas sobre o declínio desta nação cujo império se alargava a todo o globo. Conheceu escritores que não escreviam para ninguém homens políticos que governavam para os ingleses; homens de negócios que liquidavam as feitorias do Brasil e viviam de rendas exíguas nas cidades de província, sem qualquer objectivo. Concluiu que a pior das desgraças era nascer português. Em Lisboa, e pela primeira vez na vida, travara encontro com um povo que se tinha desinteressado.
ROGER VAILLAND (A Lei)
- Mas ainda tenho imensas perguntas a fazer: que impressões levas tu de Portugal?
Henry encolheu os ombros:
- É uma nojice.
- Porquê?
- Por tudo.
SIMONE DE BEAUVOIR (Os Mandarins)
Às portas de mais um Abril
que já nem valerá a pena comemorar, talvez só nos reste pensar…
Pois não, não sabíamos, nem
sonhávamos que quando os democráticos amanhãs cantassem para nós cantariam uma
canção do bandido, que é a que estamos neste momento a ouvir…
Mas enfim, adiante.
Aqui há tempos, estava eu,
tertuliano, num belíssimo palacete de Lisboa a palestrar acerca de assunto que,
tanto quanto possível, nada tinha de político, quando, ao cabo de dez minutos
de arenga sobre mecenas, música, músicos e teatros, uma senhora da audiência
cochichou para o cavalheiro do lado, o marido, referindo-se a mim: “este é de
esquerda”.
Eu não ouvi. Alguém que estava perto do casal
é que ouviu e me disse. E eu perguntei-me: como foi possível terem detectado em
mim e nas minhas palavras banais sobre um tema em que não há esquerdas nem
direitas (ou há?) uma especificidade ideológica de esquerda? Ou será que mesmo inócuo
qualquer assunto pode trair ideologicamente quem o desenvolve? Se calhar é
isso. Mas ainda hoje não estou certo da resposta à minha própria pergunta.
Ou
será que a qualidade e a moral de ser de esquerda acaba por se agarrar às mãos,
à cara, à voz e às roupas daquele que
não é de direita?
O
facto de se ter sido de esquerda em anos de juventude – e juventude já bem
avançada, de resto – mesmo não militante, nada de sprays, nada de
cartazes, nada de sermões encomendados, nada de porrada nas ruas -, será sempre
uma marca inapagável no corpo de um indivíduo – provavelmente como acontece com
o indivíduo de direita. Uma maneira de ler. Uma maneira de olhar. Uma maneira
de mover a cabeça, Uma maneira, em suma, de ser. Mesmo quando já não se é.
É a vida. A vida é que é. A
vida é o que é.
Senti então, ao contarem-me o
caso, ter chegado a um ponto da História da minha vida mesma em que, muito
tristemente, me convenço de que pouco ou nada se cumpriu das convicções de
esquerda da minha juventude. Quero eu dizer que pouco ou nada mudou nos
sistemas que vigoravam quanto à circulação do capital, nas mecânicas que
regulavam o mundo e a vida, sistemas e mecânicas que, ingenuamente,
amadoristicamente, eu pensava transitórios, e tão passageiros quanto o regime
que vigorava nessa minha juventude, nos meus 18, 19, 20 anos. Até aos 30. Pois
foi. E foi porque fiz 30 anos dois meses antes do que foi chamado de revolução,
a 25 de Abril de 1974.
O
25 de Abril, não o sendo na altura, acabou por ser mais um decepcionante
impasse na minha consciência política. Ou, por outras palavras, na minha
cultura de esquerda. Porque me roubou o sossego das convicções. O mundo como o
quisemos entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975 era impossível,
irrealizável – inverosímil!
Não
o sabíamos bem, então. Sabemo-lo agora. O mundo e a vida que se instalaram na
minha cultura de esquerda a seguir a 25 de Novembro, e até hoje, não é o que a
minha cultura de esquerda desejaria, ou sonharia, vá lá…
Para
mim, cidadão mais que comum – e julgo que para muitos -, o 25 de Abril foi
primeiro que tudo uma emoção. Não sei se tem cabimento chamar a uma emoção de
social, emoção social, emoção politica, emoção colectiva, emoção solidária.
Isso mesmo. Não sei até que ponto a emoção entra na acção e na técnica
políticas, ou até na História. Mas foi.
Não
era muito conhecida a ocorrência de uma revolução feita por militares que não
fosse um golpe de Estado de extrema direita nalgum país da América Latina. E o
chato é que o que se estava a passar na madrugada de 24 para 25 de Abril de 74 era
para ser. Um golpe militar. Só.
Ah,
mas mas o pagode veio para a rua. O pagode que era de esquerda como todos os
pagodes. O pagode de esquerda veio para a rua acometido por uma emoção
politica. Diria até que acometido por uma emoção de esquerda, mais ou menos
sistematizada ou consciente, mas uma emoção de reviralho, de esquerda, e fruto
da tal cultura de esquerda que também era a minha. Porque, pensava eu, uma
cultura de esquerda não era adquirida nas suas coordenadas íntimas em razão de
uma conveniência puramente pessoal. A cultura de esquerda não era uma cultura
de interesses – julgava eu que não era. É – era, pelo menos – a direita, ou
alguma direita, que era chamada a direita dos interesses. A esquerda era a esquerda
do mais nobre ideal.
A
cultura de esquerda, oh, tanto a dizer!
Uma
cultura da emoção, também. Ou seria um aprimoramento de alma sob melodias de
solidariedade universal. E apontava para a direita como sendo, essa sim, uma
cultura de mesquinhos interesses materiais classistas e egoístas que nunca
sonhara com nenhum Homem novo, com nenhum mundo novo, porque o mundo mesmo bom
era o que estava, o velho, selvático na multiplicidade dos interesses em jogo.
E
todavia, em 1974, o mundo era velho e selvático, mas mesmo assim talvez não tão
arcaico na sua selvejaria como o mundo que estamos a viver hoje, agora.
Cultura
de esquerda. A esperança, primeiro. Tal como a doutrina neo-realista a mandar
que por mais desgraçado e desesperante que fosse o entrecho do romance, ou do
poema, ou da peça, ou do filme, as últimas sequências tinham que deixar no
leitor ou no espectador um rasto esperançoso. Esperançoso de que as injustiças
e desigualdades teriam um dia que acabar, que a miséria, a fome, a guerra, oh,
teriam um dia que acabar, e que para que esse dia chegasse era absolutamente
precisa uma militância de esquerda, e que nessa militância o Homem soubesse
reciclar o natural instinto individualista e materialista e irmanar-se, e
construir uma sociedade nova, uma nova ordem, um novo mundo, uma nova justiça. Construir-se
a si mesmo como um novo Homem. Muitos acreditámos que isso seria possível. Eu
fui um deles. E quando rebentou o 25 de Abril sou capaz de ter pensado “cá está
o tal dia que haveria de chegar e finalmente a redenção do Homem português vai
começar”.
Muitos
acreditámos na redenção do Homem como possível. Mas, como diz o outro, não há
nada como realmente.
Muitos
acreditámos que a reciclagem do Homem começaria por uma revolução. Que diabo, o
mundo já tinha mudado radicalmente depois de uma revolução, a de 1789, a
francesa.
Será que o mundo e o Homem mudaram depois da
de 1917, a russa? Ou mudado assim tanto?
Fizeram-nos
crer que sim senhor. E muitos de nós, os emocionais de esquerda, acreditámos
que sim até ao fim da década de 80. Na década de 90 já sabíamos que isso não
seria inteiramente verdade. Que a História não se enganara, não senhora, o que
nos tinha era contado uma mentira. A História também mente, oh, se mente!
E
os que acreditámos na possibilidade de redenção do Homem e na reeducação da sua
natureza profunda a começar por uma revolução, vimos chegada a oportunidade
portuguesa, não na madrugada de 24 para 25 de Abril, porque estavamos a dormir
na nossa santa e velha tranquilidade de direita, mas sim lá mais para o fim do
dia 25 de Abril - segundo outros, lá para o fim do dia 11 de Março do ano
seguinte.
Pois
bem, mas a reeducação do Homem português, sabemo-lo hoje, se por acaso começou
com a revolução do 25 de Abril, acabou no ano seguinte. E não foi preciso
voltar ao fascismo. O Homem português que no escaldante verão de 75 era emotivo,
solidário, consciente, coerente, justo… no outono desse mesmo ano estava livre
de regressar aos seus sossêgos de direita capitalista. Os seus redentores e reeducadores
tinham desistido. Ou não eram capazes. Ou nunca tinham pretendido redimir nem
educar ninguém. Ou então tinham cinicamente enganado esse Homem emotivo,
mostrando-lhe apenas o que havia a mudar para que tudo ficasse na mesma, como
dizia o outro – na mesma ou mais ou menos na mesma.
Os
que acreditaram nos tão engraçados amanhãs que cantavam, pelo tempo fora,
convenceram-se de que os amanhãs não cantavam, nunca tinham cantado, e que só
os hojes cantavam, e cantavam canções de bandido, e que os amanhãs eram metas
tão distantes que nesses amanhã estaríamos todos mortos e já cá estariam
outros, porventura também a pensar que os amanhãs existiam, e que até podiam
cantar, para estarem também eles mortos antes que chegassem esses amanhãs em
que já cá estariam outros, esses cada vez menos convictos de que poderiam
chegar a um amanhã e muito menos de que esse amanhã lhes cantasse uma simples
canção.
Não.
Os amanhãs, se cantassem, seria uma canção do bandido. E quando os amanhãs
chegaram e começaram a cantar foi isso, uma canção do bandido, longa, longa,
cheia de estrofes e de infinitas modulações, maior, menor, sustenido, bemol, a
quarta aumentada… o diabolus in musica,
claro… até hoje, ou até ao amanhã do próprio e desesperançado amanhã…
O
25 de Abril trouxe-nos de par a esperança e a descrença; a vitória de que nos
ufanávamos nas ruas, à tarde, e o silêncio desconfiado que se refugiava nas
casas, à noite.
E
todavia era necessário esse dia 25 de Abril. Não se podia continuar a viver
assim, na cultura da esquerda sobre a prática da ditadura de direita.
E
todavia, por um simples relance diário a qualquer telejornal, os espíritos
incorrectos da esquerda que ainda hoje persistem são mesmo capazes de pensar
que haveria mais razão objectiva para fazer sair para a rua, hoje - revolucionário ou simplesmente revoltoso - um
25 de Abril, do que razão haveria para tal em 1974. Estou a pôr-me na pele dos
espíritos incorrectos politicamente, anh?
A
partir de uma imprecisa data do pós-25 de Abril, a esquerda passou a ser uma
incorrecção política como tantas outras. Passou a ser de mau tom – salvo aquela
esquerda cheirosa, da moda, dos bares da noite do Bairro Alto.
Os
comentadores de esquerda nas televisões rareiam, é certo. E os que não rareiam
já pouco se emocionam com uma cultura de esquerda.
Será
porque os comentadores de esquerda já nada terão para dizer da realidade? Têm.
Quilómetros de discurso. Mas o problema é já toda a gente saber o que eles pensam,
toda a gente saber que o que eles podem dizer, que é precisamente o mesmo que
pensariam e diriam há quarenta anos, se fossem vivos nesse tempo. E como tal
são indesejáveis em termos de comunicação social. Porque não mudam. Porque pela
conversa deles dír-se-ia que a realidade é a mesma e que ainda seria preciso
lutar contra o fascismo, contra os monopólios, contra a guerra colonial, contra
a carestia da vida, contra a miséria, contra
as prisões políticas, contra a censura, contra a injustiça social, contra a
exploração capitalista, contra os Mellos, contra os Espírito Santo, contra os
Champalimauds – só faltam nesta luta de hoje as prisões políticas e a guerra
colonial. Será inútil ouvi-los, então, a esses sim, aos comentadores
alimentados pela cultura de esquerda que havia em 74, e que é capaz de não ser
a mesma que há hoje, mesmo que o seja – “o governo faz da vida dos reformados
uma roleta russa”…
Porque sim, deve ser – é com
certeza – preferível ouvir sempre a mesma dezena de economistas dizer as mesmas
tenebrosas trivialidades, porque ao menos esses não falam dos amanhãs que
talvez cantem, e porque para eles não existem amanhãs, só existem os temíveis momentos
do hoje.
Esses falam das brutas
realidades do hoje, falam de dinheiro, porque o amanhã não interessa a ninguém
– ainda que cada vez interesse mais a alguns, ou a muitos, a mais que muitos
até – e porque amanhã estaremos todos mortos e não precisaremos de dinheiro, e
quem cá estiver e precisar que se amanhe.
Porque o Homem nunca há-se ser novo.
Porque
pode não ser incorrecto, hoje, na furiosa sociedade de mercado, da competição,
da globalização, ser de esquerda. Pode simplesmente ser inútil.
Ser
de esquerda, sim, pode ser inútil, porque a esquerda já não existe muito. Já
ninguém dá crédito ao indivíduo que deixe sair de si algum sinal de uma cultura
antiga de esquerda – um radical insuportável, esse.
A
esquerda não serviu para nada de prático. E a esquerda que acreditava no
materialismo histórico e dialéctico e no social e na probabilidade de
transformação do Homem do egoísmo para a solidariedade e para o colectivo,
passou a ser considerada uma utopia, quase uma patetice radical. Não há
paciência para ela.
Noutro
tempo seriam facadas para para um comunista o dizer-lhe que ele estaria pronto
a dar a vida por uma utopia irrealizável. Mas hoje, depois da queda dos ídolos,
ouvindo o hoje cantochão dissonante do que foram os amanhãs, o comunista de
ontem terá de engolir essa. Ou então pensar e convencer-se de que o ser
comunista era capaz de não significar ser de esquerda.
Continuando
o Homem a ser quem sempre foi, ganancioso, oportunista, egoísta, cruel, preguiçoso
e individualista, a esquerda, que dava forma e discurso ao contrário de tudo
isso, é uma inutilidade, um bric-à-brac, uma ociosidade, uma peça poeirenta da
arqueologia da História. Ou terá sempre sido isso e éramos nós, os da cultura de
esquerda, que andávamos miseravelmente enganados.
A
esquerda, a palavra, e mais toda a soma de factores mitológicos e de valores
que aderiram à palavra, foi para mim, a certa altura da vida, como que a
figuração de um jardim do Eden, teoricamente perfeito, lógico, equilibrado.
Irrefutável. E em vários capítulos: em incorrupção de princípios, por exemplo –
aliás, antes de mais, em princípios – em rigor de aplicação desses princípios,
em coerência, em exercício lúcido de cidadania e de crítica social. No limite,
um instrumento de aferição da vida nos mais diversos cambiantes, a vida mesma,
a vida toda. E ainda mais no limite, uma bússola, um governo, uma orientação,
um sentido para essa vida.
Era
de mais, não?
Ah,
mas ninguém nesses tempos a que me reporto sabia o que sabe hoje. E só por isso
não era - como ainda hoje não é, note-se - disparate nenhum, insanidade nenhuma
a vivência de uma cultura de esquerda. Ou, ainda mais do que uma cultura, uma
moral. Uma moral de esquerda. Aí é que bate o ponto. Uma moral que se foi
desmoralizando com o andar da vida e com a fragilidade – ou com a realidade? - dos
homens.
Os
bons tempos de uma cultura de esquerda viveram-se melhor, estou em crer, no
quadro de um regime de extrema direita.
A
cultura de esquerda bateu com os costados no vazio quando percebeu que o sonho
era impossível. E a cultura (se se lhe pode chamar assim) de direita esfregou
as mãos de contente quando percebeu que afinal a realidade era possível, que a
realidade lhe pertencia.
Possível
e impossível o quê, exactamente? Possível e impossível cada uma configurar o
mundo ao seu jeito. Impossível realizar o que afinal de contas era uma utopia
patética. Possível continuar a viver e a ganhar dinheiro sem remorsos num
mundo finalmente desatravancado de utopias e de chatos, invejosos do
dinheiro dos outros, desmancha-prazeres que ao destino pediam a lua.
Bom,
bom mesmo para a cultura de esquerda, era desacatar os bufos da PIDE, era ter
medo deles, e ameaçar que quando as coisas virassem lhes daríamos na cabeça, os
enforcaríamos no Rossio, ou, no mínimo, os deixaríamos em cuecas em pleno
Chiado – o que aconteceu de facto, as cuecas, só.
Bom,
bom, na minha cultura de esquerda, era todos os anos estar no Rossio por volta
das sete da tarde de cada dia 1º de Maio, à espera do aparecimento da polícia
de choque. E era ver. Ver os carros da água disparar azul sobre o populacho que
saía dos empregos e provavelmente nada tinha que ver nem com esquerdas, nem com
direitas, nem com culturas. Mas o homem da cultura de esquerda lá estava, a
andar de um lado para o outro, jornal debaixo do braço, e quando a polícia
aparecia fugia a sete pés, acoitava-se num portal. Assistia. Odiava. Ficava de
consciência cívica aliviada. Tinha o seu dia feito.
Bom
mesmo era ler livros proibidos, filosofias, Marx, Althuser, Hegel, Engels, Mao,
Aristóteles. E Sartre. E Gramsci. E Che Guevara. E Lenine. Livros que eram
pouco menos do que impossíveis de compreender na parte em que as circunstâncias
nacionais da nossa cultura de esquerda nos proibiam de compreender algumas das
realidades que esses livros zurziam, como, por exemplo, o que vinha a ser isso
de democracia representativa, de economia aberta, de sociedade de mercado, de
liberalismo. Um tipo simplório como eu, de cultura e conhecimentos erráticos, e
que toda a vida vivera em salazarismo, como podia acolher seriamente argumentos
lançados contra tudo o que eu não fazia a mais pequena ideia do que fosse, a economia de mercado, a democracia parlamentar?
Foi
isso, essa dificuldade de compreender o que era mesmo a direita, que nos
inutilizou a cultura de esquerda e nos fez aplaudir uma sociedade que nos
parecia talhada à medida da nossa – ou pelo menos da minha - mal assimilada
cultura de esquerda.
Mas
bom mesmo era pensar em Cuba – talvez até mais do que nos gelados episódios da
revolução de Outubro.
Em
Cuba, as revoluções faziam-se entre mulheres giras, em fato de banho, à porta
de luxuosos hoteis, em praias com palmeiras, a beber cocktails de rum e
a fumar os belos charutos da casa. E os revolucionários eram, como se dizia,
românticos – tão românticos como a cultura de esquerda -, giraços, barbudos,
viris, cabeludos, hollywoodescos ou cristológicos, conforme o gosto.
Bom,
mas mesmo bom, era dar uma saltada a todas as proibidas manifestações contra
qualquer coisa, o colonialismo, a prisão e tortura em Caxias do sindicalista
fulano de tal...
Estava a milhas de pensar que os militantes profissionais de
esquerda, uma vez encarcerados, denunciavam outros, quer dizer, os das outras
esquerdas. Se o tivesse sabido teria continuado a ser de esquerda? Não sei. Mas
teria de certeza continuado a minha preparação cultural de esquerda. E porque,
no paradoxo da impossibilidade e do proibitivo dela, não havia outra tão acessível.
Não
se pode dizer que houvesse uma cultura de direita. Nem mesmo se poderia dizer –
estavamos nos anos 60 – que houvesse uma cultura de regime que passasse para lá
das vozes magnificas, das bonitas melodias de amor e dos versos medíocres e
evasivos do que mais tarde se chamou de nacional-cançonetismo.
Quem
eram os vultos culturais eminentes declaradamente do regime? Quem eram os grandes
escritores da ditadura? Não me lembro.
As
montagens que iam no Teatro Nacional eram de direita fascista? Quem levava
Pirandello, Bernardo Santareno, Shakespeare, Moliére, Ionesco ou Lorca fazia-o
como propaganda do Estado Novo? Olhem que não…
Mas, por exclusão de partes,
ou omissão explícita de uma mensagem claramente de direita, nada na minha
simplicidade me coibia de pensar que toda a cultura, a grande, a alta cultura,
era de esquerda…
A
ópera de S. Carlos, era de direita? Era. Mas essa mesma ópera vista da geral do
Coliseu já não era elitismo capitalista, já era cultura, logo, já era de
esquerda. Porque a direita ou a esquerda também eram o lugar onde as coisas se passavam.
Bom
mesmo, no tempo da cultura de esquerda e da pratica de direita extrema em que
se vivia, era pensar nas obras-primas proibidas pela censura que os geniais
autores da esquerda nacional haviam encafuado nas gavetas à espera do dia,
daquele dia, isso, em que o homem habituado aos cinzentos de uma direita também
pouco mobilizadora e já sem força nas canetas, acordaria homem de esquerda a
arregaçar as mangas para mudar o mundo e abrir as mentalidades. E esse dia
chegou. E passou. E passaram outros mais dias. E passaram muitos e muitos dias,
e as obras-primas dos geniais autores de esquerda que deviam estar na gaveta
não estavam, nunca apareceram a luz do dia. Era tudo mentira. Era tudo
propaganda. E é isso o que uma consciência que foi alimentada por uma cultura
de esquerda é tentada a pensar: que boa parte da sua vida interior foi consumida
a sonhar com a verdade daquilo que era redonda mentira.
Essa
das obras-primas na gaveta a saírem quando caísse o regime foi um dos maus
serviços – talvez o pior dos serviços – que os mentores de uma cultura de
esquerda prestaram a essa mesma cultura de esquerda. Mentiram. E é como diz o
povo: a rico não devas e a pobre não prometas.
Ser
de esquerda era ser inteligente. Digo até: era ser mais inteligente do que os
outros, os de direita.
Diria
ainda que, noutro tempo, o ser de esquerda era mais do que isso: era o não ser
de direita. Parece uma máxima da doutora Lili Caneças, mas, vendo bem…
E
ser de direita era só o ser apoiante do Salazar. Quase.
Sim.Tudo
muito simples. Que sabia o cidadão banal e mediano que eu era de democracias cristãs,
de direitas liberais, de conservadorismo, de parlamentarismo, de
social-democracia?
Não
era concebível para a cultura de esquerda feita mais ou menos ao acaso das
leituras e das camaradagens de café a existência de uma direita democrática –
ou só era concebível em teoria mal assimilada, lida no autocarro, de caminho.
Direita era ditadura pela certa. Direita era ausência de liberdade de
expressão. Direita eram prisões políticas. Direita era dirigismo económico.
Direita era obscurantismo cultural. Direita, pois, era fascismo. Direita era
nazismo.
E
esquerda o que era? Seria o mais absoluto contrário de tudo isto...
Pergunto
eu: quem mandava na consciência política daqueles que não apoiavam o regime
salazarista? Quem era?
Evidente!
Era o Partido Comunista. Sem qualquer dúvida. Quem mandava na consciência e no
ajuizar das coisas políticas do tipo popular e vulgar que eu era, era algo que
não se via, que não se ouvia, que praticamente não existia. Ah, mas insisto: lá
dizia o velho Shakespeare que nada existe mais do que aquilo que não existe.
Conversas
até às tantas com amigalhaços que talvez pertencessem secretamente ao partido –
depois do 25 de Abril fiquei a saber de alguns deles que pertenciam mesmo.
Livros passados pela surra de mão em mão. O tipo mais velho acabado de chegar de Paris a saber das
últimas verdades da guerra colonial e dos movimentos africanos. Rádios de
Moscovo e outras. Decifração de frases de jornal aparentemente inocentes.
Preferência
de certos autores, Jorge Amado, Neruda, Vailland, Sartre, Camus e sei lá
quantos mais; e os da casa, os mais ou menos panfletários, Alberto Ferreira,
Rogério Fernendes, Manuel da Fonseca, Redol, Sttau Monteiro, Cardoso Pires,
Soeiro Pereira Gomes, Armando Castro e esqueço-me de outros tantos, José Gomes
Ferreira, muitos, Óscar Lopes, eminências de outrora de quem já ninguém ouve
falar.Assistência às sessões da Cooperativa dos Trabalhadores, ali às
Escadinhas do Duque, que iam pela madrugada fora...
A
cultura de esquerda era ler religiosamente o Diário de Lisboa, a República,
o Notícias da Amadora, o Letras e Artes, a Seara Nova.
Eramos
os mais lúcidos, os mais informados, os mais objectivos, os mais
internacionalistas, os mais analíticos, os mais críticos. Os mais inteligentes,
pois então. Éramos de esquerda.
Outra
coisa: comecei cedo a trabalhar – por péssimo estudante com perigosas
tendências para o auto-didactismo – e assim comecei cedo a perceber as teorias
do valor e o que os manuais de esquerda me diziam ser a exploração do homem
pelo homem, o salariato, o dever, a maximização do lucro.
E comecei a considerar como
tipos de direita os que, nalguns casos, eram apenas do Benfica ou do Sporting –
e alguns mesmo de esquerda. E isto porque comecei a considerar necessariamente
como tipos reaccionários, fascistas e de direita os colegas que engraxavam os
chefes. Cá entendi na minha cultura de esquerda que um dos mandamentos da
revolução era não ser sabujo, era não ser manteigueiro, era não ser bufo do
chefe ou do patrão. Ser de esquerda era, pelo contrário ser crítico
desassombrado e lúcido das instituições e das personalidades – desvios
anarquizantes, claro.
Que
sabia eu nessa época da liberdade democrática? Após o 25 de Abril passei a ter
uma ideia do que seriam as amplas liberdades – será que eram menos democráticas
por serem amplas?
Não
sabia que a liberdade cívica, e plena, era uma utopia tão grande como a própria
esquerda, e pensava que a liberdade era a salvação. E estamos a ver o grau da
nossa salvação quando descobrimos que aqueles que nos falavam de liberdade –
antes e sobretudo depois do 25 de Abril – não pensavam na mesma liberdade que
nós porventura pensavamos. Pensavam na liberdade que teriam de mais e melhor, e
mais subtilmente, nos enganarem, nos explorarem, nos fazerem pagar o que fosse
preciso aos interesses deles.
Falava-se
na cultura de esquerda da exploração do homem pelo homem, e na exploração
capitalista que em fascismo – que era o
que se dizia haver em Portugal – tocava o seu ponto mais agudo. Nada nos diziam
da liberdade capitalista (muito ampla) de despedir trabalhadores. Nada nos
diziam da exploração do homem pelo homem que todos os dias constatamos ser até mais
possível – quando não mais desculpável - em democracia do que em fascismo
salazarista, hoje, com a vontade inquebrantável do patronato quanto à
desregulação do trabalho, com a tendência para a exploração rés-vés à
escravatura que dá certos contratos a prazo que por uns 300 € mensais podem
obrigar à disponibilidade pouco menos que total para trabalhar, seja em que dia
for, a que horas for, para o capital usufruir da liberdade de ganhar mais.
Ninguém nos disse isso.
Com
essa da liberdade, a cultura de esquerda enfiou-nos muitos e bons barretes.
Oh,
a cultura de esquerda! O pensar hoje nela dá-me uma imensa saudade de mim
mesmo. Sim, a saudade de ser contra qualquer coisa que não seja o F.C.Porto ou
o Benfica ou o Sporting, ou os árbitros, ou o circunstancial governo que está – ou contra Frau Merkel, ou
contra a União Europeia, ou contra os mercados, ou contra o anonimato sem cara
dos investidores.
A
minha cultura de esquerda – peço desculpa, que é que querem – até quase me dá
saudade do salazarismo. Não por ele em si, já se compreende, mas por mim mesmo.
Foi pelo salazarismo que a minha cultura de esquerda se formou e me fez viver a
entrada da idade adulta com alguma felicidade – inocente e simplória
felicidade, bem sei, mas mesmo assim…
Porque
outra das estranhas contradições da entidade 25 de Abril era acontecer uma
revolução que passou a ser de esquerda, a olhar para o socialismo, ou para o
poder popular, ou para as assembleias de freguesia, ou para a democracia
directa – e também, vamos lá, para a ditadura do proletariado, ainda que tal
fórmula não aparecesse oficialmente explícita - e essa revolução o que acabou
por permitir foi a divulgação alargada, exagerada, ou até falsa,do que seria
viver em países que se reclamavam de regimes e governos de esquerda.
Se
era a URSS, lá vinham os goulags, a
Sibéria, três famílias amontoadas num mesmo apartamento, dogmatismo teórico,
dirigismo cultural, a invasão da Checoslováquia. Se era Cuba, era a pobreza de vida e as prisões dos
intelectuais e dos opositores a Castro. Pelo lado da China, falava-se nas
execuções em massa dos camponeses durante a grande marcha de Mao Tse Tung, a revolução
cultural e todo pessoal vestido de verde.
Vivia-se
em Portugal uma revolução de esquerda e não se encontrava um único país do
mundo que se dissesse viver plenamente um regime de esquerda. Faltava o
socialismo em liberdade. O que era? Ninguém sabia. Onde havia? Em lado nenhum.E
quanto à União Soviética, a Cuba e à China, nunca em ditadura se ouvira dizer
tanto mal delas como em plena revolução de esquerda. Então a esquerda, viver à
esquerda, seria o quê, ao certo?
A
esquerda, e respectivo governo, era o que nunca ninguém experimentara. Se União
Soviética, Cuba e China eram regimes de esquerda, então eram regimes com
métodos da mais férrea extrema direita, apesar das roupagens teóricas de
esquerda. Então onde estava a esquerda nesse mundo de Deus? Onde estava o
modelo que orientasse aqueles que, na ditadura, e com desvelos, tinham
adquirido uma cultura de esquerda? Estava em nenhures. Não existia. Nunca
existira.
Quer-se
dizer, a utopia da esquerda ficou ainda mais utopia depois do 25 de Abril de
esquerda ao desacreditarem-se os regimes ditos de esquerda.
Se
se pensava no contexto de uma cultura pessoal de esquerda e se confrontasse
essa cultura com o que se lia e ouvia como sendo a realidade, verificava-se
depressa que a utopia da esquerda nem era utopia nenhuma, era uma fraude.
Muita
gente da cultura de esquerda abandonou essa cultura de um ideal do desconhecido
e passou a ir mais vezes à bola e jogar mais na lotaria; ou bandeou-se para a
direita – ou para uma direita que fingia ainda pensar no Homem e nas suas
angústias materiais; ou, os mais descarnados realistas, para a direita dos
interesses, convencidos finalmente de que mesmo enchendo a boca com os ideais
da esquerda, e com os amanhãs cantantes, o que importava antes de mais era
ganhar dinheiro, todo o dinheiro possível. Até ao dia em que o crédito bancário
escancarasse as portas de acesso e importasse não só ganhar todo o dinheiro
possível, como até esse outro dinheiro, o dinheiro impossível.
Até
ao dia de hoje, em que já não há esquerda, e em que o país anda às aranhas com
o dinheiro impossível que uma cultura de direita o induziu a ganhar.
Vai
fazer quarenta anos em que por volta das onze e tal da noite ainda ninguém
sabia das voltas que a sua vida ia dar. Ninguém.
Vai
fazer quarenta anos que pela hora em que me lerem ainda estavamos todos no
remanso da nossa indiferença, ou da nossa utopia, ou da nossa conformação, e acordavamos, e
dormiamos, ou preparavamo-nos para dormir na nossa ignorância santíssima do que
era a crise financeira, a dívida pública, o poder dos mercados.
Vai
fazer quarenta anos em que, por esta hora – e seja ela qual for -, apesar dos rumores, ainda não acreditavamos
que fosse possível acontecer alguma coisa na terra onde nada era costume
acontecer.
Obrigada, mais uma vez, por esta sua reflexão tão acutilante e com a qual (também mais uma vez) me identifico totalmente...
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ResponderEliminarObrigado, pela sua honesta (e entendível) catarse. Nem todos têm esta coragem. E este seu desassombro.
De facto, muito mais do que a Política, é sempre a Moral que faz avançar (ou recuar) a História...
ResponderEliminarAdenda:
Depois de lê-lo, alguém competente deveria começar, de imediato, a compor um grandioso «Requiem pelo Comunismo» (pelo menos o do Séc. XX). Uma obra coral sinfónica de grande fôlego, dividida em três Andamentos: 1º - Prestissimo Con Fuoco; 2º - Adaggio Maestoso; 3º - Morboso con Dolore...
Se bem que, como todos sabemos, quando um corpo desce à Terra, todo um novo processo de fertilização lentamente recomeça...
Às vezes, temos a sensação de tudo não passou de uma ficção. De que nada realmente aconteceu neste País surrealista, onde quase todos são desprezados, amesquinhados, espoliados do direito de ter algum vislumbre de futuro, mas onde se continua alegremente a torcer pelo clube de eleição...É um espécime para estudo...Portugal.
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