domingo, 18 de maio de 2014

                            ESQUIZOFRENIA


Atenuados os efeitos benéficos da retumbante vitória moral do Benfica na Liga Europa, eis que ficamos de novo entregues à vida que somos coagidos a viver sobre a realidade também das derrotas morais num país bipartido, ou tripartido, ou até quadripartido. Sei lá bem. Dois, três ou quatro países distintos vividos num só, num mesmo espaço e num mesmo esforço, em idênticas perspectivas vitais.
Há quem diga que a realidade é una, bem sei, como há quem diga que a realidade é múltipla. Vou na segunda hipótese.


Vamos lá a ver uma coisa. Vivemos num primeiro país que nos é apresentado pelos poderes públicos, pelos senhores ministros, com estoiros de champanhe comemorativos da treta da saída limpinha, limpinha, limpinha, quer-se dizer, da nossa derrota moral e material às mãos da troika, facto que para eles significa uma auspiciosa reinauguração da esperança (tantas vezes inaugurada nos últimos 40 anos), do vá-lá-é-uma-merda-mas-podia-ter-sido-pior, ou do vamos-a-ver-o-que-é-que-isto-dá-e-como-é-que-a-malta-se-safa-desta.



                                                                           

Os nossos poderes constituídos têm em nós um país artilhado para proveitos próprios, e do qual muito se orgulham, e pelo qual festejam símbolos nacionais como o sol, a praia, o bacalhau, as sardinhas, o fado, a selecção, o Benfica, o turismo; e mais os feitos universais das nossas artes, das nossas ciências, e mais a História, os Descobrimentos, o 25 de Abril…
Se lhes falamos das nossas dúvidas (e dívidas), eles riem-se, dizem que o país está finalmente no caminho certo, naquela fase de viragem histórica de tesos para endinheirados, e no primeiro trimestre deste ano, meus queridos, crescemos e aparecemos na ordem dos 1,2% e batemos a média europeia, ahn, seus toleirões, viva o luxo, e mais o PIB, 1,2% no primeiro trimestre, que tal, seus cabrões mal agradecidos?
Ah, mas um momentinho, senhores ministros, esse PIB caiu fragorosamente 0,7% no segundo trimestre. Como diz? Não dizemos nós, diz o INE. Então e as nossas exportações? O que há com as nossas exportações? Só 2% menos do que os senhores ministros gostariam Tomem lá atenção, tudo isso, esses percalços, são devidos aos efeitos meramente pontuais, as paragens para limpezas da GALP, da Auto-Europa, da refinaria de Sines…
A verdade é que o país, numa das suas primeiras realidades, a realidade ministerial, vê a queda do PIB com tranquilidade, sem insónia nem os sobressaltos oníricos dos mais críticos. Essa queda do PIB é para ser levada à conta de factores extraordinários e irrepetíveis. O que importa, senhores duvidosos, é a continuação do nosso crescimento económico e o alinhamento com o previsto no OE para 2014.
E avança em simultâneo o nosso segundo país – a ordem dos factores continua a ser como sempre foi desde a antiga 4ª classe, arbitrária – as fortunas de Amorins, Belmiros e Alexandres, que era, em 2011, 6,47 milhões dele, é hoje de 7,7 milhões dele.

                                                                                     

           


Que tal, senhores duvidosos do bom caminho da nossa economia?


Ai isto não é crescimento económico? Essa é boa. Como? Com os nossos quatro maiores bancos privados a acusarem prejuízos de 192,7 milhões no tão cantado primeiro trimestre? Pois. Aí é que está. Aí é que está o quê, senhores ministros? É assim mesmo. Agravamento de 29,4 milhões se compararmos com o mesmo período do ano passado? É assim mesmo. E não é esse obscuro detalhe que nos vai entravar a formidável caminhada para o sucesso.
Ou para o sucesso ou para o stress colectivo. Questão de ponto de vista.
Três anos de troika, austeridade, desemprego em barda, cortes de salários e de pensões em barda, cortes de subsídios, de abonos de família. Em barda. O nosso terceiro país. O que coabita com os dois primeiros. A vergonha que os estudiosos da sociedade detectaram no espírito do país – qual deles?
Vergonha? Sim, senhores, vergonha e desconfiança. Em quê, de quê, porquê? Por exemplo, do nosso sistema político, da nossa economia. A consciência cada vez mais aguda e mais comprometedora da falta de líderes. Vergonha? Sim, uma sondagem. Ah, pff, sondagens, valem o que valem. Exactamente, valem o que valem, muito. Vergonha e desconfiança que vão grassando, também, ai de nós!, quanto ao próprio sistema democrático, outrora a luz dos nossos olhos.


O país do stress a coexistir com o país dos senhores ministros, dos bancos falidos, e das maravilhosas fortunas dos Belmiros Amorins e Alexandres.
As situações de stress e esgotamento a crescerem mais do que a economia nacional, senhores! É o que diz a Associação Portuguesa de Psicologia Ocupacional. 83% dos inquiridos a dizerem-se esgotados após os regeneradores três anos de troika, austeridade, desemprego, cortes… e 78% pedindo a todos os santinhos a possibilidade de uma mudança de emprego o mais tardar daqui a cinco anos.
E por falar em cinco anos… pois há cinco anos 32% dos funcionários públicos aparentavam sinais de stress evidentes. Pouco, quase nada, comparado com os 59% do ano passado. Um crescimento maior ainda do que o da economia nacional, não? E no sector privado dessa mesma economia, o stress entre o pessoal deu um salto mas um senhor salto, de 24% para 43%. Porquê, senhores? Fadiga. Só. Sim, à mistura com a perda de horizontes profissionais, de rendimentos, de salários, na perspectiva de desemprego que sobre eles paira como núvem maligna, como espada de Damocles…


Três anos de troika e de regeneração pela austeridade, pelo desemprego, pelos cortes de salários e de pensões… e é quando o crédito fica ainda mais mal parado, as poupanças diminuem (pudera!), e para cima de 18.534 famílias que no primeiro trimestre dos auspícios da nossa felicidade económica, das nossas esperanças e das certezas das contas bancárias dos Belmiros, Amorins e Alexandres, deixaram de pagar o que deviam, entraram em incumprimentos. E só falando no primeiro trimestre deste ano, porque ao todo são 133.563 famílias que não podem pagar contas que subam para cima dos 1.000 euros.


No grande país que são três (pelo menos), feliz, rico, progressivo, esperançoso, próspero, desesperado, caloteiro, alegre e deprimido, o mal-estar nas instituições dá como consequência a intenção do pessoal de mudar de emprego quanto antes. E isso quer dizer o quê? Quer dizer que esta má vontade deprimida e stressada vai incidir perversamente na produtividade nacional. Já em 2008 35% dos empregados queria à viva força dizer adeus àquele patrão e procurar outro. Mas hoje já não são 35%, são 78%, e com incidência maior no sector público.
E se se fala em stress, depressão, má vontade e impulsos de fuga para a frente, registe-se que no país da felicidade, do crescimento económico e da melhorada fortuna dos milionários, no ano passado, 75% faltava ao trabalho com uma limpeza que só visto.
Incremento da produtividade, não é?
Está mesmo assim garantida pelos senhores ministros a sustentabilidade dos índices regeneradores acrescentados por três anos de troika, desemprego, austeridade, cortes, e mais umas botas. E o perverso e descrente povo pergunta às paredes da sua rua que sustentabilidade económica pode ser essa quando duas ou três empresas que ficam cinco dias paradas para limpezas chegam por si só para fazer cair o PIB.


Ou como será possível aos senhores ministros equilibrarem-se na corda bamba de uma feliz política orçamental em austeridade, quando empurrados pela ventania de uma política de competitividade e crescimento…



À hora em que escrevo isto (domingo, 18 de Maio, por volta de uma da tarde) ainda não sei se o Benfica sempre ganhará a Taça. Deus queira que sim. Porquê? Ora… por tudo. E mais umas botas. 


2 comentários:

  1. Meu caro Joel Costa.
    Como diria o meu querido Eça... Isto não é um país, é um sítio mal frequentado!
    Bem haja

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  2. No meio realmente de tanta euforia (politica ou futebolística, vem a dar o mesmo...),por um lado, tanto desespero e saturação, por outro, onde há um espacinho para podermos viver...?
    Um abraço e agradeço este desabafo partilhado.

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