A ATENÇÃO
Em ociosos
tempos de férias, nos acasos de praia, tornei a ler um romance que havia
lido pela primeira vez em estranha data para romances: Setembro de 1974.
Chama-se A Atenção, e é de um autor
italiano em tempos famosíssimo e na indiferença cultural de hoje provavelmente
já esquecido. Alberto Moravia.
Talvez
lhe tivesse pegado nestas férias justamente por causa do título, esquisito
título para um romance. Ou talvez por sentir que vivemos um tempo de pouca
atenção, ou mesmo de completa desatenção ao que se passa à nossa volta, aos
outros, e por vezes a nós mesmos.Ou seja talvez
por pensar que muito do fundamento da nossa moral esteja numa maior ou menor
atenção que prestamos às coisas, às pessoas, às instituições.
E
porque também se dá o caso de pensar que a realidade que estamos a viver é mais
mascarada – ou até pura e simplesmente ocultada - do que qualquer outra
realidade vivida em qualquer outro tempo. Não me custaria admitir que no
presente a comunicação de massas, conhecendo um desenvolvimento tecnológico que
nunca nos passou pela cabeça possível, oculta, mascara, embeleza ou enegrece a
realidade com mais sofisticação do que nunca – o caso Espírito Santo? O que
requer da nossa parte mais atenção do que nunca às mensagens que nos chegam ao
conhecimento.
Francesco
Merighi, burguês, filho de burgueses, é jornalista. Casado. Vive com a mulher e
com uma filha que a mulher, antes de o conhecer e em tempos de ocupação, teve
de um soldado alemão.
Francesco
Merighi escrevia num jornal de esquerda. Porque era um homem de esquerda.
Porque pensava o mundo à esquerda, não sendo embora filiado em qualquer
partido. Uma dia, porém, oferece-se-lhe a oportunidade de colaborar num diário
conservador de grande circulação e ele aceita. Continuando embora a ter ideias
de esquerda.
Criticam-no.
Era mais um que crescera e se valorizara à esquerda e se vendia à direita. Mas
não era bem assim. Não lhe interessava o dinheiro e nem sequer mudara de ideias
políticas. Limitara-se, quanto a ideias políticas, a pô-las de lado;
compreendera que elas eram coisa de pouca importância na sua vida. A razão da
mudança de jornal era a sua compulsiva necessidade de viajar, o que não lhe era
fácil fazer num jornal de esquerda de baixo orçamento. Interessava-lhe viajar,
estar longe da sua cidade natal, Roma, o máximo de tempo possível. Viajar era
uma forma de não ser confrontado a cada momento com o seu passado.
E o
problema do passado deste jornalista era a mulher.Passava dois terços ou mais
do ano em reportagem no estrangeiro para estar o menos possível com a mulher.
A
mulher dele era uma mulher do povo, filha de uma lavadeira e de um hortelão.
Ele, burguês filho de burgueses abastados e com ideias de esquerda, achava o
mundo falso e sentia-se de algum modo culpado dessa falsidade. Em 1947,
encarregado de uma reportagem no pobre bairro romano Gordiani, conhecera a
mulher, gostara dela e decidira que era aquela a mulher que procurara por tanto
tempo.E nas condições que adquiriu de estabilidade familiar, começou a escrever
um romance. Mas de repente…
De
repente, Merighi descobriu que deixara de amar a mulher.
O que
outrora vira na mulher, aquelas características de mulher do povo, deixara de
ter valor para ele. E não só deixou de amar a mulher como sentiu nascer nele um
sentimento de repulsa por ela. E recusava qualquer contacto físico. E
afligia-se ao pensar como pudera ter amado aquela mulher, como se vivesse o dia
seguinte a uma noite de bebedeira em que tivesse dito e feito uma quantidade de
disparates.
Não a
amava, ela causava-lhe repulsa. Mas também não a odiava.
Um dado
sartriano, existencialista, na obra de Moravia, parece-me, esta inconsequência
de vida, este não amar nem odiar, este não agir nem deixar de agir, este
absurdo, esta inautenticidade, esta estranheza de si próprio, esta faixa
cinzenta de existência inautêntica. O jornalista pensa que a Humanidade inteira,
por séculos e séculos, agira por motivações inautênticas, multiplicando em
progressão geométrica toda a irrealidade inicial.A História, a grande História,
era um cemitério de ideias falsas, primeiro adoptadas com fervor e
imediatamente abandonadas.
Na
verdade, Merighi chegara a amar a mulher, e chegara a casar-se com ela. Mas
tudo agora lhe parecia falso, inautenticidade irreparável.
Mas do nada pode despontar o
ser; e da irrealidade pode brotar a realidade.
Bom,
normalmente, um homem nestas condições ter-se-ia separado da mulher. Mas ele
não o faz. A separação significaria a acção e ele sentia-se incapaz da acção.
Agir significava mentir, criar uma nova inautenticidade sobre o cúmulo das
outras que já se tinham consumado na sua vida, porque uma acção falsa se
desenvolve noutra. E como tanto ele como a mulher eram economicamente
independentes, cada um passaria a dormir no seu quarto, cada um faria a sua
vida independente do outro, tudo o que respeitasse ao governo da casa ficaria a
cargo dela e, em troca, ela – que tivera esta ideia quando confrontada com o
desinteresse dele – só lhe pedia que não saísse de casa.
Ele
corre o mundo em serviço de reportagem. Só está em casa o tempo bastante de
redigir as suas crónicas. Da vida de casado, entre 1953 e 1962, guardava uma
recordação confusa, em consequência de ter passado esses anos em estado de
continuada desatenção.
E assim
continuaria a viver em família como se vivesse num hotel.
Um
inquilino. Um inquilino pode ser uma pessoa desatenta ao que se passa no prédio
onde vive. Entra, sai, come, dorme ou trabalha, vive sob o mesmo tecto com
pessoas em quem não repara, sabe que existem, mas ignora-as. Era a vida que
levava em casa. Suspensão da atenção.
E
voltou a pensar no seu projecto de romance. Teria que ser um romance da
autenticidade. O rascunho que escrevera pareceu-lhe imprestável, por
inautêntico. Rasgou-o. Naquele rascunho havia peripécias, acontecimentos, agia-se,
quando na realidade da vida, segundo ele, não era possível agir de maneira
autêntica. O que queria era um romance sem intriga, sem história, sem acção
dramática.
O que é
o contrário da acção dramática?
É o
quotidiano, o rame-rame.
Os
dramas na vida de uma pessoa? Oh, muito raramente acontecem. O que mais
acontece na vida é o quotidiano, é essa mesma vida a correr sem forma.
Um dia,
Merighi recebe uma carta anónima. E resolve passar do seu estado de desatenção
ao estado de atenção.
Vem a
saber que a mulher, além da loja de modas, era também proprietária de uma casa
de pouca permanência, que contratava raparigas muito novinhas para, nessa
casa (uma vivenda um pouco retirada
do centro da cidade) receberem cavalheiros. E vem a saber que a mulher, durante
algum tempo, levara a essa sua casa a própria filha de catorze anos e que a
filha estivera nessa casa com vários clientes. É a própria enteada que lho
confessa.
O
jornalista Francesco Merighi começa a ter pesadelos e numa noite de mau dormir
saca da mesa de cabeceira o livro que estava mais à mão. O Rei Édipo, de
Sófocles. “Onde encontrar o traço escuso de um delito antigo?”. “Procurando,
ele encontra-se, mas se se descura, ele foge.”
O
jornalista sente-se na mesma situação de Édipo. A cidade corrompida pela peste
era a sua própria família e o responsável por essa corrupção era ele, e sem
que, como Édipo, lhe fosse permitido punir-se ou expiar a culpa. Ou por outra…
talvez houvesse para ele uma forma de expiação.
Uma breve memória da tragédia de Édipo.
Tebas está a ser devastada pela peste. O povo implora a
Édipo, seu rei, que faça alguma coisa. Creonte, cunhado de Édipo acaba de
escutar os oráculos. A terra de Tebas está manchada de um delito, de uma culpa
que ainda não foi expiada. Enquanto esse crime não for expiado a peste não
deixará de matar o povo.
Antes de Édipo tinha reinado em Tebas Laio, casado com
Jocasta, actual mulher de Édipo. Laio fora assassinado e Febo (Apolo) exige que
sobre os assassinos de Laio urgentemente caia o castigo. “Mas onde descobrir a
incerta pegada de um antigo crime?, pergunta Édipo. Creonte replica: “nesta
mesma terra; o que se procura obtém-se; só escapa o que se descura.”
Todos sabemos a história, que é das mais perturbantes que
a Humanidade alguma vez contou a si própria. Laio fora assassinado numa
encruzilhada por uns viajantes. Morreram todos os que com ele iam, menos um,
que fugiu. Aparece Tirésias, o adivinho. Mas recusa falar. Os factos falariam
por si. Instado, profere na cara de Édipo: “o assassino que procuras encontrar,
afirmo-to: és tu mesmo”.
E mais lhe atira Tirésias: ele, o rei Édipo, vive infames
relações com os que lhe são íntimos e não é clarividente que chegue para
compreender a sua própria miséria. “O motivo da tua ruína és tu mesmo”, remata
Tirésias. E mais: “saberás tu, Édipo, de quem és filho?”
“O homem que queres encontrar está aqui. Será cego depois
de ter visto a luz, será mendigo depois de ter sido rico; há-de mostrar-se
irmão e pai dos próprios filhos, filho e marido da mulher que o gerou, herdeiro
do leito conjugal e assassino de seu pai.”
Chamada a depor perante o povo, Jocasta esclarece um pouco
as coisas. O oráculo predissera a Laio que iria ser morto às mãos do próprio
filho. De forma que Jocasta e Laio, para contradizer o oráculo, logo que têm
uma criança, entregam-na a alguém, amarrada pelos tornozelos e com o encargo de
a fazer desaparecer numa montanha inacessível. Mas esse alguém, apiedando-se da
criancinha, entrega-a ao rei de Corinto, Polibo, que a adopta. E quando Édipo,
a meio de um banquete, sabe que não é filho natural de Polibo, coberto de
vergonha, foge do palácio e põe-se a correr mundo.
Uma vez, na encruzilhada entre Delfos e Dáulia, Édipo
matara um velho e mais quase toda a comitiva que o acompanhava.
Édipo treme. Uma tirada de Jocasta dirigida a seu marido,
Édipo: “Porque há-de um homem temer se está sujeito à lei do acaso e em nada
lhe é possível um entendimento claro? Melhor será viver à deriva, como cada um
puder. E não vivas no temor das núpcias com tua mãe. Muitos foram os mortais
que em sonhos a sua mãe se uniram.”
E a verdade resplandece pela boca do mensageiro a quem
fora confiado o bébé de tornozelos amarrados. Os factos falam. Édipo matou o
seu legítimo pai, Laio. Chegou a Tebas. Mostrou discernimento e sabedoria na
decifração dos oráculos e o trono de Tebas foi-lhe entregue, e com ele, por
mulher, Jocasta, mulher de Laio e sua mãe. “Ai de mim. Tudo se torna claro. Ó
luz, seja esta a última vez que te encaro, eu, nascido de quem não devia e
assassino daquele que me era proibido assassinar.”
Jocasta é encontrada enforcada nos seus aposentos. Édipo
crava nos próprios olhos as fivelas de ouro do seu cinturão e sai de Tebas
cego, desgraçado, desonrado e sem destino, amparado pelas filhas.
E se a
inautenticidade, a falsidade, estivessem instaladas no coração das coisas? E se
a realidade fosse estruturalmente irreal e o seu significado mais profundo
residisse na irrealidade?
O
protagonista do romance de Moravia A
Atenção, mantinha um diário para dele extrair um romance sem acontecimentos
nem peripécias. Mas repara, logo no primeiro dia de escrita, que o dramático e
o excepcional do acontecimento lhe explode entre as mãos. Estivera dez anos sem
falar à mulher e à enteada vivendo embora com elas. Ao fim de dez anos, por
intermediação quase trágica, quase grega, do deus ex-machina de uma carta anónima, vem a saber que sua mulher
tem uma actividade de proxeneta e que prostituira a própria filha de catorze
anos.
Inverosímil.
Inautêntico.
Francesco Merighi, o jornalista, vai pessoalmente à casa de passe
da mulher e vê com os seus olhos. Era verdade. A sua família estava ferida de
corrupção, tanto quanto a cidade de Tebas no reinado de Édipo.
Mas
aquele sentido de corrupção familiar não era excepcional. A corrupção na sua
família era continuada, fugia a um juizo moral, instilara-se no banal
quotidiano, dava vida a esse quotidiano e alimentava-se dele, como se
alimentava do fluir da atenção e da desatenção das coisas.
E
perante os factos não restava senão uma suspensão dos juizos morais. E essa
atitude seria igual à da contemplação inactiva dos factos e da vida. Estivera
desatento e falhara na compreensão dos acontecimentos e das pessoas. Deveria
estar atento, se queria mesmo atingir o nexo.
Há uma
diferença entre a coisa que se imagina e
a coisa realmente acontecida, que é o que transcorre entre a realidade da
mentira e o espaço que pertence à verdade, o facto mesmo, directo; sendo a
realidade da mentira mediata e indirecta, fora do facto e apenas no significado
dele.
A certa
altura de uma conversa com o seu chefe de redacção, conta-lhe do seu projecto
de romance. A Atenção. O chefe de
redacção sustenta que nos tempos de hoje (já ontem: anos 60), por mais que
queira, não há ninguém que consiga estar atento. Não se consegue a atenção.
Tudo foge.
Merighi
não consegue abordar frontalmente com a mulher o assunto escaldante da segunda
ocupação dela, a casa de meninas, as pobres raparigas, os clientes. Porquê?
Porque
pensa: se falasse com toda a franqueza ou a condenava em definitivo, ou se
tornaria seu cúmplice. E o romance, que queria liso e sem acontecimentos nem
acção dramática, se ele lhe vertesse dentro a realidade pura do seu quotidiano,
tornar-se-ia num dramalhão do pior gosto.
Merighi
relê Édipo.
A
questão de Édipo é uma questão de atenção e desatenção. Édipo passara anos e
anos de esquecimento e indiferença, anos e anos entre os cidadãos de Tebas,
anos e anos a dormir com a que fora mulher de Laio, no mesmo aposento que Laio habitara,
sabendo que tinha na consciência um assassínio violento. Édipo, desatento,
levou anos e anos sem querer saber. Sem querer saber que Jocasta, sua mulher,
era sua mãe. E nunca falou com ela acerca dos acontecimentos criminosos que lhe
haviam levado o marido, nem quis reconhecer na descrição de Jocasta o seu
próprio crime. Édipo não quis saber. Édipo não quis praticar a atenção. Édipo
quis estar desatento aos seus próprios e íntimos problemas, aos problemas da
mulher, aos problemas da cidade. Quis ignorar a realidade. E conseguiu-o. E a
irrealidade de uma vida só consegue suportar-se pela desatenção.
E
porque estaria Édipo desatento?
Porque
lhe convinha. Amava Jocasta. Um amor incestuoso que dizem mais forte e
irrecusável do que um amor normal, tal como acontece com tudo o que é proibido.
E a
Édipo convém a desatenção porque também ama o poder.
Francesco
Merighi, o jornalista do romance de Moravia, convencia-se de ser ele, como
Édipo, o culpado da corrupção da sua família, por ter deixado de amar a mulher
e na sequência disso ter destruído nela a vontade de um viver regular em
família, desencadeando nela a vocação secreta que já teria em tempos de
ocupação alemã e de fome, quando morava no bairro popular onde a conhecera e
onde quase todas as raparigas se prostituíam um pouco. Mas a interrogação de
Merighi persiste, centrada na razão por que tinha deixado de amar a mulher; ou,
antes, na razão por que a tinha chegado a amar.
Porque
se ama ou desama uma pessoa? – pergunto eu. Quais, na verdade, os elementos
constitutivos do amar?
Merighi
tem uma explicação com a mulher. Não percebe por que razão aquele amor, que foi
autêntico, se esvaiu dentro dele. A mulher sugere-lhe que teria sido por ela
ter deixado de lhe dar certa coisa. Que coisa? Ele procurara uma mulher de um
certo género, do povo, ela era-o quando se conheceram, e depois deixara de o
ser. Deixara de a amar por ela ter deixada de ser a pobretanas que era. Ele
procurava então o autêntico, o genuino, o verdadeiro. E julgava tê-lo
encontrado nela. Porque entendia que essas características eram mais
encontráveis no povo do que na sua classe.
Pergunta
da enteada: “que amavas tu nela e na família dela?” A pobreza. Pobreza e
verdade deviam ser sinónimos. Mas agora deixara de acreditar nisso.
O homem
era o clássico intelectual de esquerda, o primordial idealista pequeno burguês,
cheio de sensações de culpa social que se quer socialmente avançado e pronto a
fazer opções de classe. E a mulher ensina-o. O povo não é como ele pensava que
era. O povo não é mais autêntico do que as outras classes sociais. O povo é
como as classes altas e a diferença está no mais ou menos dinheiro. O que lhe
interessava na mulher era o ser pobre e, ocasionalmente, até um tanto venal
sexualmente. E ele odiava as mulheres da classe dele com tanta intensidade que
ela lhe perguntou se ele era comunista. E ele disse que sim, que até estava
filiado no partido. O que não era verdade.
Uma
ideia do romance: muitas vezes a razão de ser de alguém reside exactamente no
não-ser, embora fingindo ser. Cada um de nós pode ser o facto de fingir o que
não é.
Merighi
descobre que a mulher se não está tuberculosa anda lá perto. E, à semelhança de
Édipo, engendra para si uma forma de expiação pela corrupção familiar de que se
sente responsável, um equivalente à cegueira voluntária de Édipo.
Tenta
convencer a mulher a ir tratar-se num sanatório de montanha, comprometendo-se a
deixar de viajar e a fazer-lhe companhia pelos dois ou três anos que durar o
tratamento. E consegue chorar só de pensar nisso.
Mas a
mulher não aceita. Por outro lado, no fundo da sua alma, o que ele espera é que
a mulher sucumba repentinamente de hemoptises. Uma esperança de que um deus ex-machina de teatro grego resolva
as coisas e o exima da expiação que voluntária e inautenticamente se propôs.
Porque toda a acção o faria cair de novo na inautenticidade.
Era uma
ideia falsa que escondia, contudo, em si, alguma coisa de verdadeiro. Fazer
companhia à mulher que deixara de amar, num sanatório, e viver o resto da vida
com ela – falso. Desejar que a mulher morra depois de ele ter feito a promessa
e antes de se ver obrigado a cumpri-la. Verdadeiro.
Repito:
e se a inautenticidade, a falsidade, estivessem instaladas no coração das
coisas? E se a realidade fosse estruturalmente irreal e o seu significado mais
profundo residisse na irrealidade?
Francesco
Merighi, o jornalista, está apaixonado pela enteada. É correspondido. Revela
que a tal carta anónima lhe viera parar às mãos dez anos antes do que dissera e
do que tinha escrito no seu diário. Ignorara-a durante dez anos. Procurara
deliberadamente estar desatento. E revela que a mulher lhe mandara a casa por
várias vezes várias das raparigas que se prostituíam para ela. A ideia era
continuar a manter uma relação com ele, mesmo que por interpostas pessoas.
Mais: revela que a mulher, disfarçando a voz, certo dia o convidara a ir a
certa casa onde lhe estava reservada uma surpresa agradável. E ele foi. E era a
vivenda onde funcionava a casa de passe. E ele entrou, e entrou num dos
quartos. E quem o esperava no quarto? A própria enteada, de catorze anos, e
pela qual, mesmo sem ter tido nada com ela, se apaixonara.
Talvez
não interesse muito saber os complicados pormenores com que Moravia termina o
seu romance. Ou o romance dentro do romance - ou ainda melhor: o diário dentro
do romance dentro do romance. É uma metáfora para dizer que a escrita de um
romance pode ser a única maneira de manter uma relação com a realidade.
O
romance pode ser o mediador entre o autor e a realidade. Uma espécie de
consciência. E até porque, segundo Moravia, nenhuma relação no mundo real é tão
real como a que existe entre o autor e as suas personagens. Nem a relação de
amor é tão pura e completa.
E, nem
seria preciso dizê-lo: a atenção é muito relativa e flutuante, às vezes - isto
digo eu. E às vezes para não nos aborrecermos demais é a nossa própria psique
que nos comanda a atenção. E podemos viver a vida por desatenção; podemos amar
e casar e desamar e descasar por desatenção; comer e beber por desatenção; ter
opiniões e votar por desatenção; falar e calar por desatenção. Até podemos
morrer, tal como viver, por desatenção.
A
atenção é a mãe da memória. Coisa que nos vem faltando muito a nós,
portugueses. E também pode ser, a atenção, uma questão de cidadania, de
auto-estima, e até, quem sabe, de competitividade.
Estava
o jornalista Francesco Merighi nos Estados Unidos em serviço de reportagem
quando lhe chega a notícia da morte da mulher. Não tuberculosa. Por cancro no
pulmão.
O deus ex-machina funcionou. A corrupção do
quotidiano banal, que compreende até a morte por cancro, cumpriu-se.
Quando
eu conto um sonho que tive alguém me pode dizer “não, estás a mentir, tu não
sonhaste isso”?
ResponderEliminarTambém é uma realidade "ouvir" assim o programa «Questões de Moral», numa Segunda-feira de Verão, como se ele fosse real. Ou sê-lo-á ainda??
Também ando a pensar reler e tresler os americanos tranquilos, os italianos bravos. Para tentar perceber "quantas as guerras" e porque estamos assim. Sentar as "Questões de Moral" à mesa, o 3º hóspede do meu sentir, enquanto se desfiam os massacres e desvio os olhos. Abç
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