domingo, 17 de agosto de 2014

    SINATRA E O CASO DA CABEÇA DO  CAVALO



Separada do seu corpo, a cabeça negra e sedosa de Karthoum, o grande cavalo, estava colada aos lençõis, envolvida numa espêssa massa de sangue.


Cá está o momento literário em que Mario Puzo, autor de O Padrinho (continuemos na Mafia, porque não, ela está tão presente entre nós, e sem precisar de ser siciliana) descreveu a cena em que um magnate do cinema, ao acordar, descobre a cabeça do seu cavalo de corridas favorito metida entre os lençóis.


Toda a gente que foi em tempos ao cinema conhece o contexto. Johnny Fontane, cantor italiano com a carreira em panne pede a Don Corleone, o padrinho, il capo di tutti capi,  que o ajude a obter um papel em certo filme a realizar em breve.
Corleone manda o seu advogado a Los Angeles, a fim de convencer às boas o boss dos estúdios a incluír o seu protegido no elenco. Se o fizesse, o estúdio não teria mais problemas com os sindicatos.


Mas o produtor recusa, e, já se sabe, para o convencer de vez a Mafia manda matar o cavalo mais estimado e mais caro da quadra pessoal do magnate – um cavalo que valia 600.000 dólares.
                              
                                                       

Quando O Padrinho estreou, toda a gente identificou aquele caso de Johnny Fontane como tendo sido inspirado num facto real passado com uma figura real: Frank Sinatra. E quem pensava assim não se enganava. E Sinatra, quando viu o filme, pensou o mesmo: estavam a entrar com ele. E não achou piada.
A cena tinha que ver com Sinatra e explorava a maneira como ele havia conseguido um papel no filme Até à Eternidade.


E por acaso nem no filme as aparências resultam tão explícitas como no romance que deu orígem ao filme. No romance, Johnny Fontane vive um casamento tempestuoso com uma actriz – o que, na vida real, correspondia ao casamento de Sinatra com Ava Gardner. 

                                                                     

O melhor amigo de Fontane era Nino Valenti, também cantor e com problemas de alcoolismo – o que remetia para a figura de Dean Martin, todavia com menos realismo do que a própria realidade, porque se Dean Martin passava a imagem de um daqueles tipos permanentemente alcoolizados, a verdade é que o Dean Martin real quase não bebia.
O produtor dono do cavalo mutilado é um misto de dois magnates de Hollywood, celebérrimos adeptos das corridas de cavalos e pouco escrupulosos, Louis B. Mayer (da Metro) e Harry Cohn (da Columbia).


Em 1969, depois de saído o romance, The Godfather, o seu autor, Mario Puzo, está a jantar no Chasen’s de Los Angeles. E quem é que lá estava também a jantar com uns amigos? O próprio Sinatra em pessoa. O companheiro de Puzo também conhecia Sinatra. Pergunta-lhe se quer que o apresente ao cantor. Está bem, vamos lá. Quando Mario Puzo se apresenta na mesa de Sinatra, este desata a injuriá-lo de tudo quanto há, chamando-lhe bufo vendido ao FBI, e ameaça-o de lhe mandar partir as pernas.

                                                                    

Vamos lá a ver… o jovem Frank Sinatra – e hoje já não é segredo para ninguém - começou cedo a sofrer influências mafiosas. Bugsy Siegel, um dos mais duros e sanguinários dos chefões, a bem dizer o criador de Las Vegas – há um filme sobre ele, protagonizado por Warren Beaty - foi um dos seus gurús. Ao princípio, Sinatra até o imitava nos fatos espampanantes, nas gravatas, nos presentes de mau gosto.

   


Mais do que qualquer outra estrela de Hollywood – talvez com excepção  feita a George Raft – Sinatra começou cedo a ser associado ao gangsterismo. Segundo jornalistas da época, ele parecia-se muito com a imagem que o público fazia de um gangster, versão 1929: grandes olhos luminosos, gestos duros mas elegantes, falando pelo canto da boca, vestindo com arrogância – precisamente género George Raft: luxuosas camisas escuras combinadas com gravatas brancas…


A Cosa Nostra, segundo informação de um mafioso chamado Joseph Doc Stacher, gastou bastante dinheiro para ajudar Sinatra a singrar. Desde os anos 30 que a Mafia acompanhou a carreira de Sinatra, continuando a acompanhá-lo quando ele atinge o pico da fama e da popularidade, nos anos 60.


Na realidade, ainda nos anos 30, Sinatra o que queria era desembaraçar-se de Tommy Dorsey e respectiva orquestra, da qual fazia parte como crooner.  Mas tinha um contrato. E a ruptura desse contrato valia 60.000 dólares. No máximo dos máximos, e bem esticadinhos, Sinatra tinha de seu para o efeito 25.000. Era curto.


Dizem que Tommy Dorsey chegou a puxar de uma pistola para o ameaçar quando percebeu que ele ele queria deixá-lo. Pode ser verdade. Sim, podia acontecer Dorsey ser mais mafioso do que Sinatra naquela época. Mas certo dia é Dorsey que cede e é Sinatra que sai mesmo da orquestra. Dorsey foi ameaçado por um certo Willi Moretti, homem de mão de Lucky Luciano. E não só isso como a Mafia se dispôs a entrar com o capital que faltava para Sinatra se ver livre de Tommy Dorsey e da sua orquestra e começar a voar com asas próprias. Uma verba que oficialmente foi avançada pela agência artística MCA.

                                                                               

Ainda assim, nos primeiros anos da década de 50, a verdade é que a carreira e a vida pessoal de Sinatra estavam num impasse. Louis B. Mayer tinha-o processado por calúnia. O mau viver com a mulher, Ava Gardner, agravava-se, e estava a descobrir-lhe tendências suicidas. A casa de discos de que era proprietário não estava a dar nada. Uma emissão televisiva que tinha programada tinha sido retirada do alinhamento. E por fim, o agente tinha-o deixado. Para ajudar o pai que é velho, a comissão do Senado que investigava o crime organizado caía sobre ele. Havia fotografias dele em Havana, no muito propagandeado meeting mafioso de 47, aos abraços a Lucky Luciano, e esta sim, era uma ameaça séria à carreira.


Um mafioso chamado Mickey Cohen, herdeiro dos negócios do outro mafioso de nomeada entretanto assassinado com tiros nos olhos, o tal Bugsy Siegel, foi de muito préstimo a alguns amigalhaços de Sinatra. Foi ele que deu dinheiro a Dean Martin e a Jerry Lewis para ver se a carreira deles arrancava. Era amigo de Errol Flynn, de Robert Mitchum, do cómico Red Skelton, de Judy Garland, do escritor Ben Hecht – o que tinha escrito o guião do filme sobre Capone, Scarface. À Garland prestou ele um favor de monta quando mexeu os cordelinhos mafiosos para que a revista de escândalos Hollywood Night Life não publicasse um artigo sobre a dependência dela da droga. Em contrapartida, outro amigo, o cantor Jimmy Durante, pagara-lhe a caução de 20.000 dólares que fizera sair do chilindró esse figurão do Mickey Cohen.  
Uma noite, este Mickey Cohen entra num restaurante de Beverly Hills vai direito a uma mesa, salta-lhe para cima, prega um pontapé na cara de um fulano que estava sentado a jantar e deixa-o mais morto que vivo. Porquê? Porque esse tal fulano era agente do cómico Red Skelton, amigo dos mafiosos, e viera a saber-se que ele se deitava com a mulher do seu cliente. Logo, estava a contas com a Cosa Nostra.

                                                    

Foi no ano de crise para Sinatra, 1951, que este Mickey Cohen se lembrou de organizar um jantar de homenagem ao amigo. No Beverly Hills Hotel. Mas nessa época a sorte não parecia querer mesmo nada com Frankie e o jantar não teve grande concorrência e nem aqueceu nem arrefeceu para o efeito que era.


A comissão do Senado que investigava as actividades da Mafia continuava a trazer à baila as fotografias de Havana e os grandes abraços de Sinatra aos mafiosos, sem poder faltar entre eles o charmoso e mais que referenciado Johnny Rosselli.
Sinatra jura a pés juntos nunca ter servido de portador de dinheiros sujos. Sinatra nega alguma vez ter conhecido Frank Costello, Lansky, Siegel, Joe Adonis – ou talvez os tivesse conhecido vagamente. Então e um tal Willi Moretti? Sim, ajudara-o no princípio da carreira, mas depois  nunca mais lhe pusera a vista em cima. E Frankie recusa a ideia de poder vir a ser condenado com base nas suas relações pessoais.
- Ó senhores, quando se está no show business conhece-se montes de gente. Não sabemos quem eles são nem o que eles fizeram na vida -  declama Sinatra à comissão do Senado, ao cabo de duas horas de interrogatórios.


E, bom, a ser assim, nada justificava que Sinatra fosse ouvido por aquela comissão.
Por agora estava livre, mas da fama de mafioso não se livraria ele até ao fim da vida. E ainda, até ao fim da vida, teria de se haver com 5 juris e com a Comissão do Crime do Estado de Nova Jersey.
Confessará a Ava Gardner ter ficado a dever a carreira a Sam Giancana. Diz-lhe que fora o super-mafioso Giancana a aguentá-lo naqueles desgraçados anos 50. Entre muitas outras coisas, os negócios de Giancana passavam por uma agência artística, a Worldwide Actors Agency. Através dela, Giancana fez possíveis e impossíveis para manter Sinatra em actividade, cantando em night clubs merdosos, e mesmo que os donos desses night clubs não o quisessem nem pintado. 

                                                                             
     
E também canta no Shamrock, de Houston. No Copacabana Club de Nova York – de que o mafioso Frank Costello era sócio. No Club 500, de Atlantic City. Um actor inglês estranha que um cantor da categoria de Sinatra aceite cantar em night clubs manhosos e mal afamados, e ele responde que é a organização que lho pede.


Em 51 Sinatra vai actuar ao Desert Inns de Las Vegas, propriedade, como nem poderia deixar de ser, de mafiosos. E depois ao famoso (à época) Hotel Sands. Entretanto, o patrão da Columbia, Harry Cohn, compra os direitos de adaptação de um romance muito em voga, de James Jones, From Here to Eternity, obra que por questões morais (adultério e crítica às forças armadas) muitos diziam inadaptável ao cinema. E estava na hora de reunir o elenco.


Algo havia no aspecto muito deitado abaixo de Frank Sinatra que poderia recomendá-lo para o personagem que se se chamava Maggio. Seria questão da agência falar com Fred Zinnemann, o realizador. E Fred Zinnemann parece interessado. Quem não está nada interessado em Sinatra é o produtor, Harry Cohn.
- Quem, esse fingido do Sinatra? Nunca trabalhará no meu estúdio.
Sinatra e seus representantes, legais e ilegais,continuam a bater-se pelo papel de Maggio em Até à Eternidade, enquanto Harry Cohn pressionava o realizador para que não fosse Sinatra a fazer o papel.
Jimmy Blue Eyes Alo, um mafioso metido nessas coisas do agenciamento artístico, toma o partido de Sinatra, e vem a saber que é Harry Cohn o principal obstáculo à contratação do seu amigo.
- Cohn, disse você? Pode dar-me o número do telefone pessoal dele? Se não me engano, esse Cohn deve-nos qualquer coisa.
Ava Gardner, por seu lado, faz claque por Sinatra junto de Joan Cohn, mulher do magnate da Columbia e sua amiga pessoal.

                                                                             

Sinatra leva o ano de 1952 a tentar promover-se. Aquele papel poderia salvar-lhe a carreira, e até porque todos eram de parecer que o destino daquele filme, mesmo antes de estar feito, era ser nomeado para os Oscars.
E Sinatra chega almoçar com Harry Cohn. Mas não corre bem.


- Porque não eu, Harry?
- Não, porque não, Frankie.
- Mas porque não porquê?
- Porque aquilo é um papel que deve ser feito por um actor a sério, um actor apropriado, um actor de prestígio.
- E tu achas que eu não sou esse actor, não é?
- Ó filho… o que tu és é um insignificante prostituto… quem pagaria um cêntimo para ver um magricelas como tu nesse filme… para ver esse teu rabo esquelético num grande filme?


Pois é, amigos, para quem não o saiba e tenha ilusões, a vida artística é cruel. Principalmente quando é a sério. 
                
                                                                                                

Foi pedido a Frank Costello que interviesse no caso Sinatra, ainda que Costello não fosse um particular amigo dele. Costello põe em acção os homens dos sindicatos de Hollywood. E quem teria que vir a ser metido no assunto? Johnny Rosselli, o mafioso que dava os bons dias em Hollywood e Los Angeles.

                                                                    
Este Johnny Rosselli, por tudo em que esteve metido é quase uma personagem histórica: intermediário em mil negócios e vigarices em Hollywood, e depois em Las Vegas e em Miami; pequeno produtor de cinema; associado da CIA e depois tão depressa implicado em tentativas de assassínio de Fidel Castro como implicado no atentado ao presidente John Kennedy em Dallas; como mais tarde presumível assssino do seu próprio chefe, Sam Giancana, e em casa deste…
É Johnny Rosselli que vai telefonar ao homem da Columbia, ao Harry Cohn. Não era por nada, era só para lhe recordar o que ele devia moralmente (e sem dúvida que financeiramente) à Mafia. E Rosselli lembra a Cohn que sem o dinheiro avançado pela Mafia não existiria nem em sonhos alguma coisa parecida com a Columbia Pictures. Mas o telefonema de Rosselli não parece fazer grande efeito em Harry Cohn. Era caso para usar meios mais convincentes.


Que tal a cabeça do cavalo de competição de Cohn avaliado em 600.000 dólares cortada e enfiada na cama dele?


Mario Puzo viria mais tarde a declarar O Padrinho  como um conto de fadas para adultos, Até porque seria impossível introduzir uma cabeça de cavalo a escorrer sangue na cama de alguém que lá estivesse a dormir sem que esse alguém acordasse.


E muitas cartas de associações de amigos dos animais recebeu o realizador do filme, Coppola, querendo saber se a cabeça do cavalo que aparece decepada no filme era de um cavalo mesmo, verdadeiro.
Pois bem… era.
E como fizeram isso? Foram matar um cavalo de propósito?
Era. Era a cabeça de um cavalo verdadeiro e foi comprada, já cortada, numa casa de comida para cães. Os cavalos eram mortos e esquartejados e vendidos como comida para cães. Cães de luxo, suponho eu.


A produção foi ver os cavalos que iriam ser abatidos, escolheu um, e disse aos homens da loja: quando este cavalo for abatido e esquartejado mandem-nos a cabeça dele para o estúdio.
Enfim, não terá sido a cabeça do cavalo a convencer Harry Cohn. Mas também poderia ter sido. O grande trunfo da ficção é isso, é o que poderia ter sido, o que poderia ter acontecido sem ter necessidade de acontecer.
A mulher de Cohn em conversa com a amiga Ava Gardner conta-lhe que dois mafiosos se tinham introduzido à força nos escritórios da Columbia e tinham chegado ao gabinete do marido, e com todo o desplante se tinham sentado defronte dele, informando-o de que ele iria contratar Sinatra amanhã mesmo para o papel de Maggio no filme Até à Eternidade já em fase de pré-produção. Um desses homens era Johnny Rosselli.

                                                                                  

E Johnny Rosselli ainda deixara alguma margem de escolha a Harry Cohn: contratar Sinatra… ou ir desta para melhor. Era uma escolha, democrática, uma opção, então não era?
A  BBC noticia que Frank Sinatra teria apelado à Mafia para conseguir o papel em Até à Eternidade. Sinatra nega, processa a BBC e ganha a causa.
Interrogado sobre se a Mafia tivera alguma influência sobre a sua escolha para aquele papel, Sinatra sobressalta-se, pisca o olho ao entrevistador e responde:
- Qual quê! Não me chateie! Consegui o papel graças apenas ao meu talento.


Mas enquanto o filme sai e não sai, a carreira de Sinatra continua metida no buraco. Cheio de dívidas, continua a suplicar aos donos dos night clubs de má fama que o deixem lá cantar.
No Copa, de Boston, Sinatra canta, e depois de cantar pede dinheiro emprestado ao dono. Daí a um mês o filme sairia, e depois de o filme saír ele voltaria a ir cantar ao Copa e pagaria a dívida. E o dono do Copa, de Boston, empresta-lhe o dinheiro.
E o filme Até à Eternidade saíu e foi um sucesso estrondoso.
Dez nomeações para o Oscar com vitórias em oito delas. Um desses Oscars vai direitinho para o melhor actor secundário: and the winner is… Frank Sinatra.


Acreditem, não há talento que consiga impor-se verdadeiramente sem a intervenção de uma mafia qualquer.


Sinatra cobrara 8.000 dólares pelo filme. Quatro anos depois, no filme a seguir, cobraria 150.000 dólares e 30% sobre as receitas.
Devolveu de facto ao dono do Copa o dinheiro que ele lhe emprestara. Mas faltou à segunda promessa. Nunca mais voltou a cantar lá. Não voltou e o dono da casa nunca lhe perdoou.

                                                                                   

Ava Gardner é que disse dele, e com o conhecimento de causa que lhe dera a intimidade do casamento:
- Quando ele estava em baixo era a pessoa mais doce e gentil desta vida; mas quando começou a ter sucesso tornou-se o homem mais arrogante que conheci. Acho que ele era mais feliz quando andava nas lonas.


E quanto à cabeça do cavalo, embora Francis Ford Coppola venha a dizer, num comentário à edição do filme em dvd, que não tem a certeza de que o episódio se tenha baseado nalguma história real acontecida com Frank Sinatra, e a propósito da contratação dele para o filme Até à Eternidade, também disse que eram histórias que corriam, que se ouviam daqui e dali, mas que não pode – diz ele – garantir o que é verdade ou o que é menos verdade na cena.
Tempos depois de ter estreado O Padrinho, a cabeça de um cavalo foi encontrada no interior de um automóvel estacionado.







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