REPRESENTAR
(…)
Ele
não respondeu, de modo que Julie teve de falar de novo.
-
Não és feliz?
-
Sou perfeitamente feliz – respondeu, sorrindo.
-
Que desejas então?
Uma vez mais, Roger fitou-a de uma maneira desconcertante. Era
difícil saber se estava sério, pois os seus olhos tinham um leve fulgor
zombeteiro.
- Desejo a realidade.
- Como?
- Tenta compreender: tenho vivido sempre suspenso numa
atmosfera de ilusão. Quero pisar terreno firme. Tu e o pai dão-se muito bem
respirando esse ar. Não conhecem outro, e pensam, naturalmente, que é o ar do
céu. Eu, porém, sinto-me sufocado.
Julie escutou-o atentamente, procurando compreender o sentido
das suas palavras.
- Somos actores, e actores de sucesso. Foi por essa razão que
pudemos rodear-te de todo o conforto desde que nasceste. Poderias contar pelos
dedos os actores que mandam os filhos para Eton.
- Estou muito grato por tudo o que têm feito por mim.
- Então porque nos censuras?
- Não estou a censurá-los. Vocês fizeram por mim tudo o que
podiam. Mas, infelizmente, fizeram-me descrer de tudo.
- Nunca interviemos nas tuas crenças. Sei que não somos
pessoas religiosas. Somos actores, e, depois de oito representações por semana,
não se sente vontade de nos entregarmos à devoção ao domingo. Esperei,
naturalmente, que o colégio cuidasse de todas essas coisas.
Ele hesitou um pouco antes de falar novamente. Dir-se-ia que
fazia um certo esforço sobre si mesmo para continuar.
- Quando ainda era um rapaz de catorze anos, fiquei uma noite
nos bastidores a ver-te representar. A cena deve ter sido muito boa. Dizias as
coisas que tinhas a dizer com tanta sinceridade e as palavras que pronunciavas
eram tão comoventes que senti vontade de chorar. Fiquei abalado. Era uma emoção
que nem sei explicar. Fiquei como que suspenso. Tive tanta pena de ti! Via-me
como um pequeno herói e achei que não devia fazer mais nada que pudesse
contrariar-te. E então vieste para o fundo do palco, bem perto de onde eu
estava, ainda com as lágrimas a deslizar pelas faces. Voltaste as costas à
plateia e perguntaste ao contra-regra com a voz mais natural deste mundo: “que
é que o raio desse electricista está a fazer com as luzes? Dei ordem para tirar
o azul.” E depois, no mesmo momento, voltaste-te novamente para o público num
grande grito de angústia e continuaste a cena.
- Mas, querido, o teatro é assim mesmo. Se uma actriz sentisse
as emoções que representa ficaria em pedaços. Lembro-me perfeitamente da cena.
Eu fazia a casa vir abaixo. Nunca ouvi tantas palmas em toda a minha vida.
- Creio que fui um tolo em levar aquilo a sério. Pensei que
estavas a sentir tudo o que dizias. Quando vi que era só fingimento alguma
coisa morreu dentro de mim. Desde então nunca mais acreditei em ti. Tinha feito
papel de parvo, e intimamente decidi que isso não sucederia outra vez.
Ela lançou-lhe o seu sorriso que seduzia e desarmava.
- Querido, acho que estás a dizer tolices.
- É claro que pensas isso. Não conheces a diferença entre a
verdade e a ilusão. Nunca deixas de representar. Já é para ti uma segunda
natureza. Representas para os criados, representas para o papá, representas
para mim. No que me toca, fazes o papel de mãe ilustre, carinhosa e indulgente.
Não existes, és apenas uma série de papéis representados. Pergunto muitas vezes
a mim mesmo se não houve uma criatura humana em ti ou se foste sempre um meio
de expressão para todas essas outras pessoas que finges ser. Quando te via
entrar num quarto vazio sentia várias vezes o desejo de abrir a porta de
repente, mas tive receio de não encontrar ninguém lá dentro.
Ela fitou-o vivamente. Estremeceu, pois as palavras do filho
causaram-lhe uma sensação arrepiante. Escutou-o atentamente, com certa
ansiedade, pois havia percebido pelo tom sério de Roger que ele exprimia alguma
coisa que o torturara durante anos. Em toda a sua vida nunca ela o ouvira falar
tanto.
- Achas que sou apenas simulação?
- Não é bem isso. Porque simulação é tudo o que tu és. A
simulação é a tua verdade. A margarina também faz as vezes da manteiga para
quem não sabe o que é realmente manteiga.
(…)
Julie quis sorrir, mas não deixou que a expressão de dignidade
ofendida lhe fugisse do rosto.
- É a nossa fraqueza e não a nossa força que nos torna
estimados por aqueles que nos amam.
- Em que peça disseste isso?
Julie reprimiu um gesto de irritação. A frase viera-lhe aos
lábios naturalmente, mas pertencia a uma peça. Atrevido! Mas a conversa entre
os dois continuou muito cordialmente.
- És grosseiro - disse num tom queixoso. Começava a sentir-se
cada vez mais a mãe de Hamlet. – Não sentes amor por mim?
- Sentiria se pudesse encontrar-te. Mas onde estás? Se te
arrancassem do teu exibicionismo, se te tirassem a técnica teatral, se te
descascassem como se descasca uma cebola, extraindo-se película após película de
simulação e insinceridade, farrapos de velhos papéis e retalhos de emoções
fingidas, seria encontrada finalmente a tua alma? – fitou-a com os seus olhos
sérios, melancólicos, e depois sorriu um pouco. – Mas eu gosto de ti mesmo
assim.
- Crês que te amo?
- À tua maneira.
(…)
“Quantas
idiotices Roger proferiu no outro dia! E o pobre Charles que parecia levá-lo a
sério… ele não passa de um pedantezinho.” Fez um gesto na direcção do salão
onde se dançava. As luzes tinham sido reduzidas e, donde ela estava, o ambiente
tornara-se ainda mais parecido com uma cena de teatro. “O mundo todo é um palco
e todos os homens e mulheres são apenas actores.” Mas através daquele arco
havia a ilusão. “Nós, os actores, é que somos a realidade.” Essa era a resposta
a dar a Roger. “Em geral, as pessoas são matéria bruta. Nós é que damos sentido
às suas vidas. Apanhamos as suas tolas emoçõezinhas e transformamo-las em arte,
com elas criamos beleza. O valor que possuem é o de formar a plateia que
devemos ter para nos realizar plenamente. São os instrumentos que tocamos. E
que vale um instrumento sem alguém para tocá-lo?”
SOMERSET MAUGHAM – Theatre (A Outra Comédia)
Trad.
Genolino Amado
Só uma pergunta minha sobre a estrutura
da verdade e da mentira: será lícito (e lúcido) extrapolar esta ambiência de
teatro e de actores para o mundo da política, dos políticos, dos jornalistas,
da comunicação manipuladora de verdades e de mentiras, dos banqueiros, dos
empresários, dos advogados, dos juízes, e respectivas verdades, sinceridades,
honestidades e histrionismos que todos os dias vemos a vadiar pelos televisores
em análises, debates, mesas redondas, comícios, e que cada um de nós vai
descredibilizando a cada dia que passa até ao vazio, será?
Será que como o actor, que adquiriu com o
tempo e a prática da profissão uma espécie de segunda natureza, também o político
profissional (e o jornalista e o banqueiro e o empresário e o advogado e o juiz)
a adquiriu – com o ónus terrível de estar a actuar sobre o drama real de
milhões de vidas; ao invés do actor, que toda a gente, à partida, sabe não ser
exactamente e pessoa que representa no palco, sendo-a todavia por umas horas?
A verdade pode não existir. A verdade
pode constar de uma sobreposição permanente de bem concebidas ficções, ou mesmo
mentiras, que adquire sentido e fulgor num dado momento para um dado grupo de
pessoas.
Sem comentários:
Enviar um comentário