quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

      OS QUE CHEGARAM ANTES DE SÓCRATES,
         OU O HOMEM SEMELHANTE AO PEIXE


Disse um dos que chegaram antes de Sócrates, Anaximandro, que as coisas crescem umas à custa das outras. Ora bem, e a riqueza dos homens também, que é o que mais se tem visto já depois de Sócrates. Trata-se de um processo compensatório existente na vida social e que reproduz e se reproduz na natureza.


O infinito é o que não é finito. Ou seja, é o inacabado.

                                                                            

Uma coisa só pode permanecer separando-se das outras, o que dá numa espécie de egoísmo de persistência. Descartes viria a contrapor a Anaximandro outra visão da qualidade do infinito, e que é aquela que hoje funciona para nós.


As criaturas vivas nasceram do elemento húmido evaporado pelo sol. De princípio, o Homem era semelhante a outro animal, o peixe.


E foi por estas e por outras, e um pouco para além dos meados do século XIX, que pensadores houve a ver em Anaximandro um anunciador de Darwin. Mas outros não pensaram assim e atribuíram os aforismos de Anaximandro a resquícios de mitologias muito antigas. Porque, diziam, Anaximandro se limitava a narrar, enquanto Darwin observava. Também se contrapunha que Darwin, observando, não deixava de narrar – e este narrar leva um pouco o sentido do efabular.


Escritores houve que se inspiraram no que conheciam do pensamento (ou da efabulação) de Anaximandro. Eis um deles, Edgar Allan Poe: a minha proposta é esta: na interpretação original do ser primeiro está a causa segunda de todos os seres, e assim o gérmen da sua destruição.

                                                                                       

Um outro, um tal Ferenczi, de quem nunca ouvi falar nem antes nem depois de Sócrates, sustentava que todo o ser vivo procurava regressar a uma paz orgânica visando a anulação do nascimento e sendo o acto sexual a imagem desse desejo. É boa esta. Regressar à paz orgânica pelo acto sexual… confesso que nunca tinha pensado nisso. Mas, com a idade que tenho, acho que já posso encarar as coisas desse modo. Quem sabe do que eu ainda não serei capaz?          
Aristóteles estabelece para o popular Tales de Mileto a faculdade de indagação das causas naturais, chamando-lhe percursor da filosofia dos físicos, exactamente os que por sistema punham de parte a especulação da causa sobrenatural.


Tales vai a caminhar, absorto nos seus pensamentos e a observar o céu. Não repara no poço que lhe aparece aos pés e cai nele. Uma escrava da Trácia que vai a passar repara no acidente, vai-se à borda do poço e grita lá para baixo: 
- Atão, ó sô Tales, como é? O sô Tales anda tão preocupado com o que se passa acima da sua cabeça que nem é capaz de reparar no que está mesmo debaixo dos seus pés.
E só depois de lhe dizer isto a escrava se deu ao trabalho de ligar para o INEM…
Tales era pobre. E era criticado pela cidade por ser pobre – sim, pois, alguns dos que chegaram antes de Sócrates eram pobres, tinham vergonha de ser pobres, foram criticados e meteram logo em cabeça, indo para a política, tornar-se ricos, e muitos tornaram-se mesmo. Quase todos. Há quem diga que Sócrates incluído…


Como eu ia a dizer, Tales era criticado no sentido de se dizer que se o grande filósofo era pobre era porque, afinal de contas, a filosofia, o conhecimento, não serviam para nada – com Sócrates também se pensou nisso, se estou bem lembrado, e por isso ele, já cheio de outros conhecimentos mais rendosos se retirou para franças e araganças quando quis saber da Filosofia...
Mas enfim, picado com essa da inutilidade da filosofia, Tales, o pobre, continuou as suas observações astronómicas e previu para esse ano uma boa colheita de azeitona. E vai daí, do pouco dinheiro que tinha reservou uma verba e alugou a maior parte dos lagares de Mileto. Como ninguém acreditou nele, e porque a filosofia não tinha utilidade alguma, os lagares foram-lhe alugados muito barato, uma vez que não era previsível uma tão boa colheita de azeitona. 


Oh, mas quando chegou o tempo das colheitas, subitamente, dá-se uma reviravolta e toda a gente quer alugar os lagares que Tales tinha monopolizado, no que resultou ele tê-los subalugado aos preços que quis, ganhando muito dinheiro, já com posses para, se quisesse, comprar um belo apartamento no 16éme arrondissement, e provando que era fácil aos filósofos enriquecerem quando quisessem, ainda que não fosse esse o objectivo da sua vida.
Continuando a provar a validade prática da filosofia, e continuando a observar o firmamento, Tales previu o eclipse de sol que haveria de pôr fim à guerra entre os Medos e os Lídios. Foi isso a 28 de Maio (não sei como fizeram essas contas) do ano de 385 antes de Cristo. 

                                                    
 
Um círculo é dividido em duas partes iguais pelo diâmetro – grande questão de moral engendrada por Tales de Mileto.
Mas há outras: os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais.
E houve quem disse que o nosso amigo Tales teria tido a ousadia de estabelecer uma coisa disparatada de todo, nem mais do que a divisão de um ano em 365 dias e 12 meses, e, não contente com isso, atribuindo a cada mês a quantidade totalmente absurda de 30 dias. Só mesmo de quem chegou antes de Sócrates…


Vá lá mais esta: se duas rectas se intersectam, os ângulos opostos são iguais – uma coisa que até Sócrates devia saber…


Outra: o ângulo inscrito num semi-círculo é um ângulo recto – quando teve esta ideia peregrina, Tales, consta-se que para festejar, apanhou uma tremenda grossura e mandou assar um boi, porque um triângulo só se define se a base e respectivos ângulos são conhecidos.


E o tal teorema que fez furor na noite de Mileto: uma paralela ao lado de um triângulo determinará dois triângulos idênticos.


Tales mede a altura das pirâmides partindo da sombra delas e comparando a relação entre a medida de uma vara vertical e a da sua sombra. E como é que um homem aparecido neste mundo antes de Sócrates, e sem se licenciar, nem sequer ao domingo por nenhuma faculdade, já sabia fazer cálculos de engenharia?
A terra flutua sobre a água. A água é o princípio de todas as coisas. Não era novidade. Os babilónios e os egípcios já haviam incluído a água nas suas cosmogonias.
A filosofia antiga, dizem, não coloca o problema da matéria. Quer dizer, Tales, ao teorizar sobre a água, não se perguntou metafisicamente o que era a água antes de verificar as suas propriedades, causas e consequências. Tudo remetia, segundo Nietzsche, para uma unidade do ser, unidade que Tales consubstanciava na água.


Mas Tales também deixou dito, e ainda antes de Sócrates, note-se, que o mundo estava cheio de deuses. Que o mundo era divertido, animado. E que no íntimo das coisas mais pequenas havia o espírito que as animava.


Até há quem afirme que muito do que Sócrates dizia era falso. Vejam lá uma coisa destas! 

                        

Ou, se não era falso, já tinha sido dito pelos que vieram antes dele – isso também a gente sabe. Um exemplo: a terrível fórmula do “conhece-te a ti mesmo”. Sócrates deve tê-la ouvido a alguém lá por onde andou quando era novo, nas serranias, nas beiras, e deve tê-la passado ao povo que o escutava como se fosse de lavra sua. É verdade. Há quem diga isso.
Mas o que Tales disse (segundo Diógenes Laércio) foi que de todos os seres o mais antigo era Deus, o ser que não foi engendrado. 


E o maior era o espaço que tudo continha. 

                                                   

E que o mais rápido de todos os seres existentes era o espírito, o mais santo, porque errava por toda a parte - e talvez fosse mesmo o dono de tudo. 


E que o mais forte era a necessidade que triunfa de tudo o mais.

                                                   


E que o ser entre todos os seres mais sábio era o tempo, porque o tempo tudo descobre. E até Sócrates ainda virá a ser descoberto…



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