Dá-me sempre que pensar quando vejo o
cartaz de um filme e leio: “uma história baseada em factos reais “; ou “uma
história baseada num facto verídico” – desde logo, há as suas diferenças,
claro, entre o verídico e o real.
E quem diz um filme diz um romance.
Tudo isso, acho eu, reporta ao
desprestígio em que no novo mundo economicista caiu a fantasia, a imaginação, o
lúdico, a ficção – até diria o prazer pelo prazer, seja ele o que for e qual
for.
E tanto mais intrigante é essa, digamos, realidade, quanto
mais nos vamos apercebendo no que de ficção comporta, quantas vezes, o que nos
vendem como verdade histórica ou como notícia verdadeira do momento, até que,
passados tempos, novas indagações nos venham dizer que aquela tal verdade
histórica não o era tanto assim, como aquela notícia de uma verdade televisiva
de última hora não o era exactamente nos termos em que no-la tinham impingido.
Querendo ver de outra maneira, e
desprestígio por desprestígio, também sempre se ouviu dizer que a realidade
ultrapassava a ficção – em inverosimilhança, pressupõe-se. O que também é
desprestígio para a própria realidade, que vê em perigo a sua autonomia, mesmo
a sua existência, por poder ser confundida com a sua eterna rival, a ficção.
Caso que também pode ser visto a contrario e acrescentar um acréscimo de prestígio para a
realidade, quando ela é tão ela mesma, tão real, que até parece ficção.
O sensacionalismo, serventuário do
comercialismo e dos negócios mediáticos, inimigo da imaginação e do sonho como
factores de subversão da realidade, preside à nossa vida hodierna. Mas sobre
isso haveria tanto a dizer que nunca mais saíamos daqui hoje.
De uma maneira ou de outra, essa
expressão, “baseada numa história real”, ou num “facto verídico”, é uma
redundância. Todo o romance se baseia em factos reais. Nada brota do nada. Nem
que lhe dê um tratamento fantasista, ou fabuloso, foi da realidade da sua
experiência pessoal que o escritor partiu para a ficção. Pode é não contar esses
factos reais tim-tim por tim-tim, tal como se passaram no patamar hierárquico de
realidade a que começaram por pertencer.
Caberia a pergunta: o homem comum dos
dias de hoje ama mais a realidade, ou prefere a ficção que os detentores do
capital financeiro proprietário de jornais e estações de televisão lhe querem
servir para o distrair da realidade mais real e da verdade mais verdadeira?
O mundo talvez seja irreal. Ou, nos
tempos que correm pela televisão, pelo Facebook, pela Internet, o mundo parece
querer fugir a sete pés da realidade mais assumida e consagrada – quem
esperaria ver nos media globais em
hora nobre um homem cortar a cabeça a outro homem, um homem queimar outro homem
vivo, um homem crucificar outro homem. Foi real? Ou faz parte da ficção que o
mundo está a construir sobre a sua própria e indizível realidade?
A realidade torna-se irreal pela força
da sua própria realidade, pela inverosimilhança do seu próprio espectáculo. Já
não é o nosso imaginário que irrealiza o mundo, essa é doravante, parece, a missão
da própria realidade.
É o mundo, e a realidade na sua contagiante neurose, que
apuram nas zonas do inacreditável o seu histórico sentido de realidade. Destrói-se
a ilusão ancestral e cria-se uma outra. O mundo presente edifica uma nova
realidade com factos que de tão reais se mostram incapazes de penetrar o nosso
mundo irreal das ideias, dos valores e até das crenças.
No plano literário e artístico saltamos
para o campo semântico. A significação está a vencer a expressividade. Uma
expressividade que com os seus sistemas de sinais marcou as origens da vida.
O irreal romanesco, ou ficcional, pode
ter a função de intensificar a realidade. Pode ter e tem. Como se vê pelos
compêndios de História. Ou até pelas notícias de telejornal. A intensificação
da realidade é o dever da ficção. Oh, quantas crónicas romanceadas sem assumir
a sua natureza romanesca, quantos ensaios romanceados, quantas biografias
romanceadas, quantas tocantes confissões íntimas romanceadas…
Milan Kundera a dizer-nos textualmente
que “o romance destina-se a explorar âmbitos da realidade (da experiência
humana) descurados por todos os outros sistemas de interpretação ou
representação, sejam filosóficos, religiosos, sociológicos, e por aí fora.
Âmbitos que só podem ser abordados pelas vias que são específicas ao romance.”
Ou Nietzsche a dizer-nos que o artista
perfeito e completo estaria sempre separado da realidade.
E porque também houve quem dissesse que a obra de arte é
aquilo que permite à verdade existir, porque se escreve para fazer surgir uma
verdade. E talvez a “história baseada num facto real” tenha pegado nesse facto
real, verídico, lhe tenha dado um tratamento de ficção, e por isso mesmo lhe
tenha melhorado a intrínseca realidade, a mais pura verdade. A ficção pode
superar a verdade, porque (Ortega y Gasset) superar é herdar e acrescentar.
A História como mãe da verdade – já lá o dizia Jorge Luis
Borges pela boca de uma personagem, Pierre Ménard. Quer dizer, a História não
como uma indagação da verdade, como uma consulta à realidade, mas a História
como origem mesma da realidade. Ou a verdade histórica deslocada daquilo que de
facto aconteceu para aquilo que julgamos ter acontecido.
Uma realidade reflectida, digamos, no romance como num
espelho. A mais real das realidades. A essência. A atmosfera.
A realidade, qualquer realidade, contém um segredo. É para
desbravar esse segredo do real que se escrevem (ainda se escrevem) romances. Que
se fazem filmes. A arte é sempre uma selecção de segredos. Esses, os que a
realidade pode encerrar. A descrição de um mero objecto pode ser o que
transmite realidade a uma realidade, a uma casa, a uma rua, a um facto, a uma
pessoa.
Porque um romance é uma luta com a realidade evocando-a,
vencendo-a, criando a outra realidade que a primitiva realidade escondia,
fazendo viver por ela aquilo não vivia na primitiva realidade.
Princípio do prazer. Também. Que se impõe, quantas vezes,
ao princípio da realidade, recusando incorporar as realidades frustrantes desse
princípio de prazer.
Ao escrever vive-se a vida irreal. Os livros são a vida
irreal, enquanto o sujeito que escreve não se dá conta de que o seu trabalho de
escrita é a sua vida real, e que a realidade exterior pode não passar de
espectáculo encenado, de festa, de mistificação da realidade mesma.
“Romance baseado num facto irreal.” Assim gosto mais.
“Filme baseado numa história inverídica.”
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