O cardeal Giuliano Della Rovere, feito papa
com o nome de Júlio II, e sob o nome de Júlio II um dos mais importantes e
famosos papas – um dos meus preferidos – entre muitas outras coisas pela
necessidade que tinha de se rodear dos maiores artistas do mundo do tempo,
sentiu a vida a fugir-lhe em 1513, em Fevereiro, no dia 21, e nesse mesmo dia
entregou a alma ao criador.
Mas o populacho de Roma não queria para
sucessor do grande Júlio II um papa que se parecesse muito com ele. Nem o povo
nem a cúria. Júlio II subira à cadeira de São Pedro já com os seus bem passados
sessenta e cinco anos, e o que o povo gostaria era de ter um príncipe jovem. Júlio
II era turbulento, era impaciente e colérico, e o povo sonhava com um papa mais
brando e mais amigo dos prazeres da vida.
Tudo indica que Deus (o Espírito Santo,
sempre ele) ouviu as orações dos romanos e lhes fez a vontade.
Extra
Omnes
Estavam vinte e quatro cardeais fechados a
sete chaves em conclave e faltava um, Giovanni de Medici.
Giovanni de Medici partira de Florença mal
se soubera do passamento de Júlio II, mas fora obrigado a viajar lentamente, em
liteira, em razão de uma doença, não sei qual, que acusava muito dolorosamente
os solavancos da carruagem.
Dizem fontes históricas que Giovanni de Medici fora cardeal aos
treze anos. E porque logo aos oito anos o menino Giovanni, filho de Lorenzo, o
Magnífico, e de Clara Orsini, um Medici portanto, teve o destino marcado como
homem da Igreja ao receber as ordens menores. Stendhal diz que à data do
conclave para eleger o sucessor de Júlio II Giovanni de Medici era apenas
diácono. Não sei. Nem sei se uma coisa contradiz a outra ou não. Mas também
pouco importa para o caso.
Giovani de Medici chega a Roma a 6 de Março.
É o último a aparecer para o conclave. Estamos em 1513. Tem trinta e nove anos.
No dia 11 desse Março está ele de serviço ao escrutínio e procede à contagem
dos votos. E talvez não fique muito confuso quando a contagem que faz dá como
resultado a sua própria elevação ao soberano pontificado. Pode pensar-se que
tudo estava combinado, que o poder de Florença tinha comprado os precisos
votos. Mas não. Diz a História que não. E ademais o poder de Florença não era
nessa altura grande. Diz a História que Giovanni de Medici é feito papa numa
eleição limpinha, limpinha, e só porque Júlio II abolira terminantemente dos
Estados papais a simonia, não permitindo que nenhum cardeal comprasse os
devidos votos para se fazer eleger papa.
- Bem, já que Deus
no-lo deu, toca-nos disfrutar do papado – disse Giovanni de Medici depois de
eleito, e depois de escolhido o seu nome de papa, Leão, o décimo da ordem.
Um certo jovem cardeal
Alfonso Petrucci, filho do tirano de Siena, foi dos que mais trabalhou para a
eleição de Giovanni, e com base no slogan
propagandístico eleitoral “Viva a Juventude!”
Giovanni de Medici é ordenado padre à
pressa. É ordenado sacerdote no dia 15 de Março e coroado papa no dia 19.
Stendhal achava pilhas de piada a este papa amável
e divertido, e eu também. É um dos meus favoritos. Pode ter sido, e foi, um
papa nocivo para os interesses político-financeiros da Igreja, mas era um homem
culto e ilustrado, um humanista. É o que me interessa.
E talvez interesse também recordar que foi o
amável Leão X que recebeu a embaixada do amável D. Manuel de Portugal, entrada
em Roma no dia 12 de Março de 1514. Era de bom
tom reiterar a obediência do rei português ao novo papa numa embaixada festiva,
como ele gostava, e concorrida de umas cem individualidades (ou figurantes?),
com Tristão da Cunha à cabeça, secretariado por Garcia de Resende. E prendas das
que o novo papa mais apreciava: pedrarias, tecidos, jóias, um cavalo persa, uma
onça (e se calhar o respectivo amigo), um elefante que fazia espectaculares habilidades.
E é claro que, passeando por Roma, dedicando
muito devotada atenção ao governo dos papas e recorrendo às fontes históricas
disponíveis em 1824, Stendhal não perde a ocasião de se alargar sobre este
período crucial da História de Roma, da História da Igreja e da História da
Europa. Por causa de Leão X, tudo na Igreja e na vida política europeia mudaria
para sempre. Leão X estará no epicentro do sismo religioso (mais tarde
político, mais tarde militar) que varreu a Europa nas primeiras décadas do séc.
XVI.
Depois da coroação em
São Pedro, o novo papa insiste em fazer-se coroar de novo em São João de
Latrão, sede do bispado de Roma – toda a gente deve saber que o papa tem dois
títulos, o de papa propriamente dito, e por inerência, o de bispo de Roma; ou
vice-versa, é capaz disso, primeiro bispo de Roma e por inerência soberano
pontífice, não tenho certeza nenhuma.
Seja como for,
Giovanni de Medici, Leão X, é coroado bispo de Roma no dia 11 de Abril de 1513.
Dia escolhido por simbolismo, pois que a 11 de Abril do ano anterior caíra
prisioneiro dos franceses em Ravenna. Está visto que Giovanni gostava das
cerimónias da memória. E para a coroação como bispo de Roma foi ainda mais
longe no memorial e escolheu montar o mesmo cavalo que montava na batalha de
Ravenna ao ser feito prisioneiro.
O espavento das
cerimónias da coroação de Leão X ficou nos anais. Indicava desde logo aos
romanos e ao pessoal vaticano o tom do reinado do novo papa.
A severidade económica de Júlio II era
menosprezada pelo novo papa em vista da pompa e do espectáculo que lhe rodearam
as festividades da coroação. Pompa e espectáculo que custaram aos cofres de São
Pedro cem mil florins, o que devia ser obra para a época, mas não mais do que
uns trocos para o florentino Giovanni de Medici, habituado na corte do pai a
viver à grande e à florentina.
A primeira coisa que
faz é conferir o arcebispado de Florença e o chapéu cardinalício ao primo,
Giulio de Medici, apesar da pouca idade dele – era filho de Giuliano,
assassinado na própria catedral de Florença durante a famosa conspiração dos
Pazzi. Ao moço Giulio nem passa então pela cabeça poder vir a ser ele um dos
próximos papas. Que foi. Clemente VII. Um fraco papa, ao que se disse.
Stendhal chama a
Giovanni “o amável filho de Lorenzo, o Magnífico”. E parece que sim. Que ele
era amável. Parece que era mesmo um tipo pachola, sem nenhumas peneiras de ser
filho de quem era, simpático, bon vivant.
E rico de família. E habituado ao mais alto luxo e à maior despreocupação de
vida. E por isso mesmo a corte de Leão X foi a mais sumptuosa do tempo, o mais
brilhante ornamento do universo, como Stendhal disse. E cá está ele mais o primo Giulio (à esquerda) retratados por Rafael.
Enquanto papa Leão X, o “pobre” Giovanni de
Medici teve famas de tudo, tanto de homossexual como de heterossexual devasso –
consta ter morrido na cama enrolado numa jovem -, e finalmente ateu. O que ele
era antes de mais era um bem disposto. E um espírito livre. E generoso. E
literato, e músico. E sendo isso tudo também podia ser aquilo de que o acusavam,
evidentemente. Um papa que não estava para se chatear muito com a vida, que
fora habituado a gozar bem a vida.
Já que
Deus nos deu o papado toca-nos disfrutá-lo.
Leão X era um artista. Segundo Stendhal,
apreciava as maravilhas da arte com a sensibilidade de um artista. Um homem
fora de série dentre os homens singulares que o acaso ia fazendo subir aos
tronos da Europa. O homem que soube gozar a vida como homem de espírito, o
que muito encolerizava os pedantes mais tristes.
Não
terá estimulado por aí além Miguel Ângelo como o fizera o seu predecessor. A
Rafael sim. Tinha Rafael a pintar os aposentos vaticanos e muito apreciava a
doçura de carácter do grande artista.
Stendhal é de parecer
que conquanto Leão X fosse homem incomparavelmente mais amável do que o grande
papa a quem sucedera, a política por ele seguida, sendo menos firme, menos
bélica e desassombrada, foi mais pérfida do que a seguida por Júlio II.
A Itália, constantemente
invadida por estrangeiros, minada por sangrentas desavenças internas, e
portanto campo de batalha dos mais ferozes antagonismos europeus, estava
arruinada, devastada. Leão X convoca o rei de França para uma conferência em
Bolonha. Era o galicanismo, a tendência separatista do catolicismo francês
(como qualquer pessoa pode ver na Internet) e o princípio de independência da
Igreja de França relativamente à Santa Sé que incomodava o papa. E aqui Leão X
obtém uma apreciável vitória diplomática, levando Francisco I a dar de mão das
liberdades da igreja galicana.
Andava a falar-se da
reforma da Igreja havia séculos. Mas até aí nem sombra de reformas. E nesse
sentido também Leão X convoca o Concílio de Latrão. Aprovam-se reformas de
fundo, sim; promulga-se uma bula, muito bem. Mas nada disso tem consequências.
Fica tudo no papel.
E virou-se Leão X para
Siena. Não lhe convinha o estado político das coisas em Siena, e por isso não
hesitou em correr de Siena a pontapés os familiares do jovem cardeal Petrucci, o
filho do senhor de Siena que tanto o tinha ajudado a vencer a eleição. É a
política.
Alfonso Petrucci fizera constar que em pleno
consistório sacara da sua adaga e se atirara ao papa para lavar a honra da
família. Sem sucesso, claro. O que o obrigava a inventar novo estratagema para
se vingar. O veneno – uma das categorias letais mais em voga, juntamente com o
punhal, na civilização itálica e na peripécia política renascentista.
Petrucci entra em conversações com o
cirurgião do papa. Fica sabedor de que Leão X padece de uma certa úlcera a que todos os
dias tem de ser aplicado um penso. A ideia é envenenar o penso, envenenar a
úlcera, e assim ir limpando lentamente o sebo ao papa. Mas o jovem cardeal
Petrucci devia ser imprudente e amador, e os serviços secretos do papa
interceptam as cartas que ele envia ao seu secretário. E lá estavam
escarrapachados os projectos mais atrozes de vingança.
Leão X pretende
enviá-lo ao juiz Carlos Alexandre… oh, perdão… à justiça eclesiástica, com base
nas cartas. Mas Petrucci achava-se fora de Roma. E por isso o papa lhe escreve
uma amabilíssima carta, a que anexa um salvo-conduto. E faz mais, dá a sua
palavra de papa ao embaixador de Espanha, um intermediário, garantindo a
Petrucci a total segurança se ele vier a Roma.
E o parvo do Petrucci acredita na palavra de
um político e na honra de um papa do séc. XVI, mete-se na sua carruagem, vem
por aí abaixo, entra em Roma, e assim que entra em Roma a carruagem é
imediatamente desviada e vai direitinha ao Castelo de Sant’Angelo, a tenebrosa
prisão dos papas.
Alfonso Petrucci é
misteriosamente estrangulado na prisão de Sant’Angelo no dia 15 de Junho de
1517. Estava Rafael a acabar os seus trabalhos nas stanze vaticanas. Andava já Martinho Lutero a tratar das suas
teses.
Sim, daí a três meses o doutor Martinho
Lutero pespega na porta de Wittenberg as suas 95 teses. Foi no dia 31 de
Outubro de 1517.
Enquanto soberano
absoluto, Leão X ficava incomodado, ficava mesmo horrorizado, se algum assunto
o obrigava a pensar noutra coisa que não fosse a vida de prazeres e de volúpias
que queria levar. Ao tomar conhecimento da contestação de Lutero, julgam que se
ralou muito? Ora, que aquilo não era mais do que uma zanga lá entre monges.
Escreve-se-lhe uma cartinha e está o caso arrumado. Que é que temos hoje para
jantar? Quem vem hoje tocar? Que poeta está contatado para o serão?
Porque não foi só
Petrucci a ser condenado aos suplícios por amável e voluptuosa vontade papal.
Outros cardeais o foram. E se alguns se safaram de boa foi à força do muito
dinheiro que tiveram de desembolsar para ajudar à festa do reinado do mais
amável e estroina dos papas.
O sacro colégio, na
época, não contava mais do que doze cardeais. Doze cardeais de calças na mão à
vista das medidas extremas de Leão X para quem ousasse fazer fora do penico,
nem que fosse cardeal. E é nisto que Leão X aproveita o pânico da cúria para
aumentar o número de cardeais, novinhos em folha, virgens ainda da intriga
palaciana. Trinta e um deles de uma vez. E muitos deles oriundos das mais
notáveis famílias romanas – uma maneira de compensar perante a opinião pública,
se se pode chamar assim, os efeitos políticos das medidas punitivas.
Mas a Santa Sé estava
de tanga. Precisava urgentemente de fundos. De maneira que todos os cardeais
recém-nomeados pagaram, e bem, ao papa o respectivo chapéu cardinalício. E os
preços de cada chapéu variavam em função dos méritos de cada uma das cabeças
que os iriam usar. Quanto menos mérito, mais caro saía o chapéu.
A Santa Sé estava de
tanga e era imperioso avançar com a construção da Basílica de São Pedro. Mas
era preciso muito dinheiro. Dinheiro que não havia nos cofres. E como não havia
dinheiro nos cofres vaticanos, Leão X estava disposto a vender a salvação da
alma a quem a pudesse pagar através da concessão de indulgências plenas sobre
os pecados.
A dívida soberana dos Estados Pontifícios
disparava a números incomportáveis. Em dois anos apenas Leão X dissipara toda a
considerável herança do poupadíssimo Júlio II - que anualmente gastava 48.000
ducados, enquanto o menino Giovanni, o Medici, o papa Leão X, em dois anos
estafara o dobro, fazendo orçar a quatro milhões e meio de ducados a despesa do
seu reinado.
Alguém escreveu: Leão X consumiu três pontificados num só: o tesouro
de Júlio II, os rendimentos do seu próprio reinado e dos que lhe haveriam de
suceder.
Leão X sobe ao trono
de Pedro no momento mais florescente da cultura renascentista. Homens de génio
em plena carreira não faltavam nas itálias. Miguel Angelo, Rafael. Leonardo,
Correggio, Tiziano, Andrea del Sarto, Ariosto, Aretino, Maquiavel, Pico della
Mirandola, e mais uma quantidade considerável de poetas, desconhecidos já no
tempo de Stendhal – e ainda mais desconhecidos hoje -, mas que na época de Leão
X eram altamente apreciados.
Cada refeição no
palácio papal era um acontecimento, abrilhantado por músicos, poetas, bobos.
Leão X nada tinha da enjoativa afectação das cabeças coroadas do tempo. Até se
divertia e dizia piadas sobre a pomposa vaidade de quantos lhe faziam parte da
corte. E pregava-lhes partidas e punha-os a ridículo. Até poderia conferir
dignidades inesperadas (quiméricas, segundo Stendhal) ao mais néscio dos seus
cortesãos que lhas pedisse, e isso como prémio pelo divertimento que as patetices
do homem fornecia à corte pontifícia. E toda a Roma, gozadora e trocista se
encantava com o espírito do seu príncipe.
O palácio do papa
estava transformado num teatro. Eram festas a toda a hora. Iam à cena peças
teatrais de moralidade no mínimo duvidosa. E o papa nada sabia de economias
quando era caso de convidar os grandes artistas para abrilhantar a corte
vaticana. Em Roma tudo era alegria, divertimento. Leão X não queria como
companhia à mesa quem não soubesse rir. Nada de carantonhas sérias, nada de
olhares graves. Queria riso, piadas, anedotas. Se uma caçada lhe tinha corrido
excepcionalmente bem, logo o papa cumulava de benfeitorias e benesses os que o
tinham acompanhado nesse dia.
Roma era também um centro literário de
ressonância mundial. Leão X, humanista, importava os mais preciosos
manuscritos, chegando a ordenar, e a pagar, uma edição crítica (a primeira?) da
obra de Dante.
Com respeito aos costumes do papa, bom, diz
Stendhal que eles não eram nem mais sóbrios nem mais escandalosos do que os de
qualquer outro grande senhor do seu tempo. E do maquiavelismo do pontificado de
Leão X ninguém em Roma se apercebia tanto como isso.
Entretanto, Carlos I de Espanha viera a
Aix-La-Chapelle para ser coroado sacro romano-germânico imperador contra o rei Francisco
I de França, e à custa de uma fortuna colossal angariada junto da família de
banqueiros Fugger, donos das multinacionais do comércio europeu de então. Fortuna
essa que permitiu a Carlos comprar os votos necessários para os quais o rei
francês não arranjou créditos. Foi no dia 23 de Outubro de 1520.
Mas alguém insuspeito e altamente colocado
no mundo político europeu sempre conspirara contra as pretensões de Carlos. Esse
alguém era o fútil papa Leão X. Saíram-lhe os cálculos furados, pois com a magna
questão da Reforma em plena fervura o que mais havia na Alemanha eram ânimos
anti-Roma.
Um alemão, Rudolph Hello, capitão da guarda
do também amável Alfonso D’Este, duque de Ferrara, recebeu dois mil ducados, e
por eles jurou matar o duque seu senhor e abrir as portas da cidade de Ferrara
às tropas papais. E as tropas papais chegam às portas de Ferrara, e ali ficam
um tempo a secar, antes de virem a saber que o alemão capitão da guarda afinal
havia contado toda a trama ao duque Alfonso, seu senhor. E tudo isto acontece
em 1820, ano da morte de Rafael.
Leão X verteu lágrimas de sangue na morte do
grande artista, dizendo publicamente que a corte pontifícia havia perdido o seu
mais esplêndido ornamento.
A crise orçamental é
que não se compadecia com artistas e ornamentos e tocara pontos absolutamente
inusitados. Benesses, indulgências, jubileus, impostos eclesiásticos,
transacções monetárias. Os pecados era preciso pagá-los por bom dinheiro e
assim limpar a folha de assentos de cada um lá no céu. Tudo era negócio.
E meteu-se o negócio
alemão.
Leão X vendia ao arcebispo de Magdeburg, Alberto de Brandenburg, dez
mil ducados de indulgências e benefícios. A prazo, Alberto teria de reembolsar
tudo isso ao papa, mas o papa autorizava-o a negociar indulgências plenas a
quem tivesse de seu lá nas alemanhas e estivesse disposto a entrar com algum para
a construção da inefável Basílica de São Pedro. Se o Alberto conseguisse bons
negócios, o papa deixava-lhe metade dos lucros. E assim Alberto contrata Johann
Tetzel, o pregador dominicano que passa a ser o grande propagandista das
indulgências que garantiam o paraíso. E é ele o homem que realmente faz Lutero
ir aos arames e ver-se obrigado a tomar uma atitude – eventualmente instigado
pelos príncipes a quem o papa, com a história das indulgências, também estava a
querer ir ao bolso.
Leão X, em toda a sua
ligeireza de alma, vai ser, inadvertidamente, claro está, o motivo condutor da
maior transformação da História da Europa (que era o mundo de então,
evidentemente, porque o outro era ainda mal conhecido). A Reforma. Mas está bem
de ver que não é o menino Giovanni de Medici, ou Leão X, que fica como
protagonista desse lance da História. É Lutero. E os príncipes germânicos, que
também devem ter metido para isso algum prego e alguma estopa.
Lutero contesta violentamente a venda de
indulgências para acudir aos luxos vaticanos do papa Leão X.
Leão X até pode ter achado piada ao
descaramento do irmão doutor Lutero e escreve-lhe uma carta registada com aviso
de recepção, convidando-o amavelmente a retractar-se das enormidades que
publicara. Lutero recebe a carta e ali mesmo, em público, à porta da estação
dos correios de Wittenberg, rasga a missiva papal e pisa-a a pés.
É excomungado. Excomunhão que precisa ser
homologada pelas autoridades civis. O que leva tempo. E enquanto o pau vai e
vem instala-se a polémica, que da religião logo se transfere para o campo
político.
No entretanto, Lutero alarga as suas
objurgatórias a Roma. Nada de hierarquias clericais: sacerdócio universal.
Fidelidade às Escrituras e rejeição da tradição romana de interpretação
teológica. Nada de celibato para os padres. Acabe-se com a teologia dos sacramentos.
Estipule-se que a salvação da alma se opera somente pela fé e nunca pelas
obras. Nada de chefe terreno para a Igreja – a letra das Escrituras chega,
dispensa qualquer outra autoridade. Nenhum poder eclesiástico pode suplantar um
poder laico…
E põe-se ao trabalho de traduzir a Bíblia
para alemão.
Carlos V, imperador, vê o caso mal parado e
manda chamar Lutero. Que venha cá e depressinha que eu estou-lhe cá com uma sede
que vocês nem imaginam...
Lutero vai, não se intimida na presença do
imperador e fica na sua, não, não e não. E chama ao papa de Anti-Cristo. É
banido do império. Toma que já almoçaste.
Para além do caso escabroso das
indulgências, é preciso ver que a Igreja de Roma estava atascada até aos
cabelos (se os tivesse) em problemas e irregularidades a que alguém mais dia
menos dia teria de deitar mão.
Sim, pois, teria de ser o Sumo Pontífice a
fazê-lo, mas a verdade é que nenhum se chegou à frente para pôr cobro a uma
serie de malfeitorias. Por exemplo, à adoração aos santos e às relíquias, que
se tornara doentia. Por exemplo, às exaustivas e repetitivas peregrinações e
procissões por tudo e por nada. Por exemplo, à obsessão colectiva pelos
milagres, efeito do crescente pavor popular do demónio e dos infernos. Por
exemplo, os abusos da excomunhão, a simonia e o nepotismo em barda. Por
exemplo, a dependência da Igreja relativamente à nobreza ainda de feição
feudal. Por exemplo, o baixo clero a viver na miséria mais negra, enquanto o
alto clero dissipava riquezas em luxos e festanças. Por exemplo, e de bradar
aos céus, a vida imoral de padres, monges e freiras que chegavam a fazer de
alguns conventos dos Estados Pontifícios degeneradas casas de passe.
Historiadores também dizem que aquele era um
tempo de maus cardeais. Maus cardeais que faziam eleger maus papas. Maus papas
que depois de eleitos, em contrapartida, nomeavam ainda piores cardeais. E ai
do papa que quisesse pôr cobro à situação…
Os príncipes alemães dividem-se. Há os que
se mantêm fiéis ao papa; há os que tomam o partido de Lutero. A rebelião
estende-se à Suiça, que aproveita politicamente o diferendo para se
autonomizar, e à Escandinávia. Não tarda aí a Inglaterra, a Holanda, parte da
França. É o protestantismo. Vai começar o período obscurantista e negro da
Contra-Reforma.
A 24 de Novembro de 1521, os espanhóis
conquistam Milão. O papa recebe a notícia quando anda a passeio em Magliana. E
fica radiante. O que ele mais queria era a Itália fora das unhas dos bárbaros
(os franceses aliados aos otomanos, talvez). Manda disparar o canhão de
Sant’Angelo por todo o dia em comemoração do acontecimento. Quer reunir o
consistório e comunicar oficialmente aos cardeais a grande notícia, assim como
ordenar missas de acção de graças em todas as igrejas dos Estados papais. Para
isso dirige-se ao palácio e recolhe aos aposentos privados. Manda chamar o
cirurgião. Queixa-se de um ligeiro mal-estar. Recebe notícias de Piacenza e de
Parma, ambas também tomadas pelos espanhóis. O mal-estar que a princípio não
prenunciava nada de cuidado redobra de intensidade e a dor torna-se
insuportável. Nasce o dia 1 de Dezembro de 1521 e o amável papa Leão X solta o
seu último e esplêndido suspiro.
Mas cuidado com o escanção do papa, o
Malaspina.
Malaspina apresenta um copo de tintol a Sua
Santidade. Sua Santidade cheira, bochecha, saboreia, bebe. E vira-se para o
Malaspina pior que estragado, ouve lá ó Malaspina onde é que tu foste
desencantar esta merda desta zurrapa tão amarga?
Stendhal não sabe a resposta do Malaspina. E
eu também não. Mas sei que isto se passou ao jantar do dia 30 de Novembro de
1521. Pois. E sei que o papa morreu no dia seguinte.
E também se sabe que ainda mal o dia 2 de
Dezembro era nado e um vulto com uma trouxa às costas e uns cães pela trela se
safava pelas traseiras do palácio pontifício.
Os guardas admiram-se. Que é lá isso? Que
despautério era aquele de um humilde servidor do papa se dar ao luxo do
divertimento da caça quando o cadáver do seu senhor ainda nem tinha esfriado? E
não fazem mais nada, cortam-lhe o caminho, prendem-no. Mas, oh, espanto, é o
cardeal Giulio de Medici, primo do papa e pelo papa feito cardeal às três
pancadas, quem manda soltar o Malaspina. Diz-se que por medo do falatório de
envenenamento que pudesse comprometer algum príncipe e fizesse desse príncipe
mais um inimigo jurado da família Medici, que já os tinha que bastasse.
Stendhal lamenta Leão X. A maior parte dos
papas tinham esticado o pernil por volta dos setenta anos, mas logo havia de
calhar ao amável humanista e mecenas Leão X o azar de bater as botas aos
quarenta e sete. A que ponto o esplendor das artes italianas teria chegado se
Leão X tivesse reinado por mais uns vinte aninhos…
A verdade é que o também amável Alfonso
D’Este estava a ver a vida dele andar para trás no trono da sua Ferrara cercada
pelas tropas papais, e preparado para vender cara essa vida, quando lhe chega a
nova da morte de Leão X. Teria ele alguma culpa naquele cartório? Não se soube.
Da fama não se livrou. E a alegria do amável Alfonso de Ferrara foi tanta que
mandou cunhar moeda comemorativa, gravando-lhe uma ovelha arrancada pelo pastor
às garras de um leão e apondo-lhe a inscrição bíblica: De Manu Leonis.
A vida é que não estava para letras e artes
naquela fase da História de Itália.
As qualidades do cardeal Giulio de Medici
eram gabadas por toda a gente enquanto sábio e principal ministro de seu primo
Giovanni. Podia ser ele o sucessor. Giulio tinha porém inimigos de peso no
colégio cardinalício. O primeiro deles era o cardeal Pompeo, da poderosa
família romana dos Colonna.
Extra
Omnes!
Abre o conclave a 26 de Dezembro. E se os
conclaves que haviam consagrado Alexandre VI, Júlio II e Leão X tinham sido
relativamente breves, o que se preparava para eleger o sucessor de Leão X
estava complicado. E demorado. E os cardeais, à época pouco habituados a
incómodos, lá se enfadavam de morte com aquela prisão a que eram obrigados
pelos sucessivos e irresolutos escrutínios.
Por pesada graçola, um cardeal atira para o ar
um nome. O nome do flamengo Adrian Florent, de cuja presença em Itália nunca
ninguém dera fé. Sabia-se que era filho de um cervejeiro e que subira na vida a
pulso. Que era um erudito da Universidade de Lovaina. Que tinha sido perceptor
do imperador Carlos V. Que tinha sido regente em Espanha e atraído a si as
cóleras populares…
Olha, boa, boa ideia! – dizem os cardeais
mais impacientes. O bárbaro, o flamengo. Não está mal. O que é preciso é acabar
com esta seca e irmos à nossa vida. Talvez seja mesmo ele o homem indicado. Da
maneira que estão as coisas por aqui…
Arrematado. Sai esse e não se fala mas
nisso. Não sabe italiano? Nunca esteve em Itália em dias de vida? E depois?
E sai mesmo Adriano. O sexto da ordem. Que
chega a Roma, dá de caras com a quantidade de esculturas e maravilhosas estátuas
antigas que tinham custado os olhos da cara ao orçamento papal malbaratado por
Leão X, e grita de horror: sunt idola
anticorum! – porra, isto são ídolos pagãos!, onde é que eu me vim meter…
E por aqui se compreende o que iria ser o
pontificado do holandês Adriano VI. Que, vá lá, foi curto.
Era um homem sério, austero. Os romanos é
que não se podiam conformar ao ver no cadeirão do amável Leão X um flamengo, um
bárbaro que não dava uma para a caixa em italiano, e que ainda por cima
detestava a poesia e as belas-artes.
Quando Adriano VI deita mãos às finanças
vaticanas pede para o tirarem daquele filme, sabendo que ainda não havia FMI
que lhe valesse. Fica varado com a dívida soberana que lhe tinha deixado José
Sócrates… ai, perdão… que Leão X lhe tinha deixado. Mas recompõe-se do choque e
jura endireitar o orçamento. Na base da austeridade, já se vê. E quando põe em
marcha essa austeridade é um ver-se-te-avias, corta nos ordenados, nos subsídios, nas pensões, nas
reformas. A cúria, habituada às larguezas de Leão X, chama-lhe no mínimo
mesquinho. E Adriano VI também diz mal à sorte dele quando começa a inteirar-se
dos costumes e das corrupções que por ali campeavam. Percebe que não tem vida
para aquilo. De caminho, manda correr com os mouros e os judeus de Espanha. E
deixa-se morrer no dia 14 de Setembro de 1523.
Os muitos mouros e judeus corridos de
Espanha por ordem do papa Adriano VI vieram desaguar a Roma e com eles
trouxeram riquezas sem fim. Adriano VI, papa, que ainda parecia estar vivo,
ficou para morrer ao dar-se conta do caso e imediatamente se preparou para
perseguir mouros e judeus também em Roma. Tê-lo-ia feito sem dó nem piedade… se
não tivesse morrido.
Os romanos comemoram em grande festa a morte
de Adriano VI. Uma alegria que tocou os cúmulos quando o médico do papa,
Giovanni Antracino, abre um dia a porta de casa e a vê toda enguirlandada de
flores frescas. E com uma inscrição: Do
Senado e do povo de Roma ao libertador da pátria.
Extra
Omnes.
No primeiro dia de Outubro de 1523, os
cardeais estão outra vez trancados a sete chaves para eleger o sucessor de
Adriano VI.
Giulio de Medici continua a ser um dos
favoritos à eleição, e continua a ter como inimigo, dele e da família Medici, o
seu camarada de dignidade e rival de pretensões, Pompeo Colonna.
Os conflitos político-militares agravam-se
pela Europa e o próximo papa terá de se haver com berbicachos muito
complicados.
Para ser papa, Giulio de Medici precisava de
vinte e quatro votos (dois terços) e o colégio não lhe dava mais do que vinte e
um. Era o Colonna a impedir-lhe a eleição. Giulio tentaria comprar votos,
tentaria, mas teria de o fazer muito pela surra para não cair no crime da
simonia. Era preciso contornar a dificuldade legal e os escritórios de
advogados avençados por Giulio de Medici devem ter feito serões. E, como sempre
acontece quando a coisa mete advogados (é para isso que eles servem), lá se
conseguiu inventar um truque.
Vai uma apostinha, vai? Exacto. Recorrem às
apostas. Parece que apostar era entretém muito e voga em 1523. Os partidários
de Giulio propõem a cada um dos adversários apostar doze mil ducados contra
apenas cem em como Giulio ainda não seria eleito no próximo escrutínio. E,
claro, para ganharem tão suculenta aposta os cardeais adversos até votariam em
Giulio, ganhariam a aposta, Giulio seria eleito papa e escolheria o nome de
Clemente, o sétimo – nome que simbolizaria a sua vontade de perdão a todos os
inimigos que tinha.
Mas a coisa não deve ter sido assim tão
simples.
Um fedor horrível, infernal, sabe-se lá
vindo de onde, e porquê (falou-se também aqui no poder do Espírito Santo),
começou a empestar as câmaras dos cardeais e o ambiente ficou intolerável.
Alguns caem doentes. Os mais velhos sentem chegada a sua hora. Querem
despachar-se. Propõem o cardeal Orsini como vencedor. Pompeo Colonna, com medo
dos Orsini, também seus inimigos de séculos, vai bater ao postigo de Giulio de
Medici e propõe fazer dele papa. Mas alto! Calma. Na condição de o Medici lhe
garantir que, uma vez entronizado, lhe daria o cargo de vice-chanceler da
Igreja e o deixaria ocupar o palácio onde ele mesmo, Giulio, morava. Palavra de
honra? Palavra de honra. E nessa mesma noite Giulio de Medici é adorado como
papa pela maioria dos cardeais.
É coroado a 26 de Novembro de 1523, estão
Francisco I de França e Carlos V em guerra.
Carlos V declarara-se amigo dos Medici e
apoiara a candidatura de Giulio. Passado um ano, Clemente VII, o Giulio, assina
um tratado com a França de Francisco I e Carlos V tira-lhe o tapete. Claro. Pompeo
Colonna e excelentíssima família reacendem os ódios aos Medici e declaram-se
amicíssimos e muito lá de casa do imperador. E contratam mercenários alemães e
espanhóis, arrebanham os aliados italianos de Carlos V, e não fazem mais nada:
ocupam Roma. É a confusão geral. Vai começar o famoso saque de Roma.
Março de 1527. Vinte e
cinco mil homens, as tropas luteranas, comandadas (teoricamente) por Carlos de
Bourbon amotinam-se, estão sem salários, querem dinheiro, entram em Roma,
exigem ao papa 300.000 ducados, se é que ele quer evitar que a cidade seja
mesmo saqueada. O papa não vai daí abaixo e os amotinados assaltam a cidade. O
papa foge a sete pés e refugia-se no Castelo de Sant’Angelo. E por lá fica.
Meses. Ou anos, não sei. A pedir batatinhas aos seus aliados de outros tempos,
e os aliados nem uma nem duas.
Em Roma eram as
pilhagens, os incêndios, os assassínios. O caos. Uma catástrofe que se dizia
infligida por Deus (e pelo Espírito Santo, tinha que ser) à “nova Babilónia”.
O que daria jeito ao
papa na ocasião era esquecer agravos passados, intrigas e más palavras, e ficar
com o imperador do lado dele. E pelo imperador o papa se decidiu, fazendo
entrar no negócio a cagança de uma coroação imperial de Carlos V abençoada pelo
próprio papa, em Bolonha. E, tutelada pelo imperador, suas tropas, sua dura
autocracia e seu fundamentalismo político-religioso contra-reformista, segue-se
para a Itália um período tenebroso de obscurantismo.
Stendhal diz que
poucos príncipes haviam chegado a um trono com mais alta reputação que a de
Giulio de Medici. Por valor militar na juventude. Por ter sido bom ministro de
seu primo Leão X. Pelas qualidades de trabalho. E pela pouca queda para o
desbarato orçamental que havia marcado o reinado do primo. E Roma, que recebera
Clemente VII em júbilos, passados cinco anos via o seu soberano reduzido à
impotência e à miséria, em razão do saque e da pilhagem vergonhosa sofrida pela
Cidade Eterna e que ele não soubera evitar.
Stendhal lá achava que
Clemente VII era sem dúvida homem de muito espírito, todavia com certa falta de
carácter. E Stendhal tinha por experiência de francês contemporâneo da grande
revolução que em circunstâncias políticas complexas o espírito pode ser
qualidade desprezível, quando não ridícula, e que, pelo contrário, é a força de
carácter que em tais casos deve presidir às decisões políticas.
Mas também teve azar,
Clemente VII, acho eu. Azar na circunstância histórico-política que lhe coube.
A começar pelas consequências da reforma luterana, com repercussões formidáveis
ainda no tempo dele na Inglaterra de Henrique VIII, separada de Roma em 1532.
O infeliz Clemente VII
morre em Setembro de 1534 desprezado por toda a Itália.
Mesmo assim, ainda
durante o reinado de Clemente VII Miguel Angelo continuou a pintar na Capela
Sistina.
Vinha aí o Concílio de
Trento.
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