Quando
aqui cheguei, em 1811, o que mais me tocou foi ouvir o canto dos pássaros no
Coliseu – escreveu
Stendhal naquele verão escaldante de 1824 em que empreende outra das suas
viagens-peregrinação a Roma.
Peregrinação, bem entendido, não na
acepção religiosa e sim num sentido cultural e artístico. Ou com a
particularidade de o religioso e o cultural e artístico se fundirem numa
categoria humanística única na Roma de 1824, como, creio eu, ainda na Roma destes
nossos dias.
Mil anos de poder temporal do papa
construíram e embelezaram até ao paroxismo a cidade, e sempre numa perspectiva
de comunicação com o divino, em louvor, em acção de graças, em imploração de
bênçãos, interpelando a transcendência pela violência maravilhosa e bárbara das
formas artísticas e arquitectónicas.
Indo ao que interessa, quase se poderia
dizer, no quadro da consciência religiosa de cada tempo, que a Roma de 1824,
peregrinada pelo empedernido viajante Stendhal, era ainda o reino de Deus sobre
a terra. Claro que todos sabemos que o reino de Deus não é deste mundo, e
naqueles literários passeios por Roma em 1824 Stendhal sentia-se mais própria e
efectivamente a viver no reino dos padres do que no reino de Deus. Um pouco
diferente.
Um reino de Roma que era a evidência
gritante de que o reino de Deus, possível de se materializar sobre a terra, não
se situaria certamente em Roma, e muito menos poderia ser administrado por
padres. Em Roma, em 1824, ainda, vivia-se somente uma teocracia.
E
aí está. Promenades Dans Rome é um
livro imenso, seiscentas páginas (em edição de bolso e fora as notas, os
comentários e os índices), que Stendhal dedica como guia exaustivo ao turista
francês de 1824. Turista bem endinheirado, note-se, a pontos de poder
aboletar-se num hotel da cidade por meses, único modo de correr os itinerários
que Stendhal lhe recomenda.
É claro que o escopo do autor transcende
a mera itinerância turística e dedica-se largamente, espírito moderno e
cartesiano, ao que realmente lhe interessava desmascarar na vida romana, o
obscurantismo beato, o poder temporal do papa, isso mesmo, a teocracia.
Dizendo-se milanês, Stendhal sente-se
obrigado a regular as suas dívidas emocionais e literárias para com a Itália e
as Promenades Dans Rome (depois do Rome, Naples et Florence) provam que
além de milanês ele se deveria ter considerado igualmente romano. Milão era a
cidade do coração, era a cidade da sua revelação italiana e musical. E da sua
revelação amorosa, também. E se Milão é a vida de Stendhal, Roma é a obra. Roma
inspirou-lhe e alimentou-lhe parte importante da obra romanesca – Cenci,
Alessandro Farnese, Fabrice del Dongo (milanês este, sim, mas também romano e
parmesão), Vanina Vanini, Abadessa de Castro.
Roma
é um Estado despótico, mas os cargos e os empregos são vitalícios e ninguém
destitui ou despede ninguém. Sob Leão XII, o carbonarismo e Metternich mudaram
as coisas porque o terror invadia Ravenna e Forli. Hoje, os homens mais
brilhantes ou estão presos ou fugiram. Florença é o oásis onde os perseguidos
procuram asilo. Os que não têm dinheiro vão viver para a Córsega.
Em todo o caso. Promenades Dans Rome é um livro que, pelo menos a mim,
indefectível adepto da Cidade Eterna, faz apetecer mais uma visita. Mas desta
vez uma visita da qual haverá a excluir (como se fosse possível) toda a
contemporaneidade. Uma visita de cultura, sensibilidade, e sobretudo imaginação
à Roma teocrática de 1824.
Pois em 1824 Roma ainda temia as ironias
de Voltaire quanto a religião, e mais exactamente quanto ao romano catolicismo.
E assim porque a vida nos Estados Pontifícios era a prova da razão de Voltaire.
Em Roma o francês normal daquele tempo, homem desejavelmente moderno, racional,
liberal, progressista, sofria o choque do radical oposto, do mundo retrógrado,
da sociedade caranguejo (Stendhal dixit),
que caminhava para trás no tempo, no pensar e nos costumes. Um universo absurdo
e moribundo.
Roma
teme mais do que qualquer outra coisa o espírito crítico, l’esprit d’examen. Foi isso o que levou a Europa ao protestantismo. Assim como a arte de
pensar é desencorajada, e se necessário perseguida.
Todo o cidadão chegado dos nortes
europeus era posto sob a vigilância dos esbirros papais. Tudo o que fosse
progresso, a marcha do tempo e do século era perseguido, e a palavra “economia”
era censurada como uma impiedade impronunciável.
Os Estados Pontifícios eram um regime
despótico, muito bem, todavia de um despotismo deslocado das finalidades
costumeiras aos despotismos profanos, e assim por ter como escopo primeiro (e
único) a salvação das almas, e por atentar a cada acto da vida privada do
cidadão que a essa salvação pudessem conduzir ou dela desviar. Todo o poder do
Estado se orientava para a fé, para a pureza dos costumes, para as práticas
litúrgicas. Só a Vida Eterna interessava aos poderes constituídos. E nem os
poderes temporais do papa eram para ser tomados muito a peito.
Stendhal vai ao barbeiro. Conversa sobre
o politicamente absurdo do governo do Sumo Pontífice. E o barbeiro, sem temer
os espiões, resume ideologicamente as arbitrariedades: “che volete, signore,
siamo sotto i preti” – que é que o senhor
quer, vivemos dominados pelos padres.
O pontifical despotismo encarava o
Estado e respectivo funcionamento como uma espécie de superstição. A tenebrosa
noite parisiense de São Bartolomeu ainda era exaltada em Roma. Roma era a
imensa sacristia secular e inquisitorial onde aconteciam os rituais, os
milagres, as relíquias, o dogmatismo mais chão, a intolerância mais severa e
militante – na opinião de Stendhal, tudo isso manipulado pelo “celerado poder
dos jesuítas”.
O
povo dos campos romanos está de tal modo imbuído de catolicismo que para ele
nada na natureza acontece sem ser por milagre. Será sempre de fazer punir o
vizinho que não depositou flores aos pés da cruz que está na esquina da sua
casa. Uma inundação do Tibre é sempre tomada como uma advertência do Altíssimo
no sentido de levar ao bom caminho quem dele na cidade se afastou. Se uma moça
morre de febres em Agosto é porque sofreu o castigo das suas leviandades. E
tudo isto o cura tem obrigação de pregar aos seus paroquianos.
Toda a superstição camponesa, tem graça,
acabava comunicada às classes altas. E por quem? Pela criadagem.
Um
jovem marchesino romano de dezasseis anos é o mas tímido dos
homens. Não ousa comunicar a não ser com os criados de casa. Stendhal
acha-o até mais imbecil do que o filho do sapateiro da esquina.
Teocracia, em 1824, nos Estados papais,
era o poder de uma religião forçada a ser uma política. Equivalia a dizer que
era a hipocrisia institucional a governar uma fé religiosa destinada quase
unicamente às camadas populares.
O
soberano deste país não foi príncipe na sua juventude. Durante os primeiros
cinquenta anos de vida fez a corte a personagens mais poderosas que ele. No
geral, só chega ao trono e aos negócios de Estado na idade em que noutros
estados o príncipe os deixa.
Está visto que Stendhal era um
republicano convicto. E como republicano tudo o que via nas suas promenades romanas lhe feria a
susceptibilidade política. Pensava ele que o poder era uma pedagogia e que
aqueles Estados Pontifícios praticavam o absoluto contrário do que entendia
dever ser ensinado aos povos em matéria de sociabilidade e civismo. E recordava
os tempos revolucionários do Terror, quando padre e cidadão eram duas entidades
visceralmente inimigas.
A Roma teocrática era uma reserva
reacionária. Uma reserva de arcaísmo e de forças ferozmente opostas à razão
formal, à mentalidade moderna e economicista. Roma incorpora princípios de tristeza fatais para o Belo. Roma representa
uma ética que corta as vazas ao prazer. A razão que atrofia a sensibilidade
estética prefere o feio. A tristeza é grosseira, é realista, é vulgar,
deteriora o real e o desejo.
Um valor que já nesta época se perfilava
como constituinte de uma mentalidade moderna era o útil, a utilidade, tudo o
que suportava uma empresa, uma economia política, uma segurança, um bem-estar,
um Estado de Direito, uma actividade social. E era tudo o que, por ignorância,
uma teocracia rejeitava. Era tudo o que uma teocracia temia. A utilidade
significava a razão prática, que de facto antagonizava o princípio e o poder de
um soberano ascético.
Stendhal palpitava que o materialismo
desgostasse muito os romanos. O espírito itálico via-se e desejava-se com a
abstracção que não lhe inspirasse os valores mais caros, o medo, o amor. Ou um
Deus como fonte de vida e destino de morte. E o que fascinava Stendhal (não sei
se por exercício de ironia) era o homem prático, seco, claro, sem ilusões, o
cavaleiro do futuro: o banqueiro, o titular do puro pensamento. O banqueiro que
distingue com meridiana clareza o que É do que não É. O banqueiro que sabe
identificar o vazio, o que submete a realidade às categorias abstractas do
desencanto iconoclasta. O banqueiro que rasga a unidade entre o sentido e o
inteligível, entre o visível e o invisível, o agradável e o verdadeiro, o
sagrado e o profano.
Um
cortesão do papa acalenta permanentemente a esperança de substituir o seu
chefe, coisa que não acontece noutras cortes. Um cortesão em Roma não procura
apenas agradar ao papa, ele pretende do papa a bênção. Por uma indulgência in articulo mortis o príncipe de Roma pode conferir a felicidade eterna ao seu cortesão.
A teocracia e o seu poder aparentemente
esmagador pouco ou nada exigia dos súbditos. Que frequentassem a missa, sim,
claro. Que se confessassem. Que pagassem os impostos. Mas também pouco ou nada
oferecia – para além da promessa da salvação eterna no outro mundo.
A teocracia tinha certa dificuldade em
se afirmar como um poder regular de Estado. Distribuía a justiça, os cargos, as
funções e os privilégios ao acaso das protecções de cada impetrante, dos
favores em dívida, da sorte, dos caprichos.
O papa só tem um ministro. O Segretario di Stato. Equivale a um 1º
ministro de um Estado profano. Nos últimos cento e vinte e nove anos
(reportados à data da visita de Stendhal, obviamente) apenas um Secretário de
Estado se provou tipo desonesto ou incompetente. O cardeal Coscia, no reinado
de Bento XIII. Valeu-lhe ir dar com os ossos no Castelo de Sant’Angelo e por lá
ficar nove anos.
Nada
acontece naturalmente, simplesmente, razoavelmente – escrevia Stendhal a um amigo. Por aqui, Rabelais seria chamado a deliberar
sobre cada coisa e a ordenar sobre cada problema tudo o que de mais cómico lhe
viesse à cabeça.
Diz um comentador stendhaliano que o
inimigo dos padres, o apologista de um Estado moderno e laico, Monsieur Henry
Beyle, por paradoxal que seja, acabará por louvar na teocracia romana (e na
Igreja no seu todo, por decorrência) o único lugar do mundo onde seria possível
tomar conhecimento do verdadeiro e essencial significado da política – il maneggio dell’uomo (a manipulação dos
homens).
O génio dos papas residiria no facto de
terem dominado a Europa, primeiro pela astúcia, e a seguir pela arte. Um poder
espiritual que menosprezou a violência e a guerra e construiu a superioridade
de Itália. Era algo de original. E daí a distinção que Stendhal fazia ao charme
pessoal dos padres, os grandes virtuosos da arte da política e da diplomacia,
os únicos capazes de conduzir os homens (il
maneggio dell’uomo) sem ser pela força. Todo o homem da Igreja era
considerado por Stendhal como ser naturalmente político, um homem que aprendera
a controlar o Eu, a distanciar-se do Eu, a apagar o Eu - por alguma razão, a
meu ver, os Estados vaticanos adquirem um alto lugar na História da diplomacia
europeia.
Passeando por Roma naquele verão de
1824, Stendhal passeia também por alguns dos dilemas filosóficos que
inquietavam a mente racional e burguesa. “O coração é um órgão religioso”,
tinha dito Novalis. E Stendhal pensava no desejo, na paixão, na imaginação, no
sonho, enfim, em tudo o que não pudesse conceber a fronteira do finito, mas que
a ultrapassasse como uma superstição, a fé.
O que é moderno? O que é artístico?
Dilemas para Stendhal. O espírito crítico declara guerra aberta ao poder
papista e à crença religiosa, e constitui o princípio de um governo
representativo.
Num momento de pausa da peregrinação
romana, no Pincio, debruçado sobre a Piazza del Popolo, Stendhal evoca os
grandes papas do passado, príncipes em toda a extensão do conceito, mecenas,
estadistas, estetas, déspotas esclarecidíssimos, criadores, esses que pelo seu
ministério pretendiam esculpir a História do Homem em cada monumento romano que
pagavam.
E uma virtude romana: a ferocidade: a
virtude sempre muito resolutamente expressa de um povo grande.
Um povo romântico. Um povo orgânico.
Sociedade a que Stendhal chamava de autónoma, afeiçoada pelo obscuro trabalho
da natureza e da História, de todo em todo estranho aos princípios da
democracia moderna (de 1824). Um povo que com tais particularidades escapava à
desvitalização e ao uniformismo que começavam a afectar a alta sociedade.
O folclore gera os costumes. Opinião do
nosso viajante. E o folclore de Roma, para lá dos cantares, dos dançares e das
lendas, gerava uma cultura de rosário e navalha. Devoção e assassínio. E honra.
E não a honra civilizada dos néscios vaidosos, antes uma honra primitiva,
primordial, o absoluto orgulho que se desenvolve na colectividade dos costumes.
Na Roma papal vivia-se e morria-se mais
do que em qualquer outro lugar.
Cidade sublime. Cidade trágica. Cidade
que em tudo recusava a modernidade nascente.
Na Roma papal coexistiam vários
aspectos. Ou duas romas numa só. A Roma popular, o crime, o caos dos instintos
assassinos, a vitalidade anárquica; a Roma artística, piedosa e crente, que era
a mesma Roma que a do crime, dos assaltos, do assassínio nos becos escusos.
Stendhal não excluía nem privilegiava nenhuma delas, porque as duas eram uma e
a mesma.
A Roma teocrática era a cidade
letárgica, indolente, que poupava as forças para o que Stendhal chamava de
“espasmos criminosos”, protagonizados pelos virtuosi
do veneno e do punhal, os salteadores de estrada, as seitas organizadas de
bandidos da periferia, ou os bombistas da Carbonária.
A paradoxal benfeitoria dos papas enquanto
chefes de Estado foi a criação do sublime estético e também da outra
sublimidade que foi o povo de Roma. É à opressão que o romano deve o seu vigor.
A vida não o consome, como faz aos habitantes das cidades modernas, de vidas
extintas, rarefeitas pela magnificência de uma civilização. É esse um dos
paradoxos que o espírito já de si paradoxal e politicamente incorrecto de
Stendhal descobre.
Era preciso compreender a canalha. A
sublime vivência do aniquilamento do cidadão acabará por levá-lo à exaltação
exacerbada das suas forças. O que fazia do povo de Roma mais feliz e mais forte
do que (exemplo stendhaliano) o de Londres era o desespero. Vivia no pior dos
mundos, esperava de tudo sempre o pior. A pior escolha será a melhor. No mais
profundo infortúnio vive a liberdade. No mais profundo esgotamento moral estão
as forças de resistência. Sujeito como os seus antepassados da Idade Média a um
perigo permanente e oculto, forçado a querer viver e a inventar os meios de
sobrevivência (intriga, esperteza, expedientes, crime), lançado nas realidades
da vida que lhe condicionava o desejo, o romano era rico pelo absoluto do seu
atrevimento.
E a teocracia revia-se na plebe romana
como num espelho. A ausência de leis, de justiça, de qualquer acção do poder papal
em prol do interesse dos cidadãos, transviava a natural vitalidade do romano
para o heroísmo do crime. Um génio criador como qualquer outro, contudo
orientado às avessas pelo pior dos regimes políticos.
Mais tarde, mais para os meados do
século, o Vaticano e seus poderes temporais constituem-se como o maior
obstáculo à tão ansiada unificação italiana.
Havia quem dissesse que a teocracia
romana tinha perdido todo o contacto com a realidade da vida e da História e
calcado a pés os princípios de modernidade daquele já adiantado séc. XIX. As
forças nacionalistas da Carbonária não se conformavam com a continuação da
obsolescência insuportável que já era o poder temporal dos papas e a existência
de uns Estados Pontifícios que cortavam territorialmente em duas fatias a
península itálica. Estava na hora de pôr fim a mil anos de regime teocrático
absolutista.
E tudo começara no ano nebuloso de 751.
Os Lombardos tomavam Ravenna e ameaçavam
seriamente Roma no caso de o papa vigente, Estevão II, não lhes pagar um alto
tributo. Estevão II toma a decisão de pôr os pés ao caminho e ir ao reino dos
Francos celebrar uma aliança com a dinastia carolíngia – é, diga-se de
passagem, a primeira vez na História da Igreja que um papa se tira das suas
tamanquinhas e sai de Roma. Na basílica de Saint Denis, Estevão II consagra o
rei Pepino III (o Breve) e abençoa-lhe os dois filhos, Carloman e Charles -
futuro Carlos Magno.
Pepino cumpre a sua parte na aliança e
vem combater os Lombardos. E vence-os. Ano de 756. Pepino vence os Lombardos e
vai depor as chaves das cidades conquistadas sobre o túmulo de São Pedro. E é
este, dizem, o acto inaugural do que virá a ser o poder temporal dos papas e a
fundação dos Estados Pontifícios: uma grande parte da Itália central, Roma e mais
os ducados circundantes. E depois mais Ravenna, os Marche, a Emilia Romagna, os
territórios bizantinos. Chamam-lhe Património de São Pedro.
Mas os muçulmanos já apareciam muito
nesses tempos. E aparecem no litoral romano no ano de 846. Desembarcam, avançam
sobre a cidade, entram, saqueiam, reduzem a cacos as basílicas mais sagradas,
São Pedro e São Paulo. Não sei como foram repelidos. Mas sei que é o papa Leão
IV que manda erguer fortificações a sério no perímetro da cidade. E sei que é o
papa Nicolau I que organiza a guarnição militar permanente no local por onde os
mouros tinham entrado, o porto de Ostia. E desde então Roma considera-se um
principado. E os papas aprendem a exercer um poder temporal se não quiserem ser
assediados a toda a hora pelos diversos inimigos, os políticos e os religiosos.
Era o poder temporal da Igreja, que na
letra da bula Unam Sanctam, de Bonifácio
VIII, em 1302, deveria reinar em nobreza e dignidade sobre toda a espécie de
poder terreno. Combatendo com ardor, diga-se, pela sobrevivência dos Estados
Pontifícios; combatendo pela independência da Igreja; negociando obsessivamente
por uma e por outra causa.
E a primeira machadada violenta sobre o
poder político de Roma só chegará com a Revolução Francesa, quando na
Constituição de 1790 se reorganiza o estatuto do clero francês sem dar cavaco
ao papa.
Pio VI, o papa de serviço, condena o
documento e bem assim a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. É
Napoleão quem vem deitar alguma água nas fervuras revolucionário-eclesiásticas,
com a concordata de 1801.
Mas o fim estava historicamente próximo.
A eleição de Pio IX, muito depois das
passeatas de Stendhal, foi bem vista. Ele até criara fama (injustificada) de
liberal e de nacionalista. Tanto assim que em Março de 1848 tentou aliviar a
reputação de despótica teocracia que sobrecarregava o governo vaticano e
concedeu aos Estados Pontifícios uma Constituição. Por ela poderia ouvir-se o
breve vagido do povo quanto aos actos do governo de Sua Santidade.
Mas logo em Novembro desse ano o 1º ministro pontifício, conde
Pellegrino Rossi, é assassinado pelos carbonários e o papa, ao ver o ambiente muito
negro nas margens do Tibre, põe-se a milhas de Roma. Vinha aí a revolução.
Mas tem sorte. Sorte e uma mãozinha dos
franceses. E é ajudado pelos franceses que Pio IX logra reconquistar a Cidade
Eterna e restabelecer o poderio absolutista nos seus Estados. Estava a
pedi-las. E é o rei do Piemonte que agora o ameaça, o célebre Vittorio Emanuele
II. E é o ministro Cavour que encabeça o movimento para a unificação da
península.
Stendhal, falecido em 1841, não viveria
para apostrofar o reacionarismo de Pio IX (já então assediado pelas tropas
nacionalistas), nem execrar as encíclicas Quanta
Cura e Syllabus, que diziam as
últimas das ideias modernas e lhes objurgavam os erros e as falsidades. Pio IX
não podia ouvir falar de liberalismo político, de socialismo, de democracia.
Roma não tinha nada que se conciliar com o mundo moderno dominado pelos “novos
bárbaros” liberais – se calhar Pio IX até teria alguma razão, mas… só daí a
cento e cinquenta e nove anos, no terceiro milénio…
O papa perde a Romagna em 1859. O papa
retira-se da Umbria e dos Marche em 1860. Vittorio Emanuele faz-se proclamar em
Florença rei de Itália em 1861.
Os acontecimentos precipitam-se.
Mas Roma, encostada aos exércitos
franceses estacionados em Civitavecchia, ainda era Roma, e o papa ainda era o
chefe do Estado. Até ao dia em que os franceses tiveram mais que fazer do que
acudir à decadente teocracia romana e retiraram, oferecendo o ensejo aos
piemonteses de virem por ali abaixo e conquistarem a cabeça dos Estados
Pontifícios, a 20 de Setembro de 1870.
O curso impreterível da História
devorava mil anos de poder temporal e de teocracia papal.
O papa recolhia-se no Vaticano.
Considerava-se prisioneiro. Vittorio Emanuele mudava-se de armas e bagagens
para Roma, instalava-se no Quirinale e fazia ouvidos moucos à excomunhão
proclamada por Pio IX. E até ia mais longe ao conceder uma pensão anual ao
papa, sem lhe tocar, está bem de ver, na autoridade moral nem nas funções,
imunidades e prerrogativas religiosas.
O velho Pio IX é que recusava a real
benesse. Continua a considerar-se um prisioneiro entre as paredes do Vaticano. Emitia
o decreto Non Expedit: os católicos
que se livrassem de alinhar em macacadas democrático-liberais tipo eleições ou
quaisquer outros actos políticos.
O concilio que se segue, Vaticano I,
proclama a infalibilidade papal.
E as coisas estão neste pé até à chegada
de Pio XI. Que lá se entende com Mussolini e assina com ele o Tratado de
Latrão. Em Fevereiro de 1929.
O papa remete-se ao senhorio sobre o
Estado do Vaticano. Fica com a soberania das grandes basílicas de Santa Maria
Maggiore, São João de Latrão, São Paulo Fora de Portas e os domínios de
Castelgandolfo.
Teocracia, uff…
ResponderEliminarFabuloso... Parabéns, Joel Costa!
O "Questões de Moral" está claramente a refinar-se, em termos gráficos (já que em conteúdo seria bastante difícil...).
Agora só já falta mesmo é... o SOM - a soberba voz (e dicção) do Locutor e a excelência das suas escolhas musicais...