A entrada do novo século, ainda, o XX, quando as doutrinas científicas pareciam de natureza tão essencialmente dinâmica que repeliam uma aspiração de absoluto. Foi um castigo primeiro que se reconhecesse à observação uma preponderância sobre a imaginação como condição do especular científico. Mas as interpretações erradas fariam descambar a vera ciência para a banal acumulação de incoerências, todavia, embora parcialmente, exactas.
O positivismo marcava o novo século,
como já estava a marcar os sopros finais do velho século. Barómetros
hipersensíveis, os intelectuais acusaram o golpe, assustaram-se. Se se deixasse
de pensar em Deus como instância espiritual de apelo e se se passasse a viver e
a pensar subordinado ao real objectivo, desvalorizando a imaginação e o sonho, bom,
era caso para um poeta se suicidar
Um homem pensante e atento, e francês,
é claro, definiria uma lei de vida. A lei dos três estados. Três estados
teóricos, distintos, determinavam o âmbito de um novo conhecimento. Esse homem
chamava-se Auguste Comte.
Um estado a que se chamava de
teológico – a que se poderia acrescentar o qualificativo de fictício.
Outro estado a que se chamava de
metafísico, mas que também podia ser dito de abstracto.
Finalmente, o estado científico, que
era o positivo.
Três métodos de pensar. Três sistemas
conceptuais. Três formas de abordar os fenómenos da vida. E três sistemas que
entre si tinham a virtualidade de se eliminar. E se o primeiro, o teológico,
era fonte de onde dimanara a inteligência, e o segundo um patamar de
transições, o terceiro, o científico, determinava o limite da cogitação humana.
Era um fim. Impossível avançar, inconveniente regressar a qualquer dos outros
sistemas depois de obtida a prova científica.
No primeiro estado, ou sistema, o que
acontecia era definir-se como objectos a natureza mais intrínseca e íntima de
todos os seres e indagar da causa primeira de todos os efeitos, um conhecimento
do absoluto, a convicção de que todo o fenómeno decorria em suas causas e
efeitos da acção do sobrenatural, e por aí se explicando até as aberrações
universais.
A metafísica conformava o estado teológico-fictício
com ligeiras nuances. Não se deitavam
iniciativas ou responsabilidades directamente ao sobrenatural mas contava-se
com a acção de agentes desconhecidos, abstractos, cada um com poderes sobre,
digamos, o seu ramo de especialização. Podia não ser já Deus o supremo mestre
criador; poderiam ser deuses a dividir entre si os poderes.
Chegado ao científico, ou ao positivo,
o espírito humano reconhecia por fim as suas incapacidades, a impossibilidade
de chegar às noções absolutas. E reconhecendo-o, desistia, renunciava.
Renunciava a quê? A partir em busca das causas e das finalidades do universo e
seus magníficos, temerosos e misteriosos fenómenos. Optava antes o espírito
humano por indagar das leis e das relações de sucessão e semelhança que regiam
esses fenómenos. Os factos apreciavam-se pelos seus contornos reais e
entreteciam-se fios de ligação entre os casos particulares e os casos gerais.
E por falar nisto ocorre um nome que
já por esta época se interrogava acerca do valor prático de uma verdade,
William James: admitida como certa uma ideia, ou uma crença, que diferença
concreta resultará dela para a vida que vivemos? Como é que esta verdade se
efectivará? Que experiências resultarão dela, em lugar das obtidas a partir de
uma crença falsa? Qual, em termos de experiência, o valor prático da verdade?
É que a verdade de uma ideia, no dizer do mesmo William James, não lhe é propriedade inerente. Nem inerte. A verdade acontece. E acontece numa ideia. E esta ideia faz-se verdade; ou fazem-na verdadeira certos factos. A ideia verifica-se a si mesma, e tem por finalidade e resultado a sua própria verificação.
De regresso a
Augusto Comte, vamos dizer que um facto, seja ele particular, seja ele geral,
não contém em si nenhum sentido inteligível, real. Um facto consistirá, sobretudo,
antes de tudo o mais e mais do que tudo, no seu puro enunciado.
Adeus para sempre
à pura imaginação e ao seu império mental na descoberta do mundo. À imaginação
não resta alternativa outra do que sujeitar-se à observação, por forma à
obtenção de um estado lógico das coisas e das vidas. Nada é possível conhecer
em cada efeito para além das relações que esse efeito mantenha ou não com
outros efeitos, nunca quanto ao mistério da sua produção.
Aos positivistas
interessava saber o que era, o que é, porque se sabiam impotentes para
descortinar a causa primeira tanto quanto o destino final daquilo que era. O
absoluto era então alvo fora do alcance e fora do combate das ideias,
erigindo-se em seu lugar o relativo.
E depois, seria
bom que se percebesse que os fenómenos humanos individuais não eram
estrictamente individuais apenas por resultarem de uma evolução colectiva e
contínua de elementos conexos entre si, donde os fenómenos individuais passarem
a ser entendidos como fenómenos sociais.
A especulação lógica
ater-se-ia sempre às condições de uma existência individual, as quais, em
última análise, reflectiríam as condições do progresso social verificado, sem
absoluto nem permanência. E isto punha os cabelos em pé aos metafísicos.
Era o novo
espírito científico, o novo espírito positivo a distanciar-se do misticismo e
do empirismo que tanto tinham estigmatizado os pensares antigos. O positivismo
reservava-se severamente o direito de navegar nessas águas, criticando as
ilusões criadas pela procura do absoluto.
Os hábitos de
absoluto estavam no entanto bem enquistados na mente humana. E desse absoluto ninguém
quisera investigar as origens. Como se de noções milenares, nascidas com o
primeiro homem se tratasse. Mas não, não eram atávicas – garantiam os
positivistas. Eram noções induzidas de fora do indivíduo, de fora da
colectividade dos indivíduos. E eram induções insidiosas, nocturnas, a dar
lugar às ilusões teológico-metafísicas.
Os intelectuais
da tradição, do instinto, da intuição, do golpe de asa, da imaginação,
insurgiram-se, violentados, o seu mundo ruía em desditosos pedaços, não podiam
aceitar as baias que lhes queriam pôr à consciência de uma realidade,
custava-lhes terem de se cingir ao facto em si e por si como limite do seu labor
criativo.
O mundo
apertava-se, tornara-se demasiado pequeno para eles. E da crise do empirismo,
do espírito religioso e do misticismo, arrancava a crise do próprio
positivismo, a rebelião.
Por exemplo, em
Portugal. E porque em Portugal a entrada do positivismo fora impetuosa e
devastadora. E de forma a dar alentos intelectuais às ideias republicanas,
quando tomou os seus aspectos sociológicos.
Mas tanto quanto
se impunha o positivismo nos meios literários e académicos portugueses, assim
ia sendo contestado. Antero e Oliveira Martins estavam na primeira barricada
dessa contestação. O conhecimento científico não poderia abarcar a explicação
das coisas. À ciência o que eram os fenómenos; à filosofia e à metafísica o que
era a reflexão sobre o absoluto.
E afinal de
contas, o positivismo, nas suas fronteiras acanhadinhas também se traduzia num
dogmatismo, e porque ilusórias eram também, ou poderiam ser, as conclusões da
ciência. Não era possível, e nem sequer aconselhável, pensar manietado pelas
cadeias únicas da experiência. Experiência que não fornecia leis para a
indução, e sendo que as leis do espírito são inerentes ao espírito, não derivam
da experiência.
Sampaio Bruno,
Oliveira Martins, Raúl Proença, António Sérgio, Antero, Leonardo Coimbra, e,
para mim o mais interessante e criativo, Teixeira de Pascoaes. Todos eles de
uma forma ou de outra críticos do positivismo.
Pascoaes
embebia-se do sonho religioso e messiânico da raça. E assim entendia ele
combater o estrangeirismo que invadira o pensar português, e do qual se
levantavam como expoentes maiores o positivismo e o constitucionalismo
franceses. Estava em acção o movimento Renascença Portuguesa.
Pascoaes. Não se
pense que ele não era republicano. A implantação da república fora mesmo para
ele o inaugurar de uma nova idade para a identidade nacional.
O homem português
de Pascoaes era um homem integral. Ser físico e ser metafísico. Inteligência
dedutiva e inteligência intuitiva. Consciência poética, vamos lá, sem desprezo
de uma consciência científica. Em suma, o homem português, pronto ao
enfrentamento das duas facetas do universo, uma formal e outra substancial.
Para Pascoaes o 5
de Outubro pode ter sido uma festa. Aliviava-nos a influência de Roma, é certo,
e era bom. Para ele, que se queria panteísta e que entendia o povo português
como uma comunidade religiosa, sem dúvida, todavia não católica.
Mas se a chegada
da república extinguira o que ele chamava de lâmpadas de Roma, por outro
lado acendera o que era urgente apagar, e que ele dizia serem os fachos de
Paris.
Teríamos de nos
guiar pela nossa própria candeia, alimentada com o azeite das nossas
oliveiras.
Teríamos de
aspirar a uma república, sim, a uma democracia, claro, mas uma democracia religiosa,
rural e corporativa.
O que existe é
uma aspiração esparsa, latente, em nebulosa – uma atmosfera, um sentimento de
mal estar que é condição de movimento e desejo de alguma coisa – não se sabe
bem o quê. Que nos incite, que nos impulsione, que nos una, que nos salve.
Sente-se de mais para carecer de demonstrações.
Sentimento, ou
sentimentalismo, português, e sempre e sempre necessidade de salvação
colectiva, nas palavras que acabaram de se ouvir, de Raúl Proença, crítico do
materialismo e do determinismo e crente num realismo idealista.
Proença pretendia
ver Portugal como parceiro de parte inteira da civilização mundial. A Europa
seria para Portugal um espelho. Portugal confrontar-se-ia a cada passo com esse
espelho e o que esse espelho lhe devolvia era uma imagem de subalternidade, de
menoridade que deprimiam a vidinha.
Sérgio queria-se
idealista, porém racionalista e crítico. Não morria de amores pela
preponderância do facto, ou da experiência, porque o conhecimento seria
engendrado na física, na matemática, na geometria, na ultrapassagem do sensível
pelo inteligível.
Leonardo Coimbra
não queria nada com os factos nem com a experiência. A dialéctica do pensamento
humano não estaria nas coisas, estaria nas representações ou nas noções dessas
coisas – a sensação. A sensação não era um dado. Era uma categoria psicológica.
Portanto, não seria uma realidade estável, seria um passo no processo
dialéctico a desembocar em realidade, em sentido.
Mas gosto do
pensar de Pascoaes. Pela plástica. Pelo recorte poético superior e impreciso e
imponderável que encerra, ou em que se encerra, mais então pela forma literária
do que pelos rigorosos valores filosóficos. E quanto ao valor filosófico do que
escrevia, e porque o seu pensamento não passava de um afloramento de
sentimentalidade, a seu ver, um pensamento cujas coordenadas lhe pediam uma
forma artística de expressão, deixava a avaliação dele, segundo disse, aos
críticos, às cabras e a outros roedores. O importante era o ensejo de
apresentar a sua filosofia ao leitor.
A ciência? Pff! Um
jogo de forças repetido, ou lentamente modificado, gestos insubstanciais,
formas ocas, casca de um fruto proibido.
A ciência, para
ele, era o que desenhava a onda, mas era a poesia que a enchia de água.
O sábio
observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o
significado anímico das coisas.
Havia nele,
Pascoaes, um paradoxo filosofante muito complexo nos seus termos: a razão era
irracional; Deus era humano; a natureza era sobrenatural.
Um poema:
vede o homem
sonhando;
e pelo sonho
remindo as ermas cousas transitórias, concluindo a imperfeita criação que Deus
iniciou
Quem era o Homem
na fronteira do século XX, engasgado entre o facto e o não facto, a imaginação
e a realidade, o empirismo e a observação, o sonho e a experiência? Seria o
mesmo Homem que o mundo conhecera dos séculos atrasados ou sofreria nas suas
noites outros e mais aterradores sonhos?
Pergunto e
Pascoaes replica-me: o sonho do homem actual é ser um esqueleto antecipado,
com asas de alumínio, sobre um planeta roído até ao caroço. Ao homem
mitológico, escravo dos deuses sucedeu o homem metafísico, escravo de um Deus;
e a este o industrial, escravo de uma deusa de metal, aquela mulher eléctrica,
numa barraca de feira, estendendo a varinha mágica aos labregos espantados.
Pode não haver
mais perfeita alegoria já não digo do Homem industrial mas até mesmo do labrego
informático, cada dia mais labrego e cada dia mais informático, que vive a
fronteira do outro século, este, o XXI.
Ao Homem, ao
labrego espantado com a varinha mágica do cientismo e da industrialização,
tocaria tomar para si os padecimentos do universo, ser companheiro de Deus na
dor de si mesmo.
Porque Deus
criara o universo por desfastio, ou distracção, e ficara banzado com o que
fizera, e passara a andar roído de saudades de si mesmo, do seu ser que não era
ainda criador, uma vez que enxergava no mundo por si criado o seu próprio fim.
Ao Homem de
Pascoaes restava ser uma consciência do seu próprio criador. Deus sofre. A
sua divindade é uma doença. Escreveu ele. E porque também o Homem penava.
Por ser ele mesmo, em si mesmo – homem.
As coisas são
lágrimas de Deus, imagens arrefecidas, já serenas, da sua dor. Deus sofre. Eis
a razão de tudo.
Em Deus estaria a
origem de todo o mal. Em Deus estaria o originalíssimo pecado. Terá sido para
expiar esse pecado que se fez homem. E também para se aperfeiçoar, porque a
finalidade última do Homem seria ser ele a consciência do universo, e assim em
penosa ascensão a caminho, justamente, de Deus.
Não seria pela
particularidade do universo mental de Teixeira de Pascoaes que o positivismo
francês medraria no pensamento português. Por causa das certezas ou das
renúncias especulativas que esse positivismo comportava. Estava-se perante um
conflito aberto: de um lado, a certeza científica; do outro a sensibilidade
religiosa de onde brotava a poesia. E conflito porque uma e outra visariam um
escopo político. Ou seja, um domínio. Como diz Pascoaes: de um lado temos o
Cristo-Rei, e de outro um anti-Cristo presidente. E ainda havia a saudade.
Essa palavra saudade…
O Homem é
criador, não é criatura coisa nenhuma.
o seu gesto
era olhar, isto é, criar,
converter em humano
sentimento
a
espiritualidade azul do ar.
E a saudade era
uma deusa. Nascida do sonho. Redenção do universo. Redenção de Portugal.
Santidade cósmica aparecida dos esponsais entre a maternal neblina e o duro
torrão, Jesus e Pã. Na alma portuguesa achava Pascoaes uma via de consensos
entre paganismo e cristianismo.
E em Leonardo
Coimbra achava Pascoaes a expressão filosófica de quanto ele próprio pensara, a
quanto ele próprio não pudera emprestar expressão que não fosse poética.
Vede a que
sublime altura filosófica Leonardo Coimbra elevou a alma da sua raça que é a
saudade, e, por conseguinte, a matéria e o espírito cósmicos fundidos num
perpétuo abraço amoroso e criador. Leonardo representa a ideia fundamental de
um povo, o móbil psíquico de uma raça a construir um novo mundo.
A saudade como
lusitano modo de criar.
Religião não
podia ser imposição dogmática – isto para Leonardo Coimbra. Porque religião era
pensamento. O pensamento científico, através da consonância das consciências
levou à pessoa humana, logo, essa pessoa reclamará para si a liberdade de uma
criação essencial, e moral, na arte, na filosofia ou na religião. E pela
religião a humanidade acederá ao cosmos, alargará perspectivas solidárias.
Caberia então ao Homem ser entidade onde se representaria o Todo.
Quem cria, afinal, o universo,
senão o pensamento humano?
É aliás por esse
processo criador do universo que o Homem pode ascender. Ascender aonde? A quem?
A Deus. Um Deus transcendente, porque nada está criado de um só fôlego e de uma
vez por todas.
Compreender é
unir; compreender é amar.
Qual é o
princípio de uma identidade cultural portuguesa, onde está, desde o momento em
que essa identidade aproveita tanto quer a tradição escolástica quer a do
pensamento positivista?
É um princípio,
segundo Leonardo Coimbra, só encontrável na nossa literatura – ou na nossa
poesia. Ou, enfim, na linguagem, no falar e no inventar. Tudo em Portugal – e
designadamente a questão política – se imbricaria num problema de pedagogia, e
sendo este problema pedagógico decorrente de uma questão filosófica. Uma ideia,
acho eu, cheia de actualidade.
A mais relevante
identidade cultural portuguesa estaria então oculta, e oculta na linguagem,
porque o talento peculiar de cada povo é o que inunda as palavras de sentidos
secretos e mais profundos.
O intérprete de
um trecho literário só poderá entender a linguagem numa acepção simbólica,
cifrada, remetendo o sentido derradeiro do discurso para territórios mais
recuados da consciência.
Já mestre Unamuno
dizia que a filosofia espanhola estava difusa na literatura, na vida, na acção
e na mística, e nunca patente e claríssima em fosse qual fosse o sistema
filosófico.
Campo de
interpretações seria a filosofia portuguesa, porque a nossa racionalidade se
vocacionou para integrar o irracional, ou porque o pensamento resvala para o
obscuro, para noções enigmáticas que significam a sombra e a noite da alma dos
nossos seres, os naturais e os sobrenaturais.
Continuo encantada, ou num encantamento, pela prosa e pelas ilustrações. Volta e meia, venho aqui desenfastiar-me do comum! E aprender, apreender. Embora me falte a voz e a música que acompanhavam as "questões". Entretanto,comprei o seu último livro na wook e comecei a lê-lo, divertida - pensando que algures no tempo e no feitio, a ironia cruzou os nossos ADNs. Saúde e Verve que não lhe faltem. Um abraço
ResponderEliminarMuito interessante, obrigado.
ResponderEliminar"Para desenfastiar do comum". Nem mais!
E tanto que os portugueses de hoje precisam de se desenfastiar do comum, do banal, do rasteiro e até do aviltante...