ALGO AMEAÇADORAMENTE
ESTRANHO
O HOMEM DA
AREIA
Freud analisou o caso do estudante Nathanael.
Ainda criança, Nathanael perdera o pai
e nunca conseguira esquecer as circunstâncias aterradoras que rodearam a morte
do pai.
À noite, a mãe de Nathanael mandava as
crianças para cama cedo. Em face da normal renitência infantil, avisava os
filhos de que o homem da areia estava a chegar.
Uma noite, Nathanael afoitou-se e pôs-se à escuta do que se
passava na casa depois do recolher das crianças. O que ouviu foi uns passos
pesados que iam da porta de entrada ao escritório do pai.
“Mãe, quem é o homem da areia?”. Não era nada, era só um
modo de falar sem correspondência concreta.
É a ama das crianças que revela o real sentido da expressão
“homem da areia”. Um homem mau que que visita os meninos quando eles tardam em
ir para a cama e lhes atira punhados de areia para os olhos, fazendo-os saltar
das órbitas a sangrar, pegando depois nesses olhos, deitando-os para um saco (o
homem do saco da minha infância!), esperando até ao próximo quarto crescente da
lua, e nessa altura dando-os a comer aos filhos, que têm bicos recurvos e estão
num ninho.
Nathanael ouve a tremenda história com algum cepticismo, e
resolve dedicar-se à tarefa de descobrir que aspecto poderia ter esse malvado
homem da areia.
Consegue esconder-se no escritório do pai. Era uma das
noites em que o pai esperava a visita do homem. Quando o visitante entra,
Nathanael reconhece-o. É o advogado Copelius, figura grotesca e repelente que
infundia medo às crianças da cidade.
Copelius e o pai sentam-se junto do fogão a falar e a mexer
as brasas incandescentes. Nathanel ouve o advogado a reclamar olhos, quero
olhos, quero olhos. Nathanael grita. Copelius descobre-o escondido no
reposteiro, agarra-o, leva-o até ao fogão e faz menção de lhe atirar as brasas
para os olhos. O pai roja-se aos pés de Copelius e implora-lhe que poupe os
olhos do filho. Nathanael desmaia.
Nathanael passa muito tempo doente, de cama.
Certa noite, passado um ano, Copelius torna a visitar o pai
de Nathanael, há uma violenta explosão no escritório, o pai morre e Copelius
desaparece.
Mais uns quantos anos volvidos e Nathanael anda a estudar.
Deambula pela cidade universitária e
nota no meio do movimento uma figura que lhe recorda o advogado Copelius.
Trata-se de um oculista ambulante italiano chamado Giuseppe Coppola.
Aproxima-se dele. O oculista oferece-lhe barómetros, higrómetros. O estudante
não precisa de barómetros e higrómetros para nada. “Não quer barómetros? Não
quer higrómetros? Mas também tenho olhos, olhos de óptima qualidade”.
Nathanael
fica petrificado de horror. O outro apresenta-lhe uns olhos e então o estudante
recompõe-se. Não eram olhos, eram óculos, banais óculos. E fica-lhe com um par
de binóculos.
Esses binóculos usa-os Nathanael para espiar a casa
fronteira onde mora o professor Spalanzani, cuja bela filha, Olympia, ele
admira. No decurso das observações, o estudante nota que Olympia não se mexe e
não fala. O que não impede que Nathanael esqueça a rapariga com quem está para
casar e se apaixone por Olympia.
Nathanael descobre que Olympia afinal não é ninguém.
Olympia é um autómato a quem Giuseppe Coppola colocou uns olhos. Logo, Coppola
é o homem da areia da infância do estudante. Quando um dia ele entra na casa de
Spalanzani assiste a uma bruta discussão entre o físico e o oculista. É então
que Coppola agarra na boneca, agora sem olhos, e leva-a com ele, enquanto
Spalanzani apanha do chão uns olhos ensanguentados e os atira ao peito do
estudante, afirmando que aqueles olhos que foram postos em Olympia são os olhos
do próprio Nathanael roubados pelo oculista. Nathanael tem um acesso de loucura
pelas reminiscências que tem da morte do pai, atira-se ao professor a gritar
“gira, gira, oh, oh, círculo de fogo, gira, gira, depressa, depressa, boneca de
pau, gira gira!”.
Torna a cair doente. Perde e recobra consciência várias
vezes. Um dia volta a si, lúcido, e os médicos dão-no como curado. Agora sim,
poderá casar-se com Clara, a noiva que nunca o abandonou.
O tempo passa. Nathanael, Clara e o irmão desta dão
agradáveis passeios. Vão atravessar a praça do mercado onde se projectam as
altas torres da câmara municipal. Clara sugere uma subida lá acima, ao alto das
torres. E assim fazem. Os noivos sobem à torre e o irmão de Clara fica cá em
baixo.
Clara olha do alto da torre e qualquer coisa lhe chama a
atenção lá em baixo, na praça. Nathanael saca dos binóculos em tempos vendidos
pelo oculista italiano que levava no bolso, assesta-os, e é novamente acometido
por um ataque de loucura. “Boneca de pau, gira, gira, boneca de pau, círculo de
fogo, gira, gira!”. Tenta empurrar Clara para o vazio. Clara grita por socorro.
O irmão ouve-lhe os gritos, sobe a correr até ao alto da torre, salva-a e desce
com ela. Quando chegam à praça olham para o alto e vêem Nathanael a correr de
um lado para o outro da plataforma, aos gritos, ”gira, gira, círculo de fogo,
gira, gira, boneca de pau, gira, gira!”. Junta-se povo na praça. Todos olham para
cima. No meio do povo uma figura se destaca, o advogado Copelius.
Um grupo de homens quer subir à torre para dominar o
estudante. Copelius solta uma gargalhada, “esperem, ele já vem para baixo pelos
seus próprios meios”.
Nathanael deve ter dado pela presença de Copelius entre a
multidão, porque de súbito fica quieto, imóvel, “sim, sim, óptimos olhos, olhos
de óptima qualidade, óptimos olhos!”, lança-se no espaço, despenha-se no meio
da praça, cabeça esmagada. Copelius desaparece no meio da confusão.
Já se percebeu que estamos num conto fantástico do genial
E.T.A. Hoffmann, Der Sandeman,
ilustração do tema freudiano a que chamou “aquele sentimento de algo
ameaçadoramente estranho” que paira sobre nós.
Um duplo de pais que na idade madura de Nathanael vem a assentar na dupla professor Spalanzani/oculista Giuseppe Coppola, sendo Spalanzani identificado como categoria parental e sendo Coppola a representação do advogado Copelius. E como Spalanzani trabalhava com Coppola na construção da boneca Olympia ocorre a reminiscência infantil do trabalho ao fogão do pai com o advogado.
A incerteza, é o que o escritor pretende transmitir-nos,
algo estranho, algo ameaçador, o quê? O mundo dos espíritos, o mundo dos
fantasmas (Shakespeare: Hamlet, Macbeth). E deixamo-nos levar por ele e
aceitamos como real o mundo dele, a convenção ficcional. De outro modo
quebra-se o sortilégio da ficção que nos leva ao romance, ao teatro, ao filme.
A experiência psicanalítica do Dr. Freud diz-lhe que a
eventualidade de magoar os olhos, ou de os perder, constitui um medo infantil e
instintivo dos mais terríveis. Medo que deriva para a angústia com a entrada na
idade adulta em que nenhuma outra probabilidade de lesão se manifesta tão como
os olhos. É a “menina-dos-olhos dele”, costuma dizer-se.
Ora a angústia da perda da vista vem freudianamente
associada a uma angústia de castração; ou é, ou pode ser, uma angústia
substituta da angústia da probabilidade de castração. Édipo (tinha que
aparecer) “o mito criminoso”, vazando os próprios olhos, atenua o castigo da
castração que correspondia (pena de Talião) à enormidade do crime que cometera.
Freud admite que a perspectiva de perda do membro viril
para um homem adulto, obviamente, seja um sentimento forte e obscuro, quando a
hipótese de perda de algum dos outros órgãos é o eco, só, desse obscuro
sentimento. É o que resulta da análise que Freud fez de neuróticos e da
importância do complexo de castração na respectiva vida psíquica.
No conto de Hoffmann, o terror do estudante Nathanael ante
a perspectiva da perda dos olhos associa-se intimamente à morte do pai. O homem
da areia surge no imaginário do estudante enquanto elemento perturbador de uma
ligação afectiva, o pai, Olympia (a boneca), Clara (a noiva), o irmão de Clara
(o melhor amigo). O homem da areia é o elemento desestabilizador que o separa
dos objectos do seu afecto, até ao ponto de o forçar ao suicídio, e logo nas
felizes vésperas do seu casamento com Clara.
Se recusarmos a relação entre a perda dos olhos e a
castração nada fará sentido. E tudo fará sentido se Freud entender substituir o
terror do medonho homem da areia pelo temor do pai, categoria que no mundo de
Freud equivale para uma criança ao instintivo receio da castração.
O sentimento de algo ameaçadoramente estranho ocorre por
ocasião de uma incerteza intelectual quanto ao caso de alguém ou alguma coisa
ser ou não animado (dotado de uma alma), quando um objecto sem vida (sem alma)
impõe à nossa consciência demasiadas semelhanças com alguma coisa viva. As
bonecas e bonecos, no caso do mundo infantil. A criança começa a brincar com
bonecos sem distinguir completamente o que tem vida e o que não tem,
dedicando-se com evidente prazer (e afecto) aos bonecos que manipula como se de
seres animados se tratasse.
Certo paciente do Dr. Freud conta que pelos seus oito anos
ainda estava convencido de que se olhasse de certa maneira para os seus bonecos
eles poderiam ganhar uma vida própria.
Mas no que se reporta ao conto de Hoffmann, a ocorrência de
um medo infantil não se relaciona com o caso da boneca Olympia, e porque a
criança não tem medo da hipótese de vida dos seus bonecos, e pelo contrário,
até gostaria que tal acontecesse. Não se trata portanto de um caso de medo
infantil, é antes um desejo infantil.
E, inevitavelmente, cá vêm as jongleries intelectuais freudianas que nos podem parecer
manipulações arbitrárias dos dados da história.
No mundo do estudante Nathanael enquanto criança as figuras
do pai e do advogado Copelius consubstanciaram-se numa imagem decomposta do
pai, uma ambivalência: um pai mau ameaça ferir-lhe os olhos (castração), outro,
o pai bom, faz tudo para lhe salvar os olhos. Há, recalcado, o desejo de morte
do pai mau, que vem a representar-se na morte do pai bom e enviando a
responsabilidade dessa morte a Copelius, o pai mau.
Um duplo de pais que na idade madura de Nathanael vem a assentar na dupla professor Spalanzani/oculista Giuseppe Coppola, sendo Spalanzani identificado como categoria parental e sendo Coppola a representação do advogado Copelius. E como Spalanzani trabalhava com Coppola na construção da boneca Olympia ocorre a reminiscência infantil do trabalho ao fogão do pai com o advogado.
Mas o físico Spalanzani também é pai da boneca Olympia. Um
desdobramento de uma imagem de pai, então, resultando daí que Spalanzani e o
oculista Coppola revestam para o Nathanael já adulto a ameaçadoramente estranha
qualidade de pais tanto de Olympia como dele próprio.
De acordo com a interpretação de Freud, a boneca mecânica
significaria uma materialização da atitude feminina de Nathanael face ao pai
nos tempos da mais tenra infância, com Spalanzani e Coppola, pais de Olympia, a
funcionar como reencarnações do par real dos pais do estudante.
Olympia viria a ser um complexo de Nathanael. Tal complexo
exerce sobre ele um domínio traduzido pelo amor obsessivo e absurdo dele pela
boneca. Um amor narcísico.
Freud aceita como psicologicamente correcto que um jovem
fixado na figura do pai, dado o evidente complexo de castração, não se mostre
capaz de amar uma mulher, o que está para além do meu entendimento, mas enfim,
é Freud quem o diz. Diz e comprova-o pela sua experiência de análise de
pacientes reais, de vidas menos fantásticas mas com histórias clínicas
comparáveis à do estudante Nathanael saída da imaginação de E.T.A.Hoffmann.
(Hoffmann nasceu de um casamento muito infeliz. Pelos seus
três anos o pai abandonou a casa e a família e nunca mais foi visto, sendo a
relação dele com a imagem do pai – a fazer fé nos biógrafos – um dos pontos
capitais da sua vida sentimental.)
E como sentimento de algo ameaçadoramente estranho nas
nossas vidas ainda há a questão do duplo, o nosso duplo. Veremos isso a seguir.
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