sábado, 24 de outubro de 2015


        ALGO AMEAÇADORAMENTE ESTRANHO

                          O HOMEM DA AREIA

 


            Freud analisou o caso do estudante Nathanael.
         Ainda criança, Nathanael perdera o pai e nunca conseguira esquecer as circunstâncias aterradoras que rodearam a morte do pai.
         À noite, a mãe de Nathanael mandava as crianças para cama cedo. Em face da normal renitência infantil, avisava os filhos de que o homem da areia estava a chegar.
Uma noite, Nathanael afoitou-se e pôs-se à escuta do que se passava na casa depois do recolher das crianças. O que ouviu foi uns passos pesados que iam da porta de entrada ao escritório do pai.
“Mãe, quem é o homem da areia?”. Não era nada, era só um modo de falar sem correspondência concreta.
 
                                                                            
 
É a ama das crianças que revela o real sentido da expressão “homem da areia”. Um homem mau que que visita os meninos quando eles tardam em ir para a cama e lhes atira punhados de areia para os olhos, fazendo-os saltar das órbitas a sangrar, pegando depois nesses olhos, deitando-os para um saco (o homem do saco da minha infância!), esperando até ao próximo quarto crescente da lua, e nessa altura dando-os a comer aos filhos, que têm bicos recurvos e estão num ninho.        
 
Nathanael ouve a tremenda história com algum cepticismo, e resolve dedicar-se à tarefa de descobrir que aspecto poderia ter esse malvado homem da areia.
Consegue esconder-se no escritório do pai. Era uma das noites em que o pai esperava a visita do homem. Quando o visitante entra, Nathanael reconhece-o. É o advogado Copelius, figura grotesca e repelente que infundia medo às crianças da cidade.
 
 
Copelius e o pai sentam-se junto do fogão a falar e a mexer as brasas incandescentes. Nathanel ouve o advogado a reclamar olhos, quero olhos, quero olhos. Nathanael grita. Copelius descobre-o escondido no reposteiro, agarra-o, leva-o até ao fogão e faz menção de lhe atirar as brasas para os olhos. O pai roja-se aos pés de Copelius e implora-lhe que poupe os olhos do filho. Nathanael desmaia.

Nathanael passa muito tempo doente, de cama.
Certa noite, passado um ano, Copelius torna a visitar o pai de Nathanael, há uma violenta explosão no escritório, o pai morre e Copelius desaparece.
Mais uns quantos anos volvidos e Nathanael anda a estudar. Deambula pela cidade universitária  e nota no meio do movimento uma figura que lhe recorda o advogado Copelius.
 
   
 
Trata-se de um oculista ambulante italiano chamado Giuseppe Coppola. Aproxima-se dele. O oculista oferece-lhe barómetros, higrómetros. O estudante não precisa de barómetros e higrómetros para nada. “Não quer barómetros? Não quer higrómetros? Mas também tenho olhos, olhos de óptima qualidade”.

 

                                                              
 
Nathanael fica petrificado de horror. O outro apresenta-lhe uns olhos e então o estudante recompõe-se. Não eram olhos, eram óculos, banais óculos. E fica-lhe com um par de binóculos.
 

 
Esses binóculos usa-os Nathanael para espiar a casa fronteira onde mora o professor Spalanzani, cuja bela filha, Olympia, ele admira. No decurso das observações, o estudante nota que Olympia não se mexe e não fala. O que não impede que Nathanael esqueça a rapariga com quem está para casar e se apaixone por Olympia.
 
 
Nathanael descobre que Olympia afinal não é ninguém.
Olympia é um autómato a quem Giuseppe Coppola colocou uns olhos. Logo, Coppola é o homem da areia da infância do estudante. Quando um dia ele entra na casa de Spalanzani assiste a uma bruta discussão entre o físico e o oculista. É então que Coppola agarra na boneca, agora sem olhos, e leva-a com ele, enquanto Spalanzani apanha do chão uns olhos ensanguentados e os atira ao peito do estudante, afirmando que aqueles olhos que foram postos em Olympia são os olhos do próprio Nathanael roubados pelo oculista. Nathanael tem um acesso de loucura pelas reminiscências que tem da morte do pai, atira-se ao professor a gritar “gira, gira, oh, oh, círculo de fogo, gira, gira, depressa, depressa, boneca de pau, gira gira!”.
 
 
Torna a cair doente. Perde e recobra consciência várias vezes. Um dia volta a si, lúcido, e os médicos dão-no como curado. Agora sim, poderá casar-se com Clara, a noiva que nunca o abandonou.
 
                                                                                              
 
 
O tempo passa. Nathanael, Clara e o irmão desta dão agradáveis passeios. Vão atravessar a praça do mercado onde se projectam as altas torres da câmara municipal. Clara sugere uma subida lá acima, ao alto das torres. E assim fazem. Os noivos sobem à torre e o irmão de Clara fica cá em baixo.
 
 
Clara olha do alto da torre e qualquer coisa lhe chama a atenção lá em baixo, na praça. Nathanael saca dos binóculos em tempos vendidos pelo oculista italiano que levava no bolso, assesta-os, e é novamente acometido por um ataque de loucura. “Boneca de pau, gira, gira, boneca de pau, círculo de fogo, gira, gira!”. Tenta empurrar Clara para o vazio. Clara grita por socorro. O irmão ouve-lhe os gritos, sobe a correr até ao alto da torre, salva-a e desce com ela. Quando chegam à praça olham para o alto e vêem Nathanael a correr de um lado para o outro da plataforma, aos gritos, ”gira, gira, círculo de fogo, gira, gira, boneca de pau, gira, gira!”. Junta-se povo na praça. Todos olham para cima. No meio do povo uma figura se destaca, o advogado Copelius.
 
 
Um grupo de homens quer subir à torre para dominar o estudante. Copelius solta uma gargalhada, “esperem, ele já vem para baixo pelos seus próprios meios”.
Nathanael deve ter dado pela presença de Copelius entre a multidão, porque de súbito fica quieto, imóvel, “sim, sim, óptimos olhos, olhos de óptima qualidade, óptimos olhos!”, lança-se no espaço, despenha-se no meio da praça, cabeça esmagada. Copelius desaparece no meio da confusão.
Já se percebeu que estamos num conto fantástico do genial E.T.A. Hoffmann, Der Sandeman, ilustração do tema freudiano a que chamou “aquele sentimento de algo ameaçadoramente estranho” que paira sobre nós.
A incerteza, é o que o escritor pretende transmitir-nos, algo estranho, algo ameaçador, o quê? O mundo dos espíritos, o mundo dos fantasmas (Shakespeare: Hamlet, Macbeth). E deixamo-nos levar por ele e aceitamos como real o mundo dele, a convenção ficcional. De outro modo quebra-se o sortilégio da ficção que nos leva ao romance, ao teatro, ao filme.
 
 
A experiência psicanalítica do Dr. Freud diz-lhe que a eventualidade de magoar os olhos, ou de os perder, constitui um medo infantil e instintivo dos mais terríveis. Medo que deriva para a angústia com a entrada na idade adulta em que nenhuma outra probabilidade de lesão se manifesta tão como os olhos. É a “menina-dos-olhos dele”, costuma dizer-se.
Ora a angústia da perda da vista vem freudianamente associada a uma angústia de castração; ou é, ou pode ser, uma angústia substituta da angústia da probabilidade de castração. Édipo (tinha que aparecer) “o mito criminoso”, vazando os próprios olhos, atenua o castigo da castração que correspondia (pena de Talião) à enormidade do crime que cometera.
 
 
Freud admite que a perspectiva de perda do membro viril para um homem adulto, obviamente, seja um sentimento forte e obscuro, quando a hipótese de perda de algum dos outros órgãos é o eco, só, desse obscuro sentimento. É o que resulta da análise que Freud fez de neuróticos e da importância do complexo de castração na respectiva vida psíquica.
No conto de Hoffmann, o terror do estudante Nathanael ante a perspectiva da perda dos olhos associa-se intimamente à morte do pai. O homem da areia surge no imaginário do estudante enquanto elemento perturbador de uma ligação afectiva, o pai, Olympia (a boneca), Clara (a noiva), o irmão de Clara (o melhor amigo). O homem da areia é o elemento desestabilizador que o separa dos objectos do seu afecto, até ao ponto de o forçar ao suicídio, e logo nas felizes vésperas do seu casamento com Clara.
 
                                                                
 
Se recusarmos a relação entre a perda dos olhos e a castração nada fará sentido. E tudo fará sentido se Freud entender substituir o terror do medonho homem da areia pelo temor do pai, categoria que no mundo de Freud equivale para uma criança ao instintivo receio da castração.
O sentimento de algo ameaçadoramente estranho ocorre por ocasião de uma incerteza intelectual quanto ao caso de alguém ou alguma coisa ser ou não animado (dotado de uma alma), quando um objecto sem vida (sem alma) impõe à nossa consciência demasiadas semelhanças com alguma coisa viva. As bonecas e bonecos, no caso do mundo infantil. A criança começa a brincar com bonecos sem distinguir completamente o que tem vida e o que não tem, dedicando-se com evidente prazer (e afecto) aos bonecos que manipula como se de seres animados se tratasse.
 
 
Certo paciente do Dr. Freud conta que pelos seus oito anos ainda estava convencido de que se olhasse de certa maneira para os seus bonecos eles poderiam ganhar uma vida própria.
 
                                                  
 
Mas no que se reporta ao conto de Hoffmann, a ocorrência de um medo infantil não se relaciona com o caso da boneca Olympia, e porque a criança não tem medo da hipótese de vida dos seus bonecos, e pelo contrário, até gostaria que tal acontecesse. Não se trata portanto de um caso de medo infantil, é antes um desejo infantil.
E, inevitavelmente, cá vêm as jongleries intelectuais freudianas que nos podem parecer manipulações arbitrárias dos dados da história.
No mundo do estudante Nathanael enquanto criança as figuras do pai e do advogado Copelius consubstanciaram-se numa imagem decomposta do pai, uma ambivalência: um pai mau ameaça ferir-lhe os olhos (castração), outro, o pai bom, faz tudo para lhe salvar os olhos. Há, recalcado, o desejo de morte do pai mau, que vem a representar-se na morte do pai bom e enviando a responsabilidade dessa morte a Copelius, o pai mau.

       Um duplo de pais que na idade madura de Nathanael vem a assentar na dupla professor Spalanzani/oculista Giuseppe Coppola, sendo Spalanzani identificado como categoria parental e sendo Coppola a representação do advogado Copelius. E como Spalanzani trabalhava com Coppola na construção da boneca Olympia ocorre a reminiscência infantil do trabalho ao fogão do pai com o advogado.
Mas o físico Spalanzani também é pai da boneca Olympia. Um desdobramento de uma imagem de pai, então, resultando daí que Spalanzani e o oculista Coppola revestam para o Nathanael já adulto a ameaçadoramente estranha qualidade de pais tanto de Olympia como dele próprio.
De acordo com a interpretação de Freud, a boneca mecânica significaria uma materialização da atitude feminina de Nathanael face ao pai nos tempos da mais tenra infância, com Spalanzani e Coppola, pais de Olympia, a funcionar como reencarnações do par real dos pais do estudante.
Olympia viria a ser um complexo de Nathanael. Tal complexo exerce sobre ele um domínio traduzido pelo amor obsessivo e absurdo dele pela boneca. Um amor narcísico.
Freud aceita como psicologicamente correcto que um jovem fixado na figura do pai, dado o evidente complexo de castração, não se mostre capaz de amar uma mulher, o que está para além do meu entendimento, mas enfim, é Freud quem o diz. Diz e comprova-o pela sua experiência de análise de pacientes reais, de vidas menos fantásticas mas com histórias clínicas comparáveis à do estudante Nathanael saída da imaginação de E.T.A.Hoffmann.
 
 
(Hoffmann nasceu de um casamento muito infeliz. Pelos seus três anos o pai abandonou a casa e a família e nunca mais foi visto, sendo a relação dele com a imagem do pai – a fazer fé nos biógrafos – um dos pontos capitais da sua vida sentimental.) 
E como sentimento de algo ameaçadoramente estranho nas nossas vidas ainda há a questão do duplo, o nosso duplo. Veremos isso a seguir.

                


 

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