ALGO AMEAÇADORAMENTE
ESTRANHO
O
DUPLO
O duplo. O espelho.
Posso
contar um episódio. Ia num comboio, estava sentado num compartimento com couchette,
quando, na sequência de um violento
solavanco do comboio, se abriu a porta da casa de banho contígua e um senhor de
idade, em roupão e com um boné de viagem, entrou no meu compartimento. Supus
que ao deixar a casa de banho, situada entre os dois compartimentos, se tinha
enganado e entrado no meu compartimento; ergui-me, mas reconheci, perplexo, que
o intruso era a minha própria imagem reflectida no espelho da porta de
comunicação. Assim, em vez de nos assustarmos face ao nosso duplo, pura e
simplesmente não o reconhecemos – escreveu Freud.
Todos nós já vivemos experiências
parecidas.
Noutro episódio, um fulano assusta-se
muito quando reconhece na cara de alguém que subia para um autocarro a sua
própria cara, comentando “mas que mestre-escola com um ar tão miserável”. Uma
reacção que Freud designa de arcaica: a visão do nosso duplo é sentida como
algo de ameaçadoramente estranho.
Se houve contista especialmente hábil
na comunicação desse algo de ameaçadoramente estranho foi E.T.A. Hoffmann. E um
dos elementos mais em evidência na criação deste efeito literário é a
introdução na narrativa do duplo, personagens que pela aparência semelhante passam
por idênticas e em que uma compartilha com a outra sentimentos, pensamentos e
experiências, o que perturba o sentimento que se tem do próprio ego quando para
o interior desse ego se desloca um ego alheio, com repetição de traços
fisionómicos, de carácter, iguais desígnios de vida e inclusive actos
criminosos. E assim no decorrer de gerações sucessivas.
Um clássico das histórias fantásticas
alemãs (não de Hoffmann, de Ewers) é a do Estudante de Praga, que vai para um
duelo e promete à namorada não matar o antagonista. Porém, a caminho do local
do duelo encontra o seu duplo, que acaba de matar o seu rival.
Uma alma imortal pode ser o duplo de um
corpo.
Toda a vida da criança é marcada por um narcisismo
primário. Superada essa fase, aquilo que a noção de duplo anunciava
modifica-se, o duplo torna-se ameaçador, promete a morte.
O sentido de algo de ameaçadoramente estranho relacionado
com o duplo decorre da circunstância de este duplo ser uma construção própria
da fase primitiva do psiquismo, uma fase ultrapassada. Mas o ego regressa à
época em que ainda não se separar do mundo exterior, dos outros.
A sensação da existência de algo de ameaçadoramente
estranho é o factor mais vulgar a concorrer para uma superstição, e uma das
forças mais ameaçadoramente estranhas da superstição é o medo do “mau-olhado”.
Quem é possuidor de uma coisa valiosa, e todavia perecível, receia a inveja
alheia. Uma inveja que o sujeito projecta sobre outrem, na certeza de que
sentiria essa inveja no caso de se inverterem os papéis. E essas são emoções
que se podem revelar pelo olhar, independentemente de alguma expressão verbal.
Tem-se medo da intenção oculta do outro em nos prejudicar, e para esse medo
somente nos baseamos em breves indícios.
O espelho. O duplo.
O nosso duplo começa a viver pela nossa imagem reflectida
no espelho, pela sombra que projectamos. Mais adiante aparecem os espíritos
protectores, depois vêm as teorias da alma, e por último o terror da morte.
É de crer que
emprestamos o carácter de algo ameaçadoramente estranho a essas impressões que
pretendem confirmar a omnipotência do pensamento e a forma de pensar animista, ao
mesmo tempo que já atingimos um estádio de pensamento que delas nos afasta. (Totem und
Tabu).
Mas a mitologia do duplo servia originariamente de
protecção contra a destruição do ego, um ”desmentido ao poder da morte”.
Representações que decorrem de um ilimitado amor por si próprio, do tal
narcisismo primitivo que ocupa inteiramente a psique da criança, como também
dos povos mais primitivos. E se o duplo é um protector na fase primitiva, pode
em seguida ultrapassar essa fase e tornar-se uma ameaça, um pregão de morte
próxima.
O senso moral.
Se o narcisismo primário se esvai no correr da nossa vida
psíquica, ocorrerá um instinto de autoanálise, ou de autocrítica, uma censura
psíquica a que se pode chamar de senso moral.
Dado o caso de o sujeito ser capaz de uma auto-observação,
a questão do duplo pode adquirir novos sentidos, sendo um deles a superação
dessa fase primitiva do narcisismo.
O duplo pode ainda representar aas possibilidades não
concretizadas de um destino, o que instiga no sujeito o forte desejo de
realização das ambições do ego, das acções da vontade que vinham sendo
reprimidas. Uma ilusão de livre-arbítrio.
Também os antigos deuses (Heine) no decair do prestígio das
religiões se transmutaram em demónios.
Em certa tarde de verão, numa pequena cidade italiana,
Freud resolve dar uma volta pelas ruas desconhecidas e desertas. Chega a uma
praça e vê às janelas das pequenas casas um certo número de mulheres muito
pintadas. Fica incomodado e imediatamente acelera o passo e vira a esquina mais
próxima. Caminha mais um tempo sem destino e desemboca de súbito na mesma praça
das mulheres muito pintadas – que então começam a atentar na figura dele.
Afasta-se, caminha e caminha por mais algum tempo, dá voltas e voltas, e de
novo se acha, pela terceira vez, na mesma praça. A sensação que experimenta,
claro, é a de algo ameaçadoramente estranho.
O regresso não intencional ao mesmo ponto é outro dos
assustadores indícios de que algo de ameaçadoramente estranho se está a passar.
É o factor da repetição involuntária que torna
ameaçadoramente estranho o que ate então fora irrelevante, inofensivo, e nos
segreda a ideia de que alguma coisa má, inevitável, está, ou estará, para
acontecer.
Outro
aspecto da questão é o caso do homem que põe o sobretudo no vestiário do
teatro, recebe uma chapa com um número – arbitrariamente, suponho eu, Freud
optou pelo 62 – e vem a descobrir que o camarote que lhe foi indicado também
tem o número 62. Mas o pior é quando ainda nesse dia, ou nos dias que
imediatamente se seguem, o mesmo homem repara que tudo o que lhe é facultado e
implica classificação numérica, porta de rua, carruagem de comboio, quarto de
hotel, tem o número 62.
Algo de ameaçadoramente estranho.
E depois há os que conferem um sentido oculto à repetição
do número 62 – ou outro, evidentemente. Será um sinal que talvez se reporte ao
tempo de vida que reste ao sujeito.
Também esse algo de ameaçadoramente estranho que é o
regresso do que é semelhante tem ligação à vida psíquica infantil – é o que diz
o Freud.
Compulsão à repetição. Pode ser manifestação intensa. Tão
intensa que pode muito bem sobrepor-se ao soberano princípio do prazer. É o que
pode acrescentar o carácter demoníaco a alguns lances da nossa vida psíquica.
Manifesta-se nas aspirações da criança. Segundo Freud, domina a evolução da
análise dos neuróticos.
Noutra história clínica, Freud fala do neurótico obsessivo
que foi para umas termas e que nessas termas experimentou melhoras
consideráveis. Para o neurótico, no entanto, não terá sido a força curativa da
água das termas a responsável pelas melhoras. Terá sido, isso sim, a
localização do quarto onde ficou, por acaso paredes meias com as instalações de
uma apetecível enfermeira. Tanto que, quando voltou às mesmas termas, exigiu
ficar no mesmo quarto. Impossível. O quarto estava ocupado por um cavalheiro de
idade. Danado, o neurótico diz para o funcionário da recepção: “ah sim, pois
Deus queira que esse cavalheiro de idade tenha uma apoplexia.”
Passadas duas semanas, o cavalheiro de idade tem uma
apoplexia.
O neurótico tem conhecimento do caso e fica com a sensação
de que algo ameaçadoramente estranho pairava no ar.
Todos os
neuróticos obsessivos analisados por Freud podiam com a maior das facilidades
contar casos parecidos - algo de ameaçadoramente estranho, diria eu, para o
próprio Freud.
Também nenhum esses neuróticos
obsessivos se surpreenderia ao encontrar na rua uma pessoa que há anos não viam
e na qual tinham, por acaso, pensado nesse mesmo dia – já me aconteceu, e mais
do que uma vez, de maneira que o meu diagnóstico deve estar feito: sou um
neurótico obsessivo, não tenho saída.
E á noite os neuróticos obsessivos
comentam com a família os tantos anos passados sem terem notícias de certa
pessoa, mas sempre esperando receber carta dessa pessoa na manhã seguinte. Algo
de ameaçadoramente estranho.
No geral, o que nos parece
ameaçadoramente estranho é alguma coisa que se possa associar à morte. À morte,
aos cadáveres, ao regresso dos mortos, aos espíritos, aos fantasmas. E porque o
que reputamos de ameaçadoramente estranho o relacionamos com o que é
assustador, um assustador que precisamente se oculta no que é ameaçadoramente
estranho. Pensamentos e sentimentos nossos que se modificam muito pouco e do
que preservámos do antigo ficou a nossa relação com a morte a sobrepujar tudo o
resto.
Á Biologia do tempo freudiano custava
decidir se a morte era uma fatalidade necessária reservada a todos os seres
vivos, ou se não passava muito de um acaso regular que fazia parte da vida –
aliás, um acaso talvez evitável.
Restam as religiões para contestar a
inevitabilidade da morte individual, e por isso mesmo defendem o prolongamento
de uma existência para lá do fim da vida.
Para os ameaçadoramente estranhos
poderes políticos a coisa fia mais fino, e muito sabiamente pensam que seria
tragicamente impossível manter a ordem moral entre os vivos se deixassem de
tentar melhorar a vida terrena com as promessas e expectativas de uma vida
melhor no Além.
O homem que sonha passa, enquanto
sonha, por certo lugar e, sempre em sonhos, diz: “conheço este sítio; tenho a
certeza de que já aqui estive”. Na interpretação de Freud é o conteúdo do
sonho, a visão do lugar, a identificação, a reminiscência que substitui o lugar
familiar e agradável onde se pensa que já se esteve pelo corpo da mãe, pelos
órgãos genitais da mãe (onde efectivamente já se esteve). Porque o sentimento
de algo de ameaçadoramente estranho também pode ser adquirido pela memória
daquilo que em tempos foi familiar, foi acolhedor.
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