MATEM ESSA MULHER!
Naquele tempo ouviu Herodes, o Tetrarca, a
fama de Jesus. E disse aos seus criados: este é João Baptista; ressuscitou dos
mortos e por isso estas maravilhas operam nele. Herodes tinha prendido João por
causa de Herodias, mulher de seu irmão Filipe. E porque João lhe dissera: não
te é lícito possuí-la. E querendo matá-lo, temia o povo, porque o tinham como
profeta.
Festejando-se o dia natalício de Herodes
dançou a filha de Herodias diante dele, e agradou a Herodes, que lhe prometeu
em juramento dar-lhe tudo quanto lhe pedisse. E ela, instruída pela mãe, disse:
dá-me aqui num prato a cabeça de João Baptista. E o rei afligiu-se, mas por
causa do juramento e dos que estavam à mesa com ele, mandou degolar João e a
sua cabeça num prato foi trazida e dada à jovem.
Evangelho de Mateus,
cap. 14
E chegando a ocasião favorável em que
Herodes no dia dos seus anos dava uma ceia aos grandes e aos príncipes da
Galileia, entrou a filha de Herodias, e dançou e agradou a Herodes. Disse então
o rei: pede-me o que quiseres e eu to darei. E saindo ela, perguntou a sua mãe:
que pedirei? E ela disse: a cabeça de João Baptista. E ela entrou e disse ao
rei: quero que me dês num prato a cabeça de João Baptista. E, entristecendo-se
muito, o rei mandou que lhe trouxessem ali a cabeça de João Baptista. E o
executor foi e trouxe a cabeça num prato e deu-a à menina e a menina deu-a a
sua mãe.
Evangelho de Marcos,
cap. 6.
Com Salomé estamos em pleno mito da mulher, ou,
por melhor dizer, da feminilidade perversa, da mulher chamada fatal. O mito que
vai influenciar, para não dizer incendiar, todos os meios de expressão
artística, todas as formas de arte ocidental, desde finais do século XIX. E,
como vimos, trata-se de uma perversão ignominiosa cuja inspiração foi directamente
colhida na palavra sagrada dos evangelhos.
O mito de Salomé (e de Herodias) teve muitas e
boas pernas para andar séculos fora. As narrativas e os contos sobre o tema
atravessaram as idades. Foram duas judias errantes, expiando as culpas por toda
a eternidade – como o seu homólogo masculino.
Nos contos medievais Salomé foi uma menina
castigada por ter calçado uns sapatos embruxados que a obrigavam a dançar sem
descanso; Salomé era engolida pela terra; ou era arrebatada nos ares por uma
tempestade que se desencadeava a partir da boca do próprio João Baptista já
morto. Eu sei lá…
Mallarmé e Apollinaire desenvolveram a lenda da
morte no gelo de Salomé.
Salomé passava a ser uma patinadora no gelo condenada a patinar (ou a dançar em patins) sobre um lago gelado em que a superfície cedia e se partia ao peso do pecado da jovem, sendo ela decapitada pelas lâminas de gelo em que se afogava, lâminas essas que se lhe reconstituíam em salva gelada em volta do pescoço – simbolismo óbvio da bandeja onde ela reclamava a cabeça do profeta.
Salomé passava a ser uma patinadora no gelo condenada a patinar (ou a dançar em patins) sobre um lago gelado em que a superfície cedia e se partia ao peso do pecado da jovem, sendo ela decapitada pelas lâminas de gelo em que se afogava, lâminas essas que se lhe reconstituíam em salva gelada em volta do pescoço – simbolismo óbvio da bandeja onde ela reclamava a cabeça do profeta.
Numa motivação sexual – e esta sim, moral, ou
antes, imoral – se fundamenta o suplício de João Baptista. Porque ele havia
condenado publicamente a imoralidade da mulher do Tetrarca, Herodias, que se
deitava com os capitães do exército, também, mas no caso, sendo casada, por se
ter amancebado com o irmão do marido.
Há uma componente política, também. Objurgando
publicamente a que era mulher do Tetrarca, João Baptista contribuía para a má
imagem política deste junto do povo, diminuindo também o prestígio devido à
mulher do rei, ou seja à própria Herodias. E o Tetrarca Herodes andaria muito
interessado na pessoa de João Baptista, e ouvia-o. Tinha-o em cativeiro,
verdade, mas não queria que o maltratassem, porque era muita a fama de santo
que corria dele entre o povo.
Quem não dá qualquer importância ao peso místico e
à figura moral de João Baptista são as mulheres, a começar por Herodias – que
virá a aparecer transfigurada no Parsifal como arquétipo da mulher meretrícia, ou de
hábitos muito livres, se se preferir.
Herodias só pensa em calar para sempre a voz
incómoda do profeta. Podia matá-lo por outros meios, o veneno, por exemplo,
mas, deparando-se-lhe a oportunidade, e já que a denúncia que João fizera do
seu mau porte fora pública, preferiu dar ao manifesto a decisão de lhe mandar
cortar a cabeça e exibi-la aos olhos dos convivas do banquete.
Herodias ou esteve na origem (sabe-se lá), ou foi
associada pela literatura a Lady Macbeth, a Agripina, a Messalina, a Helena de
Tróia, a Semiramis, a Cleópatra, a Perséfone, a Judite, a Dalila, a Medeia.
Mulheres históricas, mulheres míticas, mulheres perigosas. Os literatos
franceses viram nela a inimiga perfeita.
Era uma personagem de tragédia – falo de Herodias.
Mulher ambiciosa, que deixou o marido, tipo apagado, e atracou-se ao cunhado
que lhe prometia mais à ambição social. Ia conseguindo o que queria, e não
faltava mais nada que um desgraçado qualquer, um mal vestido, um miserável
esfarrapado e meio tonto a quem chamavam profeta e santo, lhe viesse estragar
os planos de vida.
Patente na história é a fragilidade psicológica do
Tetrarca Herodes, entalado entre a espada e a parede, fervendo provavelmente de
desejo carnal pela enteada, e querendo agradar-lhe, e por isso coagido a
obedecer-lhe, a ela e à própria mulher, ainda que a contra-gosto. Mas era muito
plausível que naquela fase do banquete Herodes, velho libidinoso, já estivesse
com um ou dois grãos na asa e sem fazer muita ideia do que estava a prometer à
enteada, a virgem perversa e sedutora que lhe contendia com os restos de
líbido.
Aliás, a personagem de Salomé é uma reveladora de
desejo. O desejo do outro e o seu próprio desejo. Abre os olhos ao mundo para
uma sensualidade activa e ameaçadora, fatal, e antes que esse mundo fosse cristianizado
e banisse das suas categorias morais justamente isso, a sensualidade.
E subversiva ainda, a personagem de Salomé. Porque
o drama de Salomé, conclamando as atenções para o desejo e para o mundo dos
sentidos, também, por outro lado, realiza a encenação do não desejo, da recusa,
a recusa do desejo expressa na atitude de João Baptista, e isso põe a ridículo
o acto primordial da multiplicação da espécie humana.
A pobre da Salomé também não tinha saída moral que
lhe valesse.
Comentadores há que enfatizam o facto de o famoso
profeta, asceta, pregador do deserto ter sido afinal a atracção principal de
uma festa mundana e luxuriosa. Aconteceu, pela versão dos historiadores, no ano
de 29, e em Maqueronte, pequena cidade sobre o Mar Morto.
E assim João Baptista
se torna o primeiro mártir da civilização cristã. Porque assim tinha de ser. E
o ter de ser assim confere imediatamente à filha de Herodias uma luz profética
e uma dimensão capital nos mistérios cristãos enquanto agente do martírio de um
profeta. Flávio Josefo, o mais notório dos historiadores judeus antigos
chamou-lhe Salomé – conquanto o nome da menina não venha mencionado pelos dois
evangelistas.
Flávio Josefo esclarece ainda que esta Salomé,
filha de Herodias, casaria com um tio, enviuvaria dele, e casaria segunda vez
com um rei da Pequena Arménia, Aristóbulo III.
Descrita por Flávio Josefo, Salomé tinha um
pescoço alto e um nariz tenso, direito. Não usava jóias, não obstante as
representações dela feitas no tal século XIX que lhe recuperou a mitologia – e
então a verdadeira imagem de Salomé seria a das aguarelas de Gustave Moreau; ou
seria antes dele a de Tiziano, ou a de Munch. Em qualquer dos casos, estava ali
a beleza feminina, que atrai e intimida, sempre assim citada pelos literatos…
Balzac, Mallarmé, Stendhal, Bourget, Proust…
Falando das representações de Salomé da autoria de
Gustave Moreau, são-lhe atribuídas intenções moralistas tendentes a condenar a
luxúria, ou os perigos da luxúria representados na mulher em geral, um ser sem
consciência e animado pelo mal.
Não sei que mal teriam feito as mulheres a estes
literatos moralistas…
Interessante notar a secura estilística usada
pelos dois evangelistas, Mateus e Marcos, na narração do episódio. Nenhum
juízo, nenhuma moral se desprende do texto. Um relato jornalístico da morte do
último dos profetas bíblicos, do homem visto como santo que nas águas do rio
Jordão tinha baptizado o próprio Jesus Cristo.
Nenhuma referência na moral dos evangelhos a esta
cena de suma importância moral, nem à circunstância da grande figura moral que
era João Baptista ter sido assassinado não por um tirano cruel ou um sicário
assalariado, mas por ordem de duas mulheres, entre todos os prazeres carnais da
comida e da bebida e da dança licenciosa, ele, o asceta que corria o deserto a
pregar e se nutria de gafanhotos e mel silvestre.
A narração evangélica é económica. É mesmo seca. E
a perversidade andará pelo sub-texto e pela imaginação de quem lê. Mas foi para
acentuar os perigos espirituais da lascívia e do deboche e a inspirar horrores
pela mulher que dança, que os doutores da igreja, os grande publicitários do
cristianismo, certamente retocaram as securas narrativas dos evangelhos com os
elementos devassos que lá não constam. Sei lá.
A femininilidade era perigosa para a nova doutrina
religiosa – ou passaria a ser: uma feminilidade consubstanciada no acto de
dançar – uma dança de ventre, é de supor, e que hoje se ensina livremente por
aí, nas academias, nos ginásios, nos clubes. Ao que a gente chegou, não é?
Descreve Santo Ambrósio que a dança de Salomé lhe
descobria partes do corpo que os costumes mandavam que se encobrissem.
E outro doutor da igreja, já não sei qual,
pormenoriza que Salomé, na sua dança para Herodes, sacudia os cabelos e
balançava as ancas.
E são comparadas, ela e a mãe, Herodias, a fêmeas
de tigre, com sede de sangue, porque queriam comer a cabeça de João Baptista e
beber-lhe o sangue.
Mulheres? Brr!
É preciso ver que os acrescentos que os teólogos
cristãos põem no episódio eram politicamente necessários. Tenha-se em vista o
combate que o cristianismo vem a travar com o paganismo então dominante, e
cujos expoentes, no caso, eram Herodes, a mulher, e a própria Salomé. Um
paganismo mais propriamente importado dos gregos e dos egípcios que tinham
bastante influência na corte de Herodes, do que um paganismo possível de
associar ao judaísmo.
Os padres, os doutores da igreja e os concílios
cristãos condenaram a dança de Salomé, e bem assim o papel dela na perigosa
sedução feminina. E os censores de fim do século XIX não lhes ficaram atrás e
alargaram, à colação de Salomé, o campo das reprovações e das indignidades à
chamada mulher fatal, que em 1890 continuava, dá a ideia, a fazer estragos nos
corações masculinos e a provocar ondas de repúdio.
A morte de João Baptista é chamada por alguns
autores como o
último crime antes do Calvário. É o ápice do mal pré-cristão figurado na pessoa de duas
mulheres. Logo por azar.
A morte de João Baptista é a aurora do
cristianismo.
João Baptista é o último dos profetas. É portanto
ele que estabelece um fio condutor teológico entre os profetas tradicionais,
velho-testamentários, e o novo tempo, o tempo de uma nova palavra divina, o
tempo, como se sabe, de um novo testamento, de uma nova lei, de uma nova moral,
de uma nova prática, de uma nova vida.
E, não sei se profeticamente também, ou
correspondendo a um desígnio do Alto, são duas mulheres os factores do drama
místico, os pivots da acção que inaugura a nova era na História do
Homem. Duas mulheres desgraçadamente encarnando nas suas figuras tudo o que dos
velhos tempos não era tenebroso nem era nenhum particular mal, a dança, a
sexualidade feminina, mas que o passou a ser pela pregação dos padres da nova
igreja.
A voz de João Baptista que ressoa na cisterna onde
Flaubert e Oscar Wilde o puseram, e onde está acorrentado, não é a voz da
liberdade contra o tirano Herodes. É a voz de uma moral mais restritiva do que
aquela que vigorava no reino. É a voz da castidade masculina. Voz da nova
moral, do advento revolucionário e purificador dos costumes, que, por enquanto,
não se sabia bem o que fosse, mas que era temido por muitos.
Sim, João Baptista é a voz de um fundamentalismo
que se confronta com a libertinagem e a luxúria correntes nos círculos do
poder. Ouvem-no como se ouvissem a voz da própria consciência, ou mesmo a voz
de Deus. Os olhos dele desferem relâmpagos. Tem nele alguma coisa de bárbaro;
ou alguma coisa de yogui hindú. Na sua Vida de Jesus, Renan escreveu que o Baptista era um homem invulgar, um
gigante das origens cristãs, a figura trágica que se sacrifica à religião nova,
a do amor, a de Cristo.
No arbitrário labirinto das simbologias e dos
objectos significantes, a bandeja e a cabeça de João Baptista encontram
correspondências variadas. A bandeja onde é servida a cabeça do profeta
associa-se à maçã de Eva – se Salomé beija a cabeça, Eva morde a maçã. A cabeça
do Baptista evoca a cabeça descomposta de Medusa sobre o escudo de Perseu; ou o
crâneo nas mãos de Hamlet. E há até quem fale na simbologia da bola de cristal.
Mas há simbólica mais directa estabelecida entre a cabeça do João Baptista e a
cabeça de Jesus Cristo. Eram primos, segundo reza a tradição – ou pelo menos
aparentados. Mas também se falou na cabeça do gigante Golias nas mãos do
pequeno David.
Foi nessa segunda metade do século XIX que Salomé
foi erigida em mito literário. A começar pela França; e a continuar na
Alemanha.
Então, ela começou a dançar, e durante a dança fazia espargatas que
mostravam as suas partes pudendas armadas da mais terrível mandíbula que se possa
imaginar, que se abria e fechava. Este espectáculo não tinha qualquer efeito
libidinoso sobre mim, mas enchia-me de um ciúme atroz e dava-me vontade de me
apropriar dos seus dentes, eu que começo a tê-los fracos - uma passagem do diário
de Edmond de Goncourt, de 14 de Julho de 1883, a propósito de um sonho que
tivera.
Não por acaso, talvez, Oscar Wilde escreve a sua Salomé em francês. Escreveu-a
em 1892, quando estava em Paris.
Mas a peça só pôde ser representada em 1896,
estava ele já na prisão de Reading – exactamente por luxúria e atentado à moral
e aos costumes.
Wilde caracterizava a sua obra como uma tragédia;
ou um poema; ou, mais longe, como uma peça musical em si mesma, só feita de
palavras. Uma peça de música repetitiva e lancinante, semelhante a uma sessão
de hipnose – as sessões de hipnose do Prof. Charcot na Salpêtriere, com as
grandes histéricas, estavam então em grande moda.
Salomé, enquanto mito, foi também muito ajudada
pelo grande interesse dos intelectuais da época pela medicina, pela
psiquiatria, que era a última moda terapêutica para as doenças mentais. Salomé
era a histérica cataléptica em transe que todas as terças-feiras aparecia pelo
Hospital da Salpetriêre multiplicada por várias pacientes nas sessões do tal
percursor de Freud, o Prof. Charcot.
E Wilde completa, digamos assim, o mito, ao
acrescentar-lhe o que nem pouco mais ou menos estava escrito nos evangelhos: a
necrofilia da virginal princesa da Judeia; o beijo lúbrico que Salomé pretende
aplicar à cabeça morta daquele homem santo. Era esse, é esse, o ponto cardeal
da peça de Oscar Wilde. Isso e a conhecidíssima dança dos sete véus.
Em 1894, na edição inglesa da peça, o desenhador
Aubrey Beardsley, para ajudar à festa, ilustra escandalosamente, lascivamente
(para o tempo, já se sabe) o texto de Wilde.
Condenado Oscar Wilde em 1895, o texto de Salomé serviu para provar em tribunal a imoralidade do
autor. Estava lá tudo, sodomia, ninfomania, histeria.
Mas a peça conhece grande sucesso na Alemanha. É
esse sucesso que leva Richard Strauss a interessar-se por ela.
A peça de Wilde já era uma ópera. A ópera já
estava escrita por Wilde, embora sem música. E Strauss, no libreto, respeitou
até onde pôde, intacto, o texto de Oscar Wilde. Daí o dizer-se que a verdadeira
estreia da Salomé de Oscar Wilde
aconteceu no Teatro do Châtelet, em Paris, a 8 de Março de 1907. E com música
de Richard Strauss.
Peça teatral e obra musical contadas em um único
acto. Caso excepcional. Perturbador. A acção a desenvolver-se com uma
velocidade que incomoda os espectadores. Velocidade e brutalidade. Algo de
novo. Strauss recusa a ironia de Wilde e segue pelo caminho da seriedade,
intensificando pela música a explosão das paixões até ao paroxismo.
E a Salomé de Strauss foi moda parisiense até ao rebentar da
Grande Guerra de 14. E pode dizer que foi a última manifestação artística
importante inspirada no mito de Salomé.
A dança.
Sem dança não havia Salomé – nada daquilo teria acontecido. Está nos
evangelhos, a dança, sim. É dado crucial na reprovação dos padres da igreja ou
na censura dos moralistas oitocentistas. É o motivo dramatúrgico a partir do
qual, quer na vida alegadamente real da narrativa bíblica, quer nas ficções
organizadas a partir dela, o problema se desbobina e todo o drama explode. Sem
dança não haveria Salomé, não haveria crise.
Algumas bailarinas exóticas de cabaret se permitiram, fazendo
movimentos de serpente e executando piruetas com a cabeça de Jokanaan (João
Baptista) ultrapassar em muito os limites da decência e do bom gosto. Escreveu Strauss. E
mais: quem já foi ao Oriente
e pôde observar o pudor das mulheres compreenderá que o papel de Salomé, jovem
casta e princesa oriental, não pode ser representado senão por atitudes simples
e distintas…
Todos nos lembramos de Lolita. Quanto mais não seja
pelo cinema. A mulher-criança que enlouquece de desejo um intelectual maduro, e
que funciona como, não sei se a primeira, mas pelo menos a mais elaborada e
importante obra literária sobre a pedofilia.
As semelhanças entre o caso de
Lolita e de Salomé são flagrantes, e tenho quase a certeza de que uma (Lolita)
nasceu da outra (Salomé), e de que Nabokov ao escrever Lolita pensou em Salomé.
Salomé é a criança em estado puro, original, selvagem e irresponsável, que não
sabe o que está a fazer; ou, pior um pouco, que o sabe muito bem, e que o
premeditou perversamente, todavia sempre num registo de irresponsabilidade. É o
que a torna mais perigosa.
Salomé, a mulher-criança, a mulher virgem,
ensinará à História que a virgindade não é, ou pode não ser, aquele factor
positivo e ternurento, aquele mito consagrado que se pensava. A mulher-criança
virgem, para os moralistas daquele fim de século, era uma cilada mortal, era a
mais tenebrosa manifestação do poder feminino, a ameaça mais terrível contra o
mundo masculino – mais ainda do que o ódio assassino de Herodias contra o
Baptista. Acresce a tudo a ambígua vaga de anti-semitismo que varria o século
XIX francês. Salomé era judia. Despertava no seu eroto-exotismo tanto o desejo
imperioso da carne como a repulsa e o medo.
Mas também houve quem escrevesse, Dominique
Jameux, que não seriam em suma as motivações necrófilas que Salomé visava.
Seria um infinito de pureza e de candura. Salomé teria de João Baptista a
imagem mental de um fantasma de branco. O vocabulário dos autores do drama
(peça teatral e ópera) é que lhes denunciava a predilecção por palavras que
convocavam o
frio, o estático, o lunar, o brilho da prata, o casto, o puro, o constrangido. O amor de Salomé por
João nada teria então de monstruoso, apesar de o objecto da sua paixão estar
morto. O desejo de Salomé seria uma aspiração à pureza, à inocência infantil.
Salomé diz a João Baptista:
- Tu eras belo. Nada havia no mundo
tão branco como o teu corpo. Nada havia no mundo tão negro como os teus
cabelos. Nada havia no mundo tão vermelho como a tua boca. Eu amo-te, João…
- Matem essa mulher! – gritou Herodes na peça de Wilde.
E dizia a indicação da peça: os soldados lançam-se e esmagam sob os seus
escudos Salomé, filha de Herodias e princesa da Judeia.
Até Nietzsche se enamorou...
ResponderEliminarOuse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!! — Lou-Salomé
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminar