PRAGA, PRIMAVERA DE 1968
(Pois
é, ainda às voltas com o Cunhal “de” Pacheco Pereira. É que há tanta coisa
interessante que o comum das gentes não sabe e que Pacheco Pereira nos revela…)
A propósito de coerência, lembrei-me agora,
até se pode dizer que a direita colaborou o seu bocado no mito de Cunhal. Sim,
mas só quando ele já estava velho e quando os grandes calores ideológicos do
verão de 1975 eram passado, as sombras “ameaçadoras” de revolução socialista
dissipadas, a democracia burguesa instituída e consolidada, e a sociedade de
mercado triunfante.
A contribuição da burguesia liberal para a
lenda cunhalista incidiu, no fundamental (penso eu), numa qualidade dele absolutamente
ideológica mas só perceptível a prazo. A coerência, quero eu dizer. Deplorável a
ideologia, inaceitáveis os métodos, sem dúvida alguma, reprovável a acção
política, claro que sim, mas de exaltar a coerência do velho combatente
comunista, fiel até ao fim aos ideais de juventude, fiel aos seus
patrocinadores soviéticos até ao dia em que a voracidade da História os banir
do mapa político mundial.
E no entanto… e no entanto, o líder
admirado pela coerência alicerçou muito da sua vida política em duvidosas
coerências – para não dizer mesmo incoerências oportunistas. Acho eu, claro. E
foi mesmo oportunista que o dissidente esquerdista Francisco Martins Rodrigues
lhe chamou um dia e ele ofendeu-se muito.
Cunhal leu as teses do XX Congresso do PCUS
como desvio de direita, assim repudiando a linha estratégica de Krutchev. Censurou
os militantes e dirigentes que nessas teses haviam embarcado cá em Portugal e
expurgou-as da linha do Partido.
´
Mas eis que sai de Portugal e se acoita em
Moscovo à sombra ideológica e às expensas do PCUS, e logo alinha pelas mesmas
teses que em Portugal eram grave e intolerável desvio de direita, e logo apoia
a política de Krutchev. Se não militantemente, pelo menos tacitamente, em nome
de uma sobrevivência pessoal e política.
Não se sabe se traiu Krutchev, mas a
verdade é que rapidamente se colou ao golpe de Brejnev e companhia quando os
ventos mudaram.
Se tinha abandonado o princípio da luta armada e da violência política e abraçado a ideia da coexistência pacífica com Krutchev, pôs-se ao lado de Brejnev quando essa coexistência pacífica foi temperada e as posições face ao imperialismo dos EUA endureceram.
É evidente que as coisas não são tão
simples e lineares como isso. A aparente incoerência pode ser apresentada como
flexibilidade estratégica. Aliás, nem é outra coisa. Política é movimento.
Política pode ser oportunismo táctico, reavaliação das condições, do real. Nada
de mais. Foi a coerência possível e a incoerência necessária.
1967 tinha sido um ano péssimo para o PCP,
entre traições e sequentes vagas de prisões e de desmantelamento de células. É
muito usada a palavra desespero. Militantes e funcionários não viam resultados
práticos das suas acções e sacrifícios. O Partido não atava nem desatava. O
regime, ainda que a contas como uma guerra distante, não dava sinais de
enfraquecimento, pelo contrário, parecia até fortalecido politicamente no
esforço de guerra. Nem sombras de algum passo efectivo a caminho da revolução
democrática e nacional, e muito menos em direcção ao socialismo.
Perspectivava-se para o ano seguinte uma
sucessão de acontecimentos a exigir do PCP posições claras – e coerentes. Uma
sucessão de acontecimentos de ressonância mundial que irá abalar irreversível e
profundamente o Partido nos seus fundamentos. Na sua moral. E na coerência do
seu chefe.
Cunhal passou a viver em Paris. Na mais
estricta clandestinidade.
Já não tem tratamento de alta personalidade do
comunismo internacional. Em Paris é mais um ilegal sem licença de residência.
Com a agravante de ser dirigente de um partido ilegal no seu país, de ser um
evadido das prisões do seu país e com uma ordem de expulsão do governo francês
pendente contra ele.
Maio de 1968. Paris em estado de sítio.
Cunhal a quase nada produzir de teórico como resposta às
violentas acções de massas que o movimento comunista não controla. Cunhal está
em Paris e assiste. Mas percebe que os acontecimentos excessivos redundarão
numa ajuda inestimável aos desvios esquerdistas que ele combate no próprio
Partido.
Cunhal considera o PC francês muito culpado
na escalada de violência esquerdista e na posterior recuperação da situação
operada por De Gaulle ao impor eleições, as eleições que o PCF deveria ter
exigido primeiro. E enfim, o Maio de 68 salda-se por uma vitória para a
reacção.
O PCP apresenta-se confuso. Como foi
possível a vitória da reacção depois de tamanhos desmandos aparentemente
revolucionários e de tanta mobilização de massas? A resposta estaria na
incapacidade de estabelecer com os intratáveis grupelhos esquerdistas
(maoistas) plataformas de entendimento e de unidade. O que restava de irrefutável
era o enfraquecimento do PCP em face da dita utópica ilusão esquerdista.
Entretanto, em Praga, também é primavera.
Como não podia mesmo deixar de ser, Cunhal
está muito a par do que se passa na Checoslováquia de Dubcek. Tem dúvidas, tem.
Mas também tem esperanças. Dúvidas quanto à probabilidade de a situação checa
vir a provocar abalos na hierarquia do movimento comunista mundial; esperanças
de que as transformações políticas em Praga possam acrescentar um novo élan a esse mesmo movimento comunista
mundial. Demonstra mesmo alguma simpatia para com a causa de Dubcek e não se
manifesta apologista de um endurecimento soviético.
Que a Checoslováquia não se estava nada a
afastar do trilho do socialismo.
Que o mais que havia eram calúnias do
capitalismo.
Que a Checoslováquia continuava na sua
cooperação com a URSS.
Que o objectivo vinha no fundamental a ser
a correcção dos erros de Novotny e que nada disso era óbice à realização de uma
verdadeira democracia socialista fiel aos mandamentos do marxismo-leninismo.
Que a adesão do PCP ao processo checo era
total.
Mas os duros do Partido no interior, muito
chegados às posições da URSS, não faziam a mesma leitura dos factos e das
consequências deles.
Se a Checoslováquia tergiversava da
cartilha soviética, a Roménia outro tanto. Duas feridas abertas no corpo
socialista. Do outro lado, com a URSS a pau com a escrita, estavam a Bulgária,
a Hungria, a Polónia e a Alemanha de Leste. Os Cinco. O Pacto de Varsóvia. Que
se preparava para fazer a cama a quem o contrariasse.
A embaixada soviética em Paris pressiona, insta
os comunistas portugueses lá residentes a declararem apoio à eventual invasão
da Checoslováquia. Há quem o faça e há quem o não faça e por aí Cunhal entrará
em choque com alguns militantes destacados.
Facto indesmentível era a supremacia
política e moral dos soviéticos ter vindo a ser placidamente atenuada junto dos
partidos comunistas do Ocidente.
Desde quando? Aí é que está a piada, a contradição,
a incoerência: desde o afrouxamento da linha dura, desde o XX Congresso, desde
a desestalinização; e agravado o desrespeito, naturalmente, a partir da análise
das teses guevaristas e do êxito da revolução cubana e um pouco mas tarde com o
rebentar do conflito com os chineses. Daí os PC’s italiano, francês e espanhol,
os mais fortes na Europa ocidental, baterem palmas à experiência checa e
pensarem muito a sério no que viria a chamar-se de eurocomunismo.
Mas Cunhal não. Às primeiras sim, ou
talvez, mas um não redondo em ultimas res.
Em Praga o tempo corre em vertigem, as
mudanças sucedem-se, Maio, Junho, Julho, a abolição da censura como passo muito
esclarecedor da embalagem reformista.
Dubcek e os seus vão a Moscovo e ouvem das
boas de Brejnev e companhia, incluindo o aviso: ou vocês fazem como a gente
quer a bem, ou então… ou então o quê?... ou então temos o caldo entornado e o
assunto resolve-se de outra maneira, quem sabe até se um tanto à má fila.
Mas os senhores do Kremiln estão a falar a
sério? Estavam. E a prova de que estavam são os exercícios militares soviéticos
muito perto da fronteira com a Checoslováquia, mais a magna reunião dos Cinco
em Varsóvia a produzir um ultimato em forma.
Sob o pseudónimo “Alenquer”, Cunhal,
clandestino em Paris, trata de mandar directivas à emissora de rádio do
Partido, a Rádio Portugal Livre, sediada em Bucareste. E é num rápido
desenvolvimento dialéctico do apoio ao desapoio à experiência checa que vai
resvalando para a incoerência.
Começa por recomendar muita cautela na
análise da situação. Sabia-se lá o que a situação podia dar e que reviravoltas
tácticas o Partido poderia ser obrigado a fazer. Como diz o outro: “sou da sua
opinião e da contrária, se for preciso.” Mesmo à portuguesa.
Nem tudo estava certo na ortodoxa posição
dos Cinco, e nem os checos estavam capazes de dar garantias quanto à realização
plena do socialismo depois das reformas. Primeiro ponto.
Não se lhe afigura justa a posição dos
Cinco, não, mas nem o apoio incondicional à linha primaveril checa lhe parece
absolutamente sensato.
Pôr em dúvida a ditadura do proletariado e
inventar um caminho novo para um socialismo pluripartidário que respeite as
liberdades burguesas, ora adeus!, é inevitável que crie graves crises
intestinas no movimento comunista.
Erros na orientação anterior dos hierarcas
checos chefiados por Novotny? Sim era verdade. Porém, a correcção desses erros
estaria a ir demasiado longe na descaracterização do regime e abrindo brechas à
penetração activa das forças capitalistas.
A contra-revolução mudara de táctica e
afirmava defender o socialismo, paradoxalmente através de todas as medidas que
pudessem vir a enfraquecer as defesas de um Estado socialista e facilitasse a
conquista de posições – revisão constitucional e eleições livres, nomeadamente –
que a breve trecho guindariam essa contra-revolução ao poder. Depois disso, não
faltaria muito para que o regime fosse severamente afectado, e por consequência
afectada a continuidade da Checoslováquia na órbita socialista.
Vendo bem, os apoios dos diversos partidos
comunistas às reformas checas não estavam a ajudar a Checoslováquia a ver
nitidamente os perigos da situação e só incitavam os dirigentes checos a
resistirem aos avisos e conselhos do PCUS.
A dar-se o caso da vitória da
contra-revolução no diferendo checo tudo mudaria no contexto político da
Europa, a correlação de forças seria alterada, a paz no mundo estaria ameaçada.
Nunca na vida a independência de cada um dos
partidos comunistas poderia fazer perigar a unidade de conjunto do mundo
socialista.
(Perversamente, digo eu, concluir-se-á que
a intervenção militar soviética na Checoslováquia é que vem a acelerar a
desagregação do mundo comunista.)
Evoluindo na sua visão da conjuntura,
Cunhal fustiga duramente o que chama de desvergonha oportunista de alguns
notáveis do PC francês (Garaudy, Aragon, Elsa Triolet) que estavam com Dubcek
sem compreenderem que apoiar Dubcek era dar uma mãozinha à derrota do
socialismo na Checoslováquia.
E os comunistas checos também levavam que
contar de Cunhal. Pela passividade ideológica. Pela cobardia mesmo. Pelo culto
do anti-sovietismo de braço dado com o exacerbado sentimento nacionalista. Por
se terem deixado infiltrar e dominar pelos agentes da direita.
(Cunhal era danado a tratar dos desvios de
direita.)
Sobra o duro dilema: a intervenção militar
soviética iria agitar as águas do mundo comunista e levantar novos problemas,
iria; mas a queda da Checoslováquia socialista talvez trouxesse problemas
maiores e mais graves ao mesmo mundo comunista.
Tudo ponderado, e feitas as contas, o PCP
apoia a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. A
pelintrice e a subserviência bem portuguesas e a dependência absoluta do PCUS a
isso o obriga.
Praga era ponto tradicional de trânsito de
portugueses para a URSS, tanto para frequentar cursos de formação politica como
para reuniões do Comité Central do PCP. Lá havia um núcleo de portugueses
residentes (intelectuais e estudantes) que Cunhal controlava à distância. Esses
portugueses tinham vindo a acompanhar entusiasticamente o processo de
democratização do regime checo e, como militantes do PCP, não esperavam outra
coisa do seu Partido que não fosse um apoio às reformas de Dubcek e a
condenação de uma possível reacção hostil do Pacto de Varsóvia.
Pois foi um balde de água bem fria que lhes
caiu no ânimo quando perceberam que tudo se passaria ao contrário do que
previam – ou mais propriamente do que desejavam. Ainda por cima tinham sido os
últimos a saber da posição do PCP.
Como os militantes do PCP na
Checoslováquia, também os núcleos de comunistas portugueses residentes noutros
países da Europa, Suiça, França, Roménia, caíram das nuvens, primeiro com a
invasão soviética e mais amargamente ainda como apoio do PCP a essa invasão.
Quanto aos esquerdistas, já em conflito
aberto com o Partido após os acontecimentos de Maio em Paris, desaprovavam
tanto a abertura do regime checo como a invasão soviética que o reprimia. À
primavera de Praga consideravam um intolerável desvio revisionista de direita.
E à invasão condenaram-na porque sim, por isso mesmo, por ser uma invasão.
Em Novembro desse ano, dois meses e tal
passados sobre a invasão da Checoslováquia, Cunhal resolve ir a Praga reunir
com os camaradas locais.
Reunião atribulada que dura mais de três
horas. Cunhal sai do sério, arrepela os cabelos, dá gritos de corça. Os
camaradas querem saber das repercussões para o Partido depois da ocupação da
Checoslováquia; querem saber das consequências do apoio do PCP à ocupação no
interior dos organismos do Partido.
Cunhal desenvolve uma longa fala introdutória que não convence
ninguém. É constantemente interrompido e contestado, Flausino Torres à cabeça.
Vai ao ponto de ordenar a expulsão da sala de um dos contestadores – o que caiu
muito mal, evidentemente.
Flausino Torres, o mais desassombrado,
entesa-se com o seu secretário-geral:
- Escusas de vir
para cá com abraços e apertos de mão, porque quem nunca mais volta a apertar-te
a mão sou eu. Puseste aquele camarada na rua, mas quem devia abandonar esta
sala e a direcção do Partido eras tu.
E os camaradas não
foram de modas: apresentaram queixa formal à direcção do Partido. Exigiram um inquérito interno. O
secretário-geral não revelara consideração pelos argumentos apresentados e
replicara com ironias, esgares de troça, risos escarninhos, argumentos
falaciosos, provocações pidescas. A actividade de Cunhal pautava-se por
atitudes de propaganda de um socialismo autoritário, indignas de um homem
sério; era advogado da ocupação militar e da sujeição de um povo à tirania mais
abjecta (por se chamar de socialista e fraterna); era um dirigente impróprio
que não se comportava com a superioridade requerida pelo cargo. Portanto, um
inquérito a ele, e suspensão imediata do cargo de secretário-geral.
Mas pronto, uma queixa que, tanto quanto se
percebe, não deu em nada, e nem pela cabeça dos membros da direcção do Partido
deve ter passado a ideia peregrina de exonerar Cunhal do cargo de
secretário-geral do Partido.
Serão os comunistas portugueses de Praga a
ter que procurar vida fora da protecção do PCP.
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