domingo, 14 de fevereiro de 2016


               PRAGA, PRIMAVERA DE 1968


 (Pois é, ainda às voltas com o Cunhal “de” Pacheco Pereira. É que há tanta coisa interessante que o comum das gentes não sabe e que Pacheco Pereira nos revela…)
 
 
A propósito de coerência, lembrei-me agora, até se pode dizer que a direita colaborou o seu bocado no mito de Cunhal. Sim, mas só quando ele já estava velho e quando os grandes calores ideológicos do verão de 1975 eram passado, as sombras “ameaçadoras” de revolução socialista dissipadas, a democracia burguesa instituída e consolidada, e a sociedade de mercado triunfante.
A contribuição da burguesia liberal para a lenda cunhalista incidiu, no fundamental (penso eu), numa qualidade dele absolutamente ideológica mas só perceptível a prazo. A coerência, quero eu dizer. Deplorável a ideologia, inaceitáveis os métodos, sem dúvida alguma, reprovável a acção política, claro que sim, mas de exaltar a coerência do velho combatente comunista, fiel até ao fim aos ideais de juventude, fiel aos seus patrocinadores soviéticos até ao dia em que a voracidade da História os banir do mapa político mundial.
 
 
E no entanto… e no entanto, o líder admirado pela coerência alicerçou muito da sua vida política em duvidosas coerências – para não dizer mesmo incoerências oportunistas. Acho eu, claro. E foi mesmo oportunista que o dissidente esquerdista Francisco Martins Rodrigues lhe chamou um dia e ele ofendeu-se muito.
Cunhal leu as teses do XX Congresso do PCUS como desvio de direita, assim repudiando a linha estratégica de Krutchev. Censurou os militantes e dirigentes que nessas teses haviam embarcado cá em Portugal e expurgou-as da linha do Partido.
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Mas eis que sai de Portugal e se acoita em Moscovo à sombra ideológica e às expensas do PCUS, e logo alinha pelas mesmas teses que em Portugal eram grave e intolerável desvio de direita, e logo apoia a política de Krutchev. Se não militantemente, pelo menos tacitamente, em nome de uma sobrevivência pessoal e política.
Não se sabe se traiu Krutchev, mas a verdade é que rapidamente se colou ao golpe de Brejnev e companhia quando os ventos mudaram.

      Se tinha abandonado o princípio da luta armada e da violência política e abraçado a ideia da coexistência pacífica com Krutchev, pôs-se ao lado de Brejnev quando essa coexistência pacífica foi temperada e as posições face ao imperialismo dos EUA endureceram.
É evidente que as coisas não são tão simples e lineares como isso. A aparente incoerência pode ser apresentada como flexibilidade estratégica. Aliás, nem é outra coisa. Política é movimento. Política pode ser oportunismo táctico, reavaliação das condições, do real. Nada de mais. Foi a coerência possível e a incoerência necessária.
 
 
1967 tinha sido um ano péssimo para o PCP, entre traições e sequentes vagas de prisões e de desmantelamento de células. É muito usada a palavra desespero. Militantes e funcionários não viam resultados práticos das suas acções e sacrifícios. O Partido não atava nem desatava. O regime, ainda que a contas como uma guerra distante, não dava sinais de enfraquecimento, pelo contrário, parecia até fortalecido politicamente no esforço de guerra. Nem sombras de algum passo efectivo a caminho da revolução democrática e nacional, e muito menos em direcção ao socialismo.
 
 
Perspectivava-se para o ano seguinte uma sucessão de acontecimentos a exigir do PCP posições claras – e coerentes. Uma sucessão de acontecimentos de ressonância mundial que irá abalar irreversível e profundamente o Partido nos seus fundamentos. Na sua moral. E na coerência do seu chefe.
Cunhal passou a viver em Paris. Na mais estricta clandestinidade.
 
 
Já não tem tratamento de alta personalidade do comunismo internacional. Em Paris é mais um ilegal sem licença de residência. Com a agravante de ser dirigente de um partido ilegal no seu país, de ser um evadido das prisões do seu país e com uma ordem de expulsão do governo francês pendente contra ele.
 
 
Maio de 1968. Paris em estado de sítio.
 
 
Cunhal a quase nada produzir de teórico como resposta às violentas acções de massas que o movimento comunista não controla. Cunhal está em Paris e assiste. Mas percebe que os acontecimentos excessivos redundarão numa ajuda inestimável aos desvios esquerdistas que ele combate no próprio Partido.
 
 
Cunhal considera o PC francês muito culpado na escalada de violência esquerdista e na posterior recuperação da situação operada por De Gaulle ao impor eleições, as eleições que o PCF deveria ter exigido primeiro. E enfim, o Maio de 68 salda-se por uma vitória para a reacção.
 
 
O PCP apresenta-se confuso. Como foi possível a vitória da reacção depois de tamanhos desmandos aparentemente revolucionários e de tanta mobilização de massas? A resposta estaria na incapacidade de estabelecer com os intratáveis grupelhos esquerdistas (maoistas) plataformas de entendimento e de unidade. O que restava de irrefutável era o enfraquecimento do PCP em face da dita utópica ilusão esquerdista.
 
 
Entretanto, em Praga, também é primavera.
Como não podia mesmo deixar de ser, Cunhal está muito a par do que se passa na Checoslováquia de Dubcek. Tem dúvidas, tem. Mas também tem esperanças. Dúvidas quanto à probabilidade de a situação checa vir a provocar abalos na hierarquia do movimento comunista mundial; esperanças de que as transformações políticas em Praga possam acrescentar um novo élan a esse mesmo movimento comunista mundial. Demonstra mesmo alguma simpatia para com a causa de Dubcek e não se manifesta apologista de um endurecimento soviético.
 
 
Que a Checoslováquia não se estava nada a afastar do trilho do socialismo.
Que o mais que havia eram calúnias do capitalismo.
Que a Checoslováquia continuava na sua cooperação com a URSS.
Que o objectivo vinha no fundamental a ser a correcção dos erros de Novotny e que nada disso era óbice à realização de uma verdadeira democracia socialista fiel aos mandamentos do marxismo-leninismo.
Que a adesão do PCP ao processo checo era total.
 
 
Mas os duros do Partido no interior, muito chegados às posições da URSS, não faziam a mesma leitura dos factos e das consequências deles.
Se a Checoslováquia tergiversava da cartilha soviética, a Roménia outro tanto. Duas feridas abertas no corpo socialista. Do outro lado, com a URSS a pau com a escrita, estavam a Bulgária, a Hungria, a Polónia e a Alemanha de Leste. Os Cinco. O Pacto de Varsóvia. Que se preparava para fazer a cama a quem o contrariasse.
A embaixada soviética em Paris pressiona, insta os comunistas portugueses lá residentes a declararem apoio à eventual invasão da Checoslováquia. Há quem o faça e há quem o não faça e por aí Cunhal entrará em choque com alguns militantes destacados.
Facto indesmentível era a supremacia política e moral dos soviéticos ter vindo a ser placidamente atenuada junto dos partidos comunistas do Ocidente.
 
 
Desde quando? Aí é que está a piada, a contradição, a incoerência: desde o afrouxamento da linha dura, desde o XX Congresso, desde a desestalinização; e agravado o desrespeito, naturalmente, a partir da análise das teses guevaristas e do êxito da revolução cubana e um pouco mas tarde com o rebentar do conflito com os chineses. Daí os PC’s italiano, francês e espanhol, os mais fortes na Europa ocidental, baterem palmas à experiência checa e pensarem muito a sério no que viria a chamar-se de eurocomunismo.
 
 
Mas Cunhal não. Às primeiras sim, ou talvez, mas um não redondo em ultimas res.
Em Praga o tempo corre em vertigem, as mudanças sucedem-se, Maio, Junho, Julho, a abolição da censura como passo muito esclarecedor da embalagem reformista.
Dubcek e os seus vão a Moscovo e ouvem das boas de Brejnev e companhia, incluindo o aviso: ou vocês fazem como a gente quer a bem, ou então… ou então o quê?... ou então temos o caldo entornado e o assunto resolve-se de outra maneira, quem sabe até se um tanto à má fila.
 
 
Mas os senhores do Kremiln estão a falar a sério? Estavam. E a prova de que estavam são os exercícios militares soviéticos muito perto da fronteira com a Checoslováquia, mais a magna reunião dos Cinco em Varsóvia a produzir um ultimato em forma.
Sob o pseudónimo “Alenquer”, Cunhal, clandestino em Paris, trata de mandar directivas à emissora de rádio do Partido, a Rádio Portugal Livre, sediada em Bucareste. E é num rápido desenvolvimento dialéctico do apoio ao desapoio à experiência checa que vai resvalando para a incoerência.
 
 
Começa por recomendar muita cautela na análise da situação. Sabia-se lá o que a situação podia dar e que reviravoltas tácticas o Partido poderia ser obrigado a fazer. Como diz o outro: “sou da sua opinião e da contrária, se for preciso.” Mesmo à portuguesa.
Nem tudo estava certo na ortodoxa posição dos Cinco, e nem os checos estavam capazes de dar garantias quanto à realização plena do socialismo depois das reformas. Primeiro ponto.
 
Não se lhe afigura justa a posição dos Cinco, não, mas nem o apoio incondicional à linha primaveril checa lhe parece absolutamente sensato.
Pôr em dúvida a ditadura do proletariado e inventar um caminho novo para um socialismo pluripartidário que respeite as liberdades burguesas, ora adeus!, é inevitável que crie graves crises intestinas no movimento comunista.
 
 
Erros na orientação anterior dos hierarcas checos chefiados por Novotny? Sim era verdade. Porém, a correcção desses erros estaria a ir demasiado longe na descaracterização do regime e abrindo brechas à penetração activa das forças capitalistas.
A contra-revolução mudara de táctica e afirmava defender o socialismo, paradoxalmente através de todas as medidas que pudessem vir a enfraquecer as defesas de um Estado socialista e facilitasse a conquista de posições – revisão constitucional e eleições livres, nomeadamente – que a breve trecho guindariam essa contra-revolução ao poder. Depois disso, não faltaria muito para que o regime fosse severamente afectado, e por consequência afectada a continuidade da Checoslováquia na órbita socialista.
 

 
Vendo bem, os apoios dos diversos partidos comunistas às reformas checas não estavam a ajudar a Checoslováquia a ver nitidamente os perigos da situação e só incitavam os dirigentes checos a resistirem aos avisos e conselhos do PCUS.
A dar-se o caso da vitória da contra-revolução no diferendo checo tudo mudaria no contexto político da Europa, a correlação de forças seria alterada, a paz no mundo estaria ameaçada.
Nunca na vida a independência de cada um dos partidos comunistas poderia fazer perigar a unidade de conjunto do mundo socialista.
(Perversamente, digo eu, concluir-se-á que a intervenção militar soviética na Checoslováquia é que vem a acelerar a desagregação do mundo comunista.)
Evoluindo na sua visão da conjuntura, Cunhal fustiga duramente o que chama de desvergonha oportunista de alguns notáveis do PC francês (Garaudy, Aragon, Elsa Triolet) que estavam com Dubcek sem compreenderem que apoiar Dubcek era dar uma mãozinha à derrota do socialismo na Checoslováquia.
E os comunistas checos também levavam que contar de Cunhal. Pela passividade ideológica. Pela cobardia mesmo. Pelo culto do anti-sovietismo de braço dado com o exacerbado sentimento nacionalista. Por se terem deixado infiltrar e dominar pelos agentes da direita.
 
                              

(Cunhal era danado a tratar dos desvios de direita.)
Sobra o duro dilema: a intervenção militar soviética iria agitar as águas do mundo comunista e levantar novos problemas, iria; mas a queda da Checoslováquia socialista talvez trouxesse problemas maiores e mais graves ao mesmo mundo comunista.
 
 
Tudo ponderado, e feitas as contas, o PCP apoia a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia. A pelintrice e a subserviência bem portuguesas e a dependência absoluta do PCUS a isso o obriga.
 
 
Praga era ponto tradicional de trânsito de portugueses para a URSS, tanto para frequentar cursos de formação politica como para reuniões do Comité Central do PCP. Lá havia um núcleo de portugueses residentes (intelectuais e estudantes) que Cunhal controlava à distância. Esses portugueses tinham vindo a acompanhar entusiasticamente o processo de democratização do regime checo e, como militantes do PCP, não esperavam outra coisa do seu Partido que não fosse um apoio às reformas de Dubcek e a condenação de uma possível reacção hostil do Pacto de Varsóvia.
 
 
Pois foi um balde de água bem fria que lhes caiu no ânimo quando perceberam que tudo se passaria ao contrário do que previam – ou mais propriamente do que desejavam. Ainda por cima tinham sido os últimos a saber da posição do PCP.
 
 
Como os militantes do PCP na Checoslováquia, também os núcleos de comunistas portugueses residentes noutros países da Europa, Suiça, França, Roménia, caíram das nuvens, primeiro com a invasão soviética e mais amargamente ainda como apoio do PCP a essa invasão.
 
 
Quanto aos esquerdistas, já em conflito aberto com o Partido após os acontecimentos de Maio em Paris, desaprovavam tanto a abertura do regime checo como a invasão soviética que o reprimia. À primavera de Praga consideravam um intolerável desvio revisionista de direita. E à invasão condenaram-na porque sim, por isso mesmo, por ser uma invasão.
 
 
Em Novembro desse ano, dois meses e tal passados sobre a invasão da Checoslováquia, Cunhal resolve ir a Praga reunir com os camaradas locais.
Reunião atribulada que dura mais de três horas. Cunhal sai do sério, arrepela os cabelos, dá gritos de corça. Os camaradas querem saber das repercussões para o Partido depois da ocupação da Checoslováquia; querem saber das consequências do apoio do PCP à ocupação no interior dos organismos do Partido.
 
                             
 
        Cunhal desenvolve uma longa fala introdutória que não convence ninguém. É constantemente interrompido e contestado, Flausino Torres à cabeça. Vai ao ponto de ordenar a expulsão da sala de um dos contestadores – o que caiu muito mal, evidentemente.
 
                        
Flausino Torres, o mais desassombrado, entesa-se com o seu secretário-geral:
       - Escusas de vir para cá com abraços e apertos de mão, porque quem nunca mais volta a apertar-te a mão sou eu. Puseste aquele camarada na rua, mas quem devia abandonar esta sala e a direcção do Partido eras tu.
       E os camaradas não foram de modas: apresentaram queixa formal à direcção do Partido. Exigiram um inquérito interno. O secretário-geral não revelara consideração pelos argumentos apresentados e replicara com ironias, esgares de troça, risos escarninhos, argumentos falaciosos, provocações pidescas. A actividade de Cunhal pautava-se por atitudes de propaganda de um socialismo autoritário, indignas de um homem sério; era advogado da ocupação militar e da sujeição de um povo à tirania mais abjecta (por se chamar de socialista e fraterna); era um dirigente impróprio que não se comportava com a superioridade requerida pelo cargo. Portanto, um inquérito a ele, e suspensão imediata do cargo de secretário-geral.
 
 
Mas pronto, uma queixa que, tanto quanto se percebe, não deu em nada, e nem pela cabeça dos membros da direcção do Partido deve ter passado a ideia peregrina de exonerar Cunhal do cargo de secretário-geral do Partido.
Serão os comunistas portugueses de Praga a ter que procurar vida fora da protecção do PCP.

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