UM
DESVIO DE DIREITA
E OUTRO DE ESQUERDA
Estou a acabar de ler Álvaro Cunhal, Uma Biografia Política – O Secretário Geral, de José Pacheco Pereira. Leitura
de prazer que me remete para os tempos em que se ouvia à boca (muito) pequena
falar destas coisas e se despertava para uma mitologia de inconformismo, para
uma ansiedade insurrecta inspirada pela aura heroica dos revolucionários (Che
Guevara, Fidel, Cunhal); que remete para o meu tempo pessoal, os 17, 18, 19
anos em que começava a ter alguma consciência do que se vivia para lá de um
triste quotidiano e me iniciava nas leituras e nos amigos de esquerda.
Não que aprecie especialmente o estilo
literário de Pacheco Pereira. Aprecio-lhe o possível rigor documental, a
aprofundada isenção, a evidente estatura de historiador. E já disse: comecei
por gostar da circunstância temporal em que decorre a narrativa, 1960-1968, que
me faz lembrar de mim; ou, se se quiser, da circunstância histórica em que vivi
e quando ser de esquerda ou de direita adquiria civicamente algum sentido –
aliás, muito sentido, todo o sentido – nos emocionantes jogos de absoluto, nas
essenciais diferenças entre o Homem de esquerda e o Homem de direita. Alguma
coisa que, parecendo que não, e apesar de muito diluída, ainda se reflecte na
vida contemporânea.
A entrada dos anos 60 deve ter dado
terríveis dores de cabeça a Salazar. Logo em Janeiro de 1960, Álvaro Cunhal, à
frente de uma leva de notáveis do Partido Comunista, empreende a aventurosa
fuga do Forte de Peniche – além dele, Carlos Costa, Francisco Martins
Rodrigues, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Pedro
Soares, Rogério de Carvalho e José Carlos. No ano seguinte, também fogem
rocambolescamente de Caxias mais oito importantes quadros do PCP – por ironia
num carro que Hitler oferecera a Salazar.
Há a intentona de Beja. Há a
frustrada conspiração Botelho Moniz. Há o avião da TAP desviado e os panfletos
lançados sobre Lisboa. Há o assalto ao Santa
Maria. Há a queda de Goa. Começa a guerra em Angola. Há a crise académica.
Fugido do Forte de Peniche, Cunhal vai irromper como um furacão na vida clandestina do PCP. Júlio Fogaça (o vulto comunista por então mais notável com Cunhal preso) e alguns dos que o acolitavam levam com acusações de apostasia, de heresia intolerável, de sacrilégio infame. Em suma, de desvio de direita. Quando se apanhar à solta Cunhal vai fazer-lhes a folha...
Álvaro Cunhal estava preso em Peniche
desde 1949.
Indiferente à sorte dele e à vida tormentosa do Partido Comunista
Português, a vida real continuava. Acontecera em Moscovo o XX Congresso do PCUS
(Partido Comunista da União Soviética), com a ascensão de Nikita Krutchev e o
ajuste de contas com o estalinismo, mais o preconizar uma via pacífica para o
socialismo com a consequente adopção de uma linha política de coexistência
pacífica com os estados capitalistas. Aconteceram as eleições de 1958 e a
explosão do fenómeno Delgado. Houve o falhado golpe da Sé…
E lá estava o motivo para um
ressentimento pessoal. Os órgãos do Partido, sob a orientação de Fogaça, tinham
deixado cair uma campanha para a libertação de Cunhal e comunicado a partidos
estrangeiros o pouco interesse dessa campanha; o nome de Cunhal foi suprimido
do elenco do Comité Central; o nome de Cunhal figurava nas listas de democratas
e não de comunistas. Ele, Cunhal – bom Escorpião - nunca esquecerá afrontas
destas.
O XX Congresso do PCUS (Fevereiro de
1956) e as suas teses vem dar uma alma nova à facção direitista do Partido
Comunista Português, disposta que estava a deixar a iniciativa da luta contra a
ditadura fascista nas mãos dos velhos republicanos e da burguesia liberal. Nada
de atacar as instituições fascistas por se julgar essa a melhor forma de lhes
acelerar a decomposição e assim promover a queda do regime sem luta fratricida.
Entre os dirigentes comunistas a actuar
em liberdade, embora´, evidentemente, em rigorosa clandestinidade, destacava-se
um, esse, Júlio Fogaça, filho da abastada burguesia de província mas comunista
teso e experimentado em prisões, incluindo estadias no Tarrafal. No vazio
hierárquico que resultava da prisão de quadros importantes do Partido, Fogaça,
sem formalmente o ser, fazia as vezes de secretário-geral – lugar vago no Partido
desde a morte de Bento Gonçalves.
Com o Partido sob a orientação
ideológica de Júlio Fogaça, a pronta adaptação das teses do XX Congresso do
PCUS à realidade portuguesa enfermou da pecha do mecanicismo mais óbvio.
A viragem estratégica da URSS em 1956
viria a ter bom acolhimento na grande maioria dos partidos comunistas irmãos do
Ocidente, com relevo para os partidos espanhol e italiano. No caso particular
do PCI, mais tarde, com Enrico Berlinguer e o chamado eurocomunismo,
redundaria, se a memória me não atraiçoa, no projecto de compromisso histórico
com a direita dominada pelo Partido da Democracia Cristã, hegemónico na
política italiana do pós-guerra, e ainda mais tarde, Maio de 1978, no limiar da
concretização desse compromisso, com o fatal desfecho que foi o assassinato de
Aldo Moro.
A sensação dos dirigentes comunistas
ainda operacionais em Portugal por aquele ano de 1956, faço uma pequena ideia,
devia ser de profunda claustrofobia e doloroso isolamento. Por aí talvez se
possa compreender o cego seguidismo das teses do PCUS e o mecanicismo
programático que se seguiu.
As novas directivas impunham ao
isoladíssimo PCP uma abertura a outras correntes oposicionistas não-comunistas
da sociedade portuguesa, privilegiavam (apesar do óbvio descrédito dela) uma
via eleitoral para a queda do fascismo, esperavam que as contradições
intestinas do regime salazarista se aprofundassem e criassem um novo quadro
político que lhe precipitasse a queda. Era a via pacífica dos comunistas
portugueses de 1956 para derrubar um fascismo estuante de força e altamente
policiado. Nem pensar em golpes, em
putschs militares, em insurreições populares armadas e outros
aventureirismos. Do capitalismo fascista passar-se-ia ao socialismo enquanto o
diabo esfregava um olho, quase automaticamente, no dia de S. Nunca à Tarde.
A adaptação empreendida por Fogaça e
seus companheiros das teses do XX Congresso do PCUS (pelo que tenho lido) foi
mais um momento do atávico e portuguesíssimo provincianismo imitativo, desta
vez revolucionário.
Não lembraria ao careca, vendo os casos
com os olhos de hoje, adaptar de modo mecânico à desgraçada realidade
portuguesa de 1956 as teses elaboradas por uma visão e um alcance de âmbito
planetário, geopolítico, quanto à questão da passagem de uma democracia
burguesa e capitalista ao socialismo, e quando o primeiro dos objectivos
programáticos do PCP, estava na cara, era apear não uma democracia burguesa e
parlamentar instalada mas um Estado policial, um regime fascista altamente
repressivo.
E também, como característica bem
portuguesa, a ocorrência de um desvio de direita motivado pela aplicação das
teses do XX Congresso iria ter ressonâncias a
la longue na vida do Partido, em muitos casos e circunstâncias envolvendo
embaraçosas ambiguidades que infectavam os princípios de coerência ideológica
que tão caros lhe eram e que tão boa fama lhe deram. Desde logo no dissídio
sino-soviético – o desvio de esquerda, ver-se-ia a prazo, mil vezes mais
perigoso para o partido do que o desvio de direita.
Na questão do desvio de direita havia
Júlio Fogaça e outros. Os outros? Joaquim Pires Jorge, Sérgio Vilarigues,
Octávio Pato, Dias Lourenço, os mais célebres, e todos reabilitados no Partido
(apesar de censurados), à excepção de Fogaça.
Fugido de Peniche, Cunhal reaparecia na
vida do Partido como o pistoleiro vingador da ortodoxia leninista, a disparar
forte e feio contra o desvio de direita e exercendo, ainda não como secretário-geral,
uma poderosa influência, diga-se, com certos laivos de vingança pessoal. Fogaça
é afastado do secretariado do Comité Central, junto com Cândida Ventura, dois
dos mais encarniçados adversários de Cunhal. A estigmatização dos desviados de
direita ficava facilitada.
Mas a perseguição da PIDE aos foragidos
de Peniche não dava tréguas. E obtinha resultados. Dos evadidos, Francisco
Miguel, Carlos Costa e Guilherme Costa Carvalho são recapturados. Na mesma leva
de prisões são apanhados também os desviacionistas Fogaça e Cândida Ventura.
Teme-se pela liberdade de Cunhal, que não dorme dois dias na mesma casa e que
espera ansiosamente a oportunidade (que nunca mais chega) de dar o salto do
país.
A liberdade. Penso eu que a liberdade de
um clandestino perseguido pela polícia política em solidão, sobressalto
permanente, incomunicabilidade (ou comunicabilidade muito condicionada), risco
de ser apanhado, risco até de ser morto, não devia ser vida muito mais doce do
que a prisão. Não sei.
Na ideia dos subscritores do chamado
desvio de direita, o Partido, na sua inflexão estratégica, até tinha prestado
um alto serviço ao país ao declarar como possível uma via de transição pacífica
do fascismo para a democracia enquanto primeiro passo para o socialismo, e ao
confiar na via eleitoral e no diálogo com a burguesia liberal para atingir os
objectivos. Ao passo que, no ver deles, as teses da violência revolucionária
como única via para apear o regime só tinha afastado da luta muita gente
sinceramente empenhada, gente que passara a olhar o Partido com desconfiança,
minando assim a sagrada unidade antifascista.
A querela passava também pelos modos de
transição. Pela via pacífica deitar-se-ia abaixo o regime e uma democracia
seria inaugurada, muito bem, mas o cerne do problema poderia estar na transição
a seguir, a da democracia burguesa representativa para o socialismo. E aí
funcionava a desconfiança das outras forças políticas nacionais. Conquistada a
democracia só seria de esperar do Partido uma traição, “uma facada nas costas”.
Pergunta crucial dos subscritores do
desvio de direita: desejaria na verdade o Partido o derrube do fascismo, ou
seria que a manutenção do regime de ditadura fascista era um benefício para o
Partido?
Segue a crítica ao desvio de direita.
Como poderia o fascismo cair pacificamente? A adopção da tese do XX Congresso
do PCUS não passava de uma transposição mecanicista e inviável para uma
realidade concreta e singular, como era o caso português. Não estava em questão
uma passagem do capitalismo ao socialismo. O objectivo primeiro, a mais urgente
tarefa do proletariado português e da sua vanguarda, o Partido Comunista, era o
derrube de uma ditadura fascista visando a conquista das liberdades políticas.
Haveria a distinguir entre uma revolução
proletária e uma revolução democrática. E nem as teses do XX Congresso (segundo
Cunhal) haviam declarado a validade universal da via pacífica. Às teses do XX
Congresso opunha Cunhal o princípio leninista das etapas de uma revolução e a
obrigatoriedade de interpretar as condições sociais e políticas concretas de
cada país.
O desvio de direita, por exemplo, para
Cunhal, fora impeditivo de um melhor aproveitamento pelo Partido da crise do
regime na sequência do fenómeno Delgado, um momento político que exigiria do
Partido um acrescento de combatividade e um capaz enquadramento dos movimentos
populares.
Mas o caso é que, passada a crise do
emergente Delgado, o regime recuperava, desmentia em toda a linha os rumores de
desagregação que os defensores da vida pacífica tinham esperado.
Retomando práticas de fins dos anos 40,
os militantes traidores podiam aparecer misteriosamente mortos num qualquer
beco da margem sul. A prisão do chefe de fila dos desviados pela direita, Júlio
Fogaça, verifica-se em duvidosas circunstâncias, na Nazaré, estava ele na
companhia do amante - além do desvio de direita, Fogaça tinha no cadastro um
desvio homossexual notório: “pederasta passivo”, rezava a ficha dele na PIDE;
se fosse activo talvez fosse mais bem visto… - levantando logo os inimigos de
Cunhal a forte probabilidade de Fogaça ter sido denunciado pelos camaradas. O
mesmo poderá ter acontecido quando da prisão de outra destacada militante fora
da linha de Cunhal, Cândida Ventura, que sempre suspeitou de ter sido
denunciada pela direcção do Partido.
Após estas prisões, imediatamente o
Partido manifesta a sua ambígua solidariedade para com os camaradas presos e
lança uma campanha para a libertação de Fogaça e de Cândida Ventura – aquilo
que estes não tinham feito quando da prisão dele, Cunhal.
Cunhal faz-se eleger secretário-geral e
nas reuniões secretas do comité central de Março de 61 assentam-se as bases
para reformulação teórica de combate ao desvio de direita. A dita via pacífica
como fórmula para a instauração do socialismo em Portugal é abandonada e
substituída pelo princípio algo nebuloso do levantamento popular armado.
Havia que reforçar o centralismo
decisório contra as tendências chamadas anarcoliberais que o desvio de direita
permitira, com sérios reflexos de tipo disciplinar na clandestina, e
atribulada, vida partidária. O Partido aburguesara-se, as nomeações e promoções
eram facilitadas, a tendência para um rotativismo e um nivelamento por baixo
dos quadros, independentemente das capacidades de cada dirigente, era um
eflúvio pequeno-burguês que teria de ser erradicado o mais brevemente possível.
Num manifesto ao povo apelando a um
movimento de massas, o Partido dá por consumada a viragem estratégica com o
abandono da via pacífica e determinando como tarefa mais urgente o assalto ao
poder. Esse assalto só poderia lograr efeitos por meio de uma acção armada que
neutralizasse os sectores militares afectos ao regime e contasse com a
participação de militares a esse regime evidentemente desafectos. As massas
ansiavam por uma reviravolta radical na situação política.
Com todos os cuidados de segurança e
rodeado do máximo secretismo o superperseguido Álvaro Cunhal consegue sair do
país. Dezembro de 1961.
Vai para Moscovo mas passa primeiro por Paris, onde se
indigna pela pouca atenção que Maurice Thorez, chefe do PCF, lhe presta.
Em Moscovo, e tendo em atenção as
dramáticas dificuldades atravessadas pela URSS em matéria de habitação, pode
dizer-se que o PCUS dispensa a Álvaro Cunhal um tratamento VIP, a começar pelo
apartamento mobilado de quatro assoalhadas que lhe destina na Vorobyovskaia
Shossé e a culminar no salário que lhe atribui de 500 rublos, mais 150 dele
para a secretária, mais valiosas prendas do partido soviético, mais automóvel e
motorista.
Era um senhor. Não deixaria Moscovo nos
tempos mais próximos. Os altos comandos soviéticos não o queriam em Portugal
tão cedo, receosos pela segurança dele. Como se sabe, só regressará após o 25
de Abril, depois de passar por Praga, Bucareste, Paris.
Em Moscovo, deixados para trás os anos
de cativeiro, de perseguição e de profunda clandestinidade, Cunhal rejuvenesce.
Veste bem, entretém-se com fotografia e desenho. Escreve, muito. Lê, muito.
Brinca com a filha. Passeia com a companheira. Vai ao cinema. Fuma. Está uma
celebridade no movimento comunista, um herói. Bebe do fino, priva com os
principais dirigentes comunistas mundiais, e é ouvido por eles.
O homem que combateu as teses
krutchevianas do XX Congresso do PCUS vai viver, ele e o Partido, às sopas do
mesmo PCUS. Mas é assim a política. Ou seja, a vida. Enquanto em Portugal a
PIDE prossegue nas suas razias entre os clandestinos funcionários e dirigentes
do PCP.
Mas o desvio de esquerda está a bater à
porta. Uma coisa era a aplicação automática das teses da via pacífica num
pequeno e insignificante país oprimido por uma ditadura fascista e com a
polícia política à perna, e outra coisa era a aplicação da mesma coexistência
pacífica no contexto da política mundial e na vida do movimento comunista sob a
hegemonia da URSS.
Os chineses começaram então a levantar
cabelo. Contestavam essa hegemonia soviética. E a trave mestra dessa contestação
radicava justamente nessa via pacífica para o socialismo, ou na coexistência
pacífica entre sistemas político-económicos diferentes, o que também se chamou
de guerra fria.
Discordando da linha do PCUS na sua
aplicação em Portugal, Cunhal não pôde deixar de concordar com ela quando o que
estava em causa era o equilíbrio mundial e tudo era feito para evitar o
afrontamento entre capitalismo e socialismo pela via da violência revolucionária
e à sombra aterradora das armas nucleares.
Da discordância com Krutchev, Cunhal e o
PCP tornam-se circunstancialmente krutchevistas.
Se a linha cunhalista contestava aos
seus concorrentes na direcção do Partido a versão nacional da coexistência
pacífica, apreciada como um desvio de direita na ortodoxia comunista, por outro
lado, nem pela cabeça lhe passava marginalizar-se, isolar-se, desafiando
frontalmente as teses do PCUS, ou acusar o PCUS de desvios de direita na gestão
do movimento comunista.
Ao PCP não restava alternativa outra
senão manter e aprofundar a ligação ideológica com o comunismo mundial sob a
asa protectora do PCUS, não falando já da questão material, quer dizer, dos
auxílios financeiros aumentados. Do apoio do PCUS ao PCP de 35.000 dólares em
1959, devido ao prestígio de Cunhal passava-se, em 1962, a um apoio de 60.000
dólares, mais apoios logísticos diversos e a criação de uma estação de rádio
própria.
Diziam os chineses (entre outras coisas,
evidentemente) que até estaria muito bem o proletariado querer a solução
pacífica dos conflitos internacionais e na implantação do socialismo, o bico de
obra era se a burguesia estaria por esses ajustes. A isto replicava a ortodoxia
soviética que o problema não seria tanto saber se a burguesia aceitava ou não a
solução pacífica, e sim saber se o proletariado mundial teria força suficiente
para impor tal solução. Quem, afinal de contas estaria em condições de comandar
os destinos do mundo, a burguesia ou o proletariado? E quem estaria em melhores
condições para dirigir esse proletariado, a URSS ou a China?
E caía-se novamente no dilema português
– que de resto marcaria a vida do Partido não sei se até aos dias de hoje. A
transição pacífica do capitalismo para o socialismo era de admitir, sim,
dependendo das condições objectivas e subjectivas de cada país. Porém, em
Portugal não era exactamente esse o problema central. O problema era o derrube
de uma violenta ditadura fascista. Por meios pacíficos? Brincamos?
Em última análise, concede-se que a
transição desejada possa acontecer pacificamente, o que não queria dizer que se
afastasse in limine a eventual
necessidade de recurso a meios violentos.
E tinha mais: a linha de coexistência
pacífica em Portugal só criaria ilusões arriscadas, só abrandaria a
combatividade das massas, só levaria à passividade e ao oportunismo.
Que fazer?
Um levantamento popular armado. Solução
a que alguns dos partidos comunistas europeus pró-soviéticos torciam o nariz,
censurando nas suas publicações os artigos de Cunhal em que o assunto vinha à
baila. A ideia do levantamento nacional armado, em toda a sua abstracção (acho
eu), cheirava por demais a chinês e a albanês. E Cunhal queixa-se da
incompreensão dos partidos irmãos quanto à complexa particularidade do caso
português.
O eventual alinhamento da URSS com as
teses chinesas seria o prelúdio de uma guerra atómica de consequências
catastróficas. Cunhal chega a dizer (quando o Partido sente na própria carne as
primeiras agulhadas do esquerdismo maoista) que aqueles que se dispusessem a
alinhar com a China estariam a comprometer-se com a iminência de uma guerra
nuclear: não passavam de uns loucos.
Era verdade que o oportunismo e o desvio
de direita traziam os seus perigos, mas não deixava de ser também verdade que o
dogmatismo maoista poderia constituir para o movimento comunista um perigo de
maior envergadura.
O PCP dependia crescentemente do PCUS.
Tinha portanto de empreender uma ginástica retórica de considerável monta para
compatibilizar a ortodoxia das suas posições de restrito âmbito nacional com as
directivas do comunismo à escala mundial. A URSS queria-se no papel de grande
campeã da paz através de uma política de coexistência pacífica. O socialismo
nunca por nunca se poderia dissociar da paz.
E o antisovietismo entrava na ordem do
dia. Começara a manifestar-se nos primórdios do decénio de 60 a partir do
sector intelectual do Partido - antisovietismo que Pacheco Pereira não se
esquece de acentuar não ser sinónimo de anticomunismo. Passados os
acontecimentos contrarevolucionários e antisoviéticos de 1956 na Hungria, a
estrela orientadora e o prestígio libertador da URSS e do PCUS começam a perder
fôlego. Mais tarde, em 68, será a vez da Checoslováquia, a machadada fatal no
prestígio da URSS.
Mas havia no PCUS, evidentemente, quem
andasse a fazer a cama a Nikita Krutchev.
Se Cunhal teve alguma coisa a ver com
a conspiração não se sabe - ou pelo menos Pacheco Pereira, não o explicita -
mas a mim não surpreenderia se tivesse. Nunca afrontara Krutchev nem a direcção
do partido soviético, é verdade, e compreende-se facilmente porquê, em vista
das dependências de toda a ordem do PCP. E se Krutchev não era o homem do ideal
do chefe do PCP, também era certo que a cúpula soviética krutchevista trazia o
herói do comunismo português mais ou menos debaixo de olho e via-o com certa
reserva ideológica – ele ter chamado desvio de direita à aplicação em Portugal
da linha política saída do XX Congresso ainda lhes estava atravessado na
garganta.
Nas gargantas de Brejnev, Suslov,
Ponomariev, Shelepin e mais alguns também ainda estava atravessado o “discurso
secreto” de Krutchev em Fevereiro de 56 que atirara Stalin para as ruas da
amargura e instituíra a transição pacífica para o socialismo. E eles dão o golpe.
Por essas e se calhar por outras.
No dia 14 de Outubro de 1964, Krutchev
cai. Cai sem estrondo nem violência. Exila-se no interior.
Krutchev cai, Cunhal fica nas suas sete
quintas, aumenta a cotação pessoal e política junto dos novos senhores do
Kremlin, e assim o PCP se liberta das amarras que o subalternizavam face ao PC
espanhol no quadro do movimento comunista mundial.
E se a nova direcção do PCUS começou por
dar continuidade à linha de Krutchev, bem cedo iria marcar distâncias dessa
linha com uma maior crispação no tocante ao imperialismo americano (já com o
Vietnam na ordem do dia) e apoiando mais efectivamente os partidos comunistas e
os movimentos que combatiam esse imperialismo, e porque se a URSS queria
manter-se à testa do movimento comunista a urgência máxima estava em isolar
ideologicamente a China.
Uma das palavras de ordem na literatura
do PCP desde sempre e até bem depois do 25 de Abril – não sei se ainda hoje – é
“unidade”. Uma unidade, ou um conceito de unidade, que instala as mais fundas
suspeições nas outras forças políticas antisalazaristas. Suspeições que eram
facadas na consciência da burguesia liberal.
O conceito cunhalista de unidade
implicaria, na prática, e dada a experiência e o know-how logístico e político do Partido, uma supremacia comunista
na condução das acções, com a imposição programática logo à cabeça de uma
revolução ainda não socialista, ainda só democrática e nacional.
Lenine exultaria no mausoléu. A unidade
pretendida (apregoada) pelo PCP corresponderia à etapa primeira de um processo
revolucionário de inspiração leninista a caminho de um socialismo que a
burguesia liberal portuguesa, apesar de antifascista, execrava.
A unidade
(antifascista) vai Cunhal procurá-la em Argel, à sombra da personalidade
escorregadia e belicosa do general Delgado.
Depois de lhe ter chamado “general
Coca-Cola”, Cunhal repensa tácticas e estratégias e vai associar-se à trágica
personagem de Delgado e à FPLN no chamado Grupo de Argel (segundo alguns
reaças, o Bando de Argel, com os nomes de cartaz de Piteira Santos, Tito de
Morais, o locutor Manuel Alegre e outros).
Fala do general para o seu médico em
Argel:
- Então diga-me
cá, meu caro doutor Marcelo Fernandes… onde é que eu hei-de dar um tiro no
estupor do Tito de Morais sem o matar?
- Bom, eu diria
num pé…
Estavam as coisas precisamente
naquele pé quanto à unidade antifascista dos exilados políticos em Argel.
Cunhal está com Delgado e a FPLN, e
Delgado só quer ver-se como chefe guerrilheiro. Depois de pensar matar Salazar
e lançar bombas por todo o país, o general pensa numa acção que me parece
querer arremedar qualquer coisa como o desembarque na Normandia no dia D (salvas as devidas
proporções, já se percebe), ou a invasão anticastrista de Cuba que ficou
conhecida como o desastre da Baía dos Porcos (também guardadas as convenientes
distâncias).
Delgado quer comandar uma invasão de
Portugal a partir do Algarve, fiel à teoria da chispa que poderia incendiar o
país e sublevar muitas unidades militares contra o regime – mais ou menos o que
se pretendia no assalto ao quartel de Beja. Cunhal acha o projecto aventureiro,
sem cobertura de massas, sem condições políticas internas para secundar o
golpe.
Delgado evoca a revolução cubana,
reflecte que os partidos comunistas de obediência soviética nunca fizeram porra
de revolução nenhuma, e que mesmo o Partido Comunista Cubano pouco ou nada
riscara para a revolução castrista. E corta com Cunhal. E corta com Argel. E
sai de Argel em busca de sócios de duvidosa reputação conspirativa mas na
aparência bastante inclinados para o acolitar numa revolução imediata.
Desaparece por uns tempos, e em Fevereiro de 1965 o homem que procurava a fama
e a glória dos feitos militares e políticos é miserável e ingloriamente
assassinado nos arrabaldes de Badajoz.
Por falar em Argel, não me admirava que
Salazar risse à gargalhada de cada vez que a PIDE lhe apresentasse relatórios
sobre as rocambolescas actividades da oposição portuguesa exilada em Argel, tal
era a sorte dos desmandos e dos conflitos pessoais e políticos que por lá
corriam.
Entretanto, temos o desvio esquerdista
na cúpula do PCP, que também em Argel se fazia sentir com certo dramatismo por intermédio
de Ruy d’Espinay e João Pulido Valente, que se estavam nas tintas para a
unidade antifascista e queriam a luta armada, já.
Cunhal censurara abertamente os chineses
pela interposta pessoa do ex-membro do Comité Central Francisco Martins
Rodrigues, um dos “aventureiros renegados” que combatiam o PCP.
Francisco Martins Rodrigues, um teórico
marxista-leninista de gabarito que sempre torcera o nariz às teses do XX
Congresso do PCUS, companheiro de Cunhal na temerária fuga de Peniche, foi, por
assim dizer, o primeiro quadro destacado a dar o pontapé de saída para o desvio
de esquerda no Partido. É ele o primeiro comunista português pró-chinês.
Francisco Martins Rodrigues concordava
em princípio com muitas das posições chinesas e não compreendia a orientação
antichinesa do PCP, o que começou a isolá-lo no concerto dos dirigentes do
Partido. Vai daí, toca a desenvolver críticas aceradas e internas ao oportunismo
de Cunhal e do PCP a propósito da iminente guerra colonial e das posições (ainda
hesitantes, talvez, mas a beirar o neo-colonialismo) do Partido face à
descolonização – estamos em Agosto de 61.
Segundo Francisco Martins Rodrigues, era
o PCUS, e por extensão o PCP, quem favorecia a crise no mundo comunista. Também
ele se marimbava para a unidade e era favorável à luta armada e à violência
revolucionária. Começa a criar problemas e a cumprir mal as tarefas partidárias
que lhe cabem – pelo menos disso o acusam os ortodoxos. Manifesta-se a favor da
execução do traidor Rolando Verdial (membro do Comité Central, um dos evadidos
de Caxias, que depois de mais uma vez preso passara a colaborar com a PIDE). O
próprio Francisco Martins Rodrigues vem a executar pessoalmente um traidor e é
chamado por Cunhal de terrorista – o PCP não era um partido de anarquistas nem
de radicais pequeno-burgueses. Incompatibiliza-se com Cunhal quando o chama na cara
de oportunista.
Em Moscovo, Martins Rodrigues não dá um
passo sem ter um esbirro do KGB à ilharga. Teme que o obriguem a ficar na URSS
e faz uma tentativa de chegar à embaixada chinesa em Moscovo no propósito de
para lá fugir. Mas não. Mandam-no para Paris. De Paris apoia os esquerdistas de
Argel e é lá em Paris que toma a decisão de abandonar o Partido. Acusam-no de
roubo – uma máquina de escrever e papeladas. Vai trabalhar para uma fábrica por
uns tempos e depois dedica-se por inteiro à política. Chega vivo ao 25 de Abril
e funda o PCP-ml.
Tenho a impressão de que toda a
inquietude e todos os empolgantes acontecimentos daquele (para mim saudoso) verão
quente de 1975 foi uma sequela muito viva, ainda, dos conflitos decorrentes da
magna questão dos desvios de direita e de esquerda no PCP dos anos 50 e 60.
Chegado a 1968, Cunhal prevê o que se irá
passar na Checoslováquia e apoia a URSS no caso. Percebe que o movimento
comunista entrou em crise profunda e não quer contribuir para lhe apressar a
queda. Prepara-se é para pisar os terrenos antes proibidos da acção armada, da
violência revolucionária, do terrorismo, cavalgando a onda do desvio de
esquerda que tinha ardentemente fustigado. É criada a ARA. Implicitamente,
Cunhal reconhece a razão estratégica dos desviados de esquerda a quem nos anos
60 chamara de terroristas.
Já nos tempos de Marcelo Caetano o PCP
perde posições nas lutas académicas em confronto com os maoístas, mas aparece
finalmente à luz do dia em 25 de Abril, aureolado de mitologias passadas. Será um PCP debilitado, mas o povo em geral não sabe disso. A campanha de propaganda é intensa, de forma a que esse povo compreenda que é o PCP
a única força política organizada, dinâmica, mobilizadora
de massas e com ojectivos estratégicos no marasmo imobilista da sociedade
portuguesa.
(Na lógica dos antigos tempos de esquerda
e direita radicalizadas e façanhudas, em que os ditames programáticos eram
letra de lei, não sei se Jerónimo de Sousa, já sem o respaldo do PCUS, não estaria
à bica para ser expulso do Partido ao desviar-se para a direita no seu
compromisso histórico de incidência parlamentar e de viabilização de um governo
PS. Que diriam os anos 60 a isso? Que diria Cunhal a isso?)
A fama de estalinista nunca abandonaria
a figura de Álvaro Cunhal até ao fim da sua vida política. Isto, claro, do
ponto de vista da direita dos interesses, porque do ponto de vista da esquerda
mais pura e dura foi a fama de revisionista e contra-revolucionário que lhe
ficou, e quando, ao ler o livro de Pacheco Pereira, fico com a convicção de que
tanto um como outro dos pontos de vista não andavam fora da verdade. É nisto
que está piada. Foi isto que contou para o carisma político, para o enigma e
para o prestígio pessoal da personagem.
E enfim, era só para recomendar a leitura
deste livro. Mas, calma, recomendá-lo a quem vai ficando velho e ainda persista
em manter acesos os interesses de outros tempos, isto é, a relação memorial e
afectiva com os passados homens de carácter nos enriquecedores dilemas antigos
entre a esquerda e a direita, entre a passividade e a acção, entre o
situacionismo e a revolução, entre o obscurantismo e o (problemático)
aperfeiçoamento do Homem.
Ora bolas, "QUE DIRIA CUNHAL A ISSO?", que diria Cunhal a "isso" (o PCP viabilizar em 2015 um Governo do PS)??
ResponderEliminarDiria obviamente que SIM.
Sim, o Homem que em 1986 teve a coragem e a lucidez de pedir aos Comunistas portugueses que engolissem um "sapo" e votassem no seu mais odiado adversário político pessoal - Mário Soares, claro, que o derrotara definitivamente em 75 no frente-a-frente televisivo -, esse Homem tenho a certeza que não só teria apoiado em 2015 o Governo de Esquerda de António Costa contra a continuação da malfeitoria e da iniquidade moral e política da Direita cavaco-passista-portista, como inclusivamente NUNCA NA VIDA TERIA JUNTADO OS SEUS VOTOS A ESTA MESMA CANALHA NO MANHOSO CHUMBO DO PEC 4 E NO CONSEQUENTE DERRUBE DE JOSÉ SÓCRATES! Que, como todos descobririam tarde demais, apenas serviu para os pôr de novo ao leme, a lamber o POTE... e a foder Portugal!!!
Pois é. A diferença crucial entre Álvaro Cunhal e a maralha, à Direita e à Esquerda, está também e sobretudo aí, na capacidade de destrinça entre essência e adereços, entre rumos estratégicos e fogachos tácticos. Que a ao invés Direita tanto confunde, quase sempre em seu benefício, mas muitas vezes para a sua perdição. Felizmente...
E coube agora a Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, em boa hora, repararem essa trágica hora portuguesa do dia 23 de Março de 2011. Que ficará mais nos anais da História de Portugal, do que todas as restantes horas dessa desgraçada presidência do cavaco que serviu de pano de fundo a todas as horas que nos últimos quatro anos e meio nos levaram ao fundo.