segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016


          UM DESVIO DE DIREITA
                                E OUTRO DE ESQUERDA


Estou a acabar de ler Álvaro Cunhal, Uma Biografia PolíticaO Secretário Geral, de José Pacheco Pereira. Leitura de prazer que me remete para os tempos em que se ouvia à boca (muito) pequena falar destas coisas e se despertava para uma mitologia de inconformismo, para uma ansiedade insurrecta inspirada pela aura heroica dos revolucionários (Che Guevara, Fidel, Cunhal); que remete para o meu tempo pessoal, os 17, 18, 19 anos em que começava a ter alguma consciência do que se vivia para lá de um triste quotidiano e me iniciava nas leituras e nos amigos de esquerda.
 
 
Não que aprecie especialmente o estilo literário de Pacheco Pereira. Aprecio-lhe o possível rigor documental, a aprofundada isenção, a evidente estatura de historiador. E já disse: comecei por gostar da circunstância temporal em que decorre a narrativa, 1960-1968, que me faz lembrar de mim; ou, se se quiser, da circunstância histórica em que vivi e quando ser de esquerda ou de direita adquiria civicamente algum sentido – aliás, muito sentido, todo o sentido – nos emocionantes jogos de absoluto, nas essenciais diferenças entre o Homem de esquerda e o Homem de direita. Alguma coisa que, parecendo que não, e apesar de muito diluída, ainda se reflecte na vida contemporânea.
 
 
A entrada dos anos 60 deve ter dado terríveis dores de cabeça a Salazar. Logo em Janeiro de 1960, Álvaro Cunhal, à frente de uma leva de notáveis do Partido Comunista, empreende a aventurosa fuga do Forte de Peniche – além dele, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, Pedro Soares, Rogério de Carvalho e José Carlos. No ano seguinte, também fogem rocambolescamente de Caxias mais oito importantes quadros do PCP – por ironia num carro que Hitler oferecera a Salazar.
 
                                                                 
       
 
             

Há a intentona de Beja. Há a frustrada conspiração Botelho Moniz. Há o avião da TAP desviado e os panfletos lançados sobre Lisboa. Há o assalto ao Santa Maria. Há a queda de Goa. Começa a guerra em Angola. Há a crise académica.
 
 
Fugido do Forte de Peniche, Cunhal vai irromper como um furacão na vida clandestina do PCP. Júlio Fogaça (o vulto comunista por então mais notável com Cunhal preso) e alguns dos que o acolitavam levam com acusações de apostasia, de heresia intolerável, de sacrilégio infame. Em suma, de desvio de direita. Quando se apanhar à solta Cunhal vai fazer-lhes a folha...
 

                                                                   
                                                                               
Álvaro Cunhal estava preso em Peniche desde 1949.
 
 
Indiferente à sorte dele e à vida tormentosa do Partido Comunista Português, a vida real continuava. Acontecera em Moscovo o XX Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), com a ascensão de Nikita Krutchev e o ajuste de contas com o estalinismo, mais o preconizar uma via pacífica para o socialismo com a consequente adopção de uma linha política de coexistência pacífica com os estados capitalistas. Aconteceram as eleições de 1958 e a explosão do fenómeno Delgado. Houve o falhado golpe da Sé…
 
 
E lá estava o motivo para um ressentimento pessoal. Os órgãos do Partido, sob a orientação de Fogaça, tinham deixado cair uma campanha para a libertação de Cunhal e comunicado a partidos estrangeiros o pouco interesse dessa campanha; o nome de Cunhal foi suprimido do elenco do Comité Central; o nome de Cunhal figurava nas listas de democratas e não de comunistas. Ele, Cunhal – bom Escorpião - nunca esquecerá afrontas destas.
 
 
O XX Congresso do PCUS (Fevereiro de 1956) e as suas teses vem dar uma alma nova à facção direitista do Partido Comunista Português, disposta que estava a deixar a iniciativa da luta contra a ditadura fascista nas mãos dos velhos republicanos e da burguesia liberal. Nada de atacar as instituições fascistas por se julgar essa a melhor forma de lhes acelerar a decomposição e assim promover a queda do regime sem luta fratricida.
Entre os dirigentes comunistas a actuar em liberdade, embora´, evidentemente, em rigorosa clandestinidade, destacava-se um, esse, Júlio Fogaça, filho da abastada burguesia de província mas comunista teso e experimentado em prisões, incluindo estadias no Tarrafal. No vazio hierárquico que resultava da prisão de quadros importantes do Partido, Fogaça, sem formalmente o ser, fazia as vezes de secretário-geral – lugar vago no Partido desde a morte de Bento Gonçalves.
 
 
Com o Partido sob a orientação ideológica de Júlio Fogaça, a pronta adaptação das teses do XX Congresso do PCUS à realidade portuguesa enfermou da pecha do mecanicismo mais óbvio.
 
 
A viragem estratégica da URSS em 1956 viria a ter bom acolhimento na grande maioria dos partidos comunistas irmãos do Ocidente, com relevo para os partidos espanhol e italiano. No caso particular do PCI, mais tarde, com Enrico Berlinguer e o chamado eurocomunismo, redundaria, se a memória me não atraiçoa, no projecto de compromisso histórico com a direita dominada pelo Partido da Democracia Cristã, hegemónico na política italiana do pós-guerra, e ainda mais tarde, Maio de 1978, no limiar da concretização desse compromisso, com o fatal desfecho que foi o assassinato de Aldo Moro.
 
                                                        
 
A sensação dos dirigentes comunistas ainda operacionais em Portugal por aquele ano de 1956, faço uma pequena ideia, devia ser de profunda claustrofobia e doloroso isolamento. Por aí talvez se possa compreender o cego seguidismo das teses do PCUS e o mecanicismo programático que se seguiu.
As novas directivas impunham ao isoladíssimo PCP uma abertura a outras correntes oposicionistas não-comunistas da sociedade portuguesa, privilegiavam (apesar do óbvio descrédito dela) uma via eleitoral para a queda do fascismo, esperavam que as contradições intestinas do regime salazarista se aprofundassem e criassem um novo quadro político que lhe precipitasse a queda. Era a via pacífica dos comunistas portugueses de 1956 para derrubar um fascismo estuante de força e altamente policiado. Nem pensar em golpes, em putschs militares, em insurreições populares armadas e outros aventureirismos. Do capitalismo fascista passar-se-ia ao socialismo enquanto o diabo esfregava um olho, quase automaticamente, no dia de S. Nunca à Tarde.
A adaptação empreendida por Fogaça e seus companheiros das teses do XX Congresso do PCUS (pelo que tenho lido) foi mais um momento do atávico e portuguesíssimo provincianismo imitativo, desta vez revolucionário.
Não lembraria ao careca, vendo os casos com os olhos de hoje, adaptar de modo mecânico à desgraçada realidade portuguesa de 1956 as teses elaboradas por uma visão e um alcance de âmbito planetário, geopolítico, quanto à questão da passagem de uma democracia burguesa e capitalista ao socialismo, e quando o primeiro dos objectivos programáticos do PCP, estava na cara, era apear não uma democracia burguesa e parlamentar instalada mas um Estado policial, um regime fascista altamente repressivo.
E também, como característica bem portuguesa, a ocorrência de um desvio de direita motivado pela aplicação das teses do XX Congresso iria ter ressonâncias a la longue na vida do Partido, em muitos casos e circunstâncias envolvendo embaraçosas ambiguidades que infectavam os princípios de coerência ideológica que tão caros lhe eram e que tão boa fama lhe deram. Desde logo no dissídio sino-soviético – o desvio de esquerda, ver-se-ia a prazo, mil vezes mais perigoso para o partido do que o desvio de direita. 
          Na questão do desvio de direita havia Júlio Fogaça e outros. Os outros? Joaquim Pires Jorge, Sérgio Vilarigues, Octávio Pato, Dias Lourenço, os mais célebres, e todos reabilitados no Partido (apesar de censurados), à excepção de Fogaça.
Fugido de Peniche, Cunhal reaparecia na vida do Partido como o pistoleiro vingador da ortodoxia leninista, a disparar forte e feio contra o desvio de direita e exercendo, ainda não como secretário-geral, uma poderosa influência, diga-se, com certos laivos de vingança pessoal. Fogaça é afastado do secretariado do Comité Central, junto com Cândida Ventura, dois dos mais encarniçados adversários de Cunhal. A estigmatização dos desviados de direita ficava facilitada.
 
Mas a perseguição da PIDE aos foragidos de Peniche não dava tréguas. E obtinha resultados. Dos evadidos, Francisco Miguel, Carlos Costa e Guilherme Costa Carvalho são recapturados. Na mesma leva de prisões são apanhados também os desviacionistas Fogaça e Cândida Ventura. Teme-se pela liberdade de Cunhal, que não dorme dois dias na mesma casa e que espera ansiosamente a oportunidade (que nunca mais chega) de dar o salto do país.
          A liberdade. Penso eu que a liberdade de um clandestino perseguido pela polícia política em solidão, sobressalto permanente, incomunicabilidade (ou comunicabilidade muito condicionada), risco de ser apanhado, risco até de ser morto, não devia ser vida muito mais doce do que a prisão. Não sei.
Na ideia dos subscritores do chamado desvio de direita, o Partido, na sua inflexão estratégica, até tinha prestado um alto serviço ao país ao declarar como possível uma via de transição pacífica do fascismo para a democracia enquanto primeiro passo para o socialismo, e ao confiar na via eleitoral e no diálogo com a burguesia liberal para atingir os objectivos. Ao passo que, no ver deles, as teses da violência revolucionária como única via para apear o regime só tinha afastado da luta muita gente sinceramente empenhada, gente que passara a olhar o Partido com desconfiança, minando assim a sagrada unidade antifascista.
 
 
A querela passava também pelos modos de transição. Pela via pacífica deitar-se-ia abaixo o regime e uma democracia seria inaugurada, muito bem, mas o cerne do problema poderia estar na transição a seguir, a da democracia burguesa representativa para o socialismo. E aí funcionava a desconfiança das outras forças políticas nacionais. Conquistada a democracia só seria de esperar do Partido uma traição, “uma facada nas costas”.
Pergunta crucial dos subscritores do desvio de direita: desejaria na verdade o Partido o derrube do fascismo, ou seria que a manutenção do regime de ditadura fascista era um benefício para o Partido?
 
Segue a crítica ao desvio de direita. Como poderia o fascismo cair pacificamente? A adopção da tese do XX Congresso do PCUS não passava de uma transposição mecanicista e inviável para uma realidade concreta e singular, como era o caso português. Não estava em questão uma passagem do capitalismo ao socialismo. O objectivo primeiro, a mais urgente tarefa do proletariado português e da sua vanguarda, o Partido Comunista, era o derrube de uma ditadura fascista visando a conquista das liberdades políticas.
 
      

 
Haveria a distinguir entre uma revolução proletária e uma revolução democrática. E nem as teses do XX Congresso (segundo Cunhal) haviam declarado a validade universal da via pacífica. Às teses do XX Congresso opunha Cunhal o princípio leninista das etapas de uma revolução e a obrigatoriedade de interpretar as condições sociais e políticas concretas de cada país.
O desvio de direita, por exemplo, para Cunhal, fora impeditivo de um melhor aproveitamento pelo Partido da crise do regime na sequência do fenómeno Delgado, um momento político que exigiria do Partido um acrescento de combatividade e um capaz enquadramento dos movimentos populares.
 
 
Mas o caso é que, passada a crise do emergente Delgado, o regime recuperava, desmentia em toda a linha os rumores de desagregação que os defensores da vida pacífica tinham esperado.
 
 
Retomando práticas de fins dos anos 40, os militantes traidores podiam aparecer misteriosamente mortos num qualquer beco da margem sul. A prisão do chefe de fila dos desviados pela direita, Júlio Fogaça, verifica-se em duvidosas circunstâncias, na Nazaré, estava ele na companhia do amante - além do desvio de direita, Fogaça tinha no cadastro um desvio homossexual notório: “pederasta passivo”, rezava a ficha dele na PIDE; se fosse activo talvez fosse mais bem visto… - levantando logo os inimigos de Cunhal a forte probabilidade de Fogaça ter sido denunciado pelos camaradas. O mesmo poderá ter acontecido quando da prisão de outra destacada militante fora da linha de Cunhal, Cândida Ventura, que sempre suspeitou de ter sido denunciada pela direcção do Partido.
Após estas prisões, imediatamente o Partido manifesta a sua ambígua solidariedade para com os camaradas presos e lança uma campanha para a libertação de Fogaça e de Cândida Ventura – aquilo que estes não tinham feito quando da prisão dele, Cunhal.
Cunhal faz-se eleger secretário-geral e nas reuniões secretas do comité central de Março de 61 assentam-se as bases para reformulação teórica de combate ao desvio de direita. A dita via pacífica como fórmula para a instauração do socialismo em Portugal é abandonada e substituída pelo princípio algo nebuloso do levantamento popular armado.
 
                                                                                    
 
Havia que reforçar o centralismo decisório contra as tendências chamadas anarcoliberais que o desvio de direita permitira, com sérios reflexos de tipo disciplinar na clandestina, e atribulada, vida partidária. O Partido aburguesara-se, as nomeações e promoções eram facilitadas, a tendência para um rotativismo e um nivelamento por baixo dos quadros, independentemente das capacidades de cada dirigente, era um eflúvio pequeno-burguês que teria de ser erradicado o mais brevemente possível.
Num manifesto ao povo apelando a um movimento de massas, o Partido dá por consumada a viragem estratégica com o abandono da via pacífica e determinando como tarefa mais urgente o assalto ao poder. Esse assalto só poderia lograr efeitos por meio de uma acção armada que neutralizasse os sectores militares afectos ao regime e contasse com a participação de militares a esse regime evidentemente desafectos. As massas ansiavam por uma reviravolta radical na situação política.

Com todos os cuidados de segurança e rodeado do máximo secretismo o superperseguido Álvaro Cunhal consegue sair do país. Dezembro de 1961.
Vai para Moscovo mas passa primeiro por Paris, onde se indigna pela pouca atenção que Maurice Thorez, chefe do PCF, lhe presta.
Em Moscovo, e tendo em atenção as dramáticas dificuldades atravessadas pela URSS em matéria de habitação, pode dizer-se que o PCUS dispensa a Álvaro Cunhal um tratamento VIP, a começar pelo apartamento mobilado de quatro assoalhadas que lhe destina na Vorobyovskaia Shossé e a culminar no salário que lhe atribui de 500 rublos, mais 150 dele para a secretária, mais valiosas prendas do partido soviético, mais automóvel e motorista.
 
 
Era um senhor. Não deixaria Moscovo nos tempos mais próximos. Os altos comandos soviéticos não o queriam em Portugal tão cedo, receosos pela segurança dele. Como se sabe, só regressará após o 25 de Abril, depois de passar por Praga, Bucareste, Paris.
 
 
Em Moscovo, deixados para trás os anos de cativeiro, de perseguição e de profunda clandestinidade, Cunhal rejuvenesce. Veste bem, entretém-se com fotografia e desenho. Escreve, muito. Lê, muito. Brinca com a filha. Passeia com a companheira. Vai ao cinema. Fuma. Está uma celebridade no movimento comunista, um herói. Bebe do fino, priva com os principais dirigentes comunistas mundiais, e é ouvido por eles.
 
 
O homem que combateu as teses krutchevianas do XX Congresso do PCUS vai viver, ele e o Partido, às sopas do mesmo PCUS. Mas é assim a política. Ou seja, a vida. Enquanto em Portugal a PIDE prossegue nas suas razias entre os clandestinos funcionários e dirigentes do PCP.
Mas o desvio de esquerda está a bater à porta. Uma coisa era a aplicação automática das teses da via pacífica num pequeno e insignificante país oprimido por uma ditadura fascista e com a polícia política à perna, e outra coisa era a aplicação da mesma coexistência pacífica no contexto da política mundial e na vida do movimento comunista sob a hegemonia da URSS.
 
                                

 
Os chineses começaram então a levantar cabelo. Contestavam essa hegemonia soviética. E a trave mestra dessa contestação radicava justamente nessa via pacífica para o socialismo, ou na coexistência pacífica entre sistemas político-económicos diferentes, o que também se chamou de guerra fria.
Discordando da linha do PCUS na sua aplicação em Portugal, Cunhal não pôde deixar de concordar com ela quando o que estava em causa era o equilíbrio mundial e tudo era feito para evitar o afrontamento entre capitalismo e socialismo pela via da violência revolucionária e à sombra aterradora das armas nucleares.
 
                                                        
 
Da discordância com Krutchev, Cunhal e o PCP tornam-se circunstancialmente krutchevistas.
 
 
Se a linha cunhalista contestava aos seus concorrentes na direcção do Partido a versão nacional da coexistência pacífica, apreciada como um desvio de direita na ortodoxia comunista, por outro lado, nem pela cabeça lhe passava marginalizar-se, isolar-se, desafiando frontalmente as teses do PCUS, ou acusar o PCUS de desvios de direita na gestão do movimento comunista.
 
                                            
 
Ao PCP não restava alternativa outra senão manter e aprofundar a ligação ideológica com o comunismo mundial sob a asa protectora do PCUS, não falando já da questão material, quer dizer, dos auxílios financeiros aumentados. Do apoio do PCUS ao PCP de 35.000 dólares em 1959, devido ao prestígio de Cunhal passava-se, em 1962, a um apoio de 60.000 dólares, mais apoios logísticos diversos e a criação de uma estação de rádio própria.
 
 
Diziam os chineses (entre outras coisas, evidentemente) que até estaria muito bem o proletariado querer a solução pacífica dos conflitos internacionais e na implantação do socialismo, o bico de obra era se a burguesia estaria por esses ajustes. A isto replicava a ortodoxia soviética que o problema não seria tanto saber se a burguesia aceitava ou não a solução pacífica, e sim saber se o proletariado mundial teria força suficiente para impor tal solução. Quem, afinal de contas estaria em condições de comandar os destinos do mundo, a burguesia ou o proletariado? E quem estaria em melhores condições para dirigir esse proletariado, a URSS ou a China?
 
                                                        
 
E caía-se novamente no dilema português – que de resto marcaria a vida do Partido não sei se até aos dias de hoje. A transição pacífica do capitalismo para o socialismo era de admitir, sim, dependendo das condições objectivas e subjectivas de cada país. Porém, em Portugal não era exactamente esse o problema central. O problema era o derrube de uma violenta ditadura fascista. Por meios pacíficos? Brincamos?
 
 
Em última análise, concede-se que a transição desejada possa acontecer pacificamente, o que não queria dizer que se afastasse in limine a eventual necessidade de recurso a meios violentos.
E tinha mais: a linha de coexistência pacífica em Portugal só criaria ilusões arriscadas, só abrandaria a combatividade das massas, só levaria à passividade e ao oportunismo.
Que fazer?
 
 
Um levantamento popular armado. Solução a que alguns dos partidos comunistas europeus pró-soviéticos torciam o nariz, censurando nas suas publicações os artigos de Cunhal em que o assunto vinha à baila. A ideia do levantamento nacional armado, em toda a sua abstracção (acho eu), cheirava por demais a chinês e a albanês. E Cunhal queixa-se da incompreensão dos partidos irmãos quanto à complexa particularidade do caso português.
O eventual alinhamento da URSS com as teses chinesas seria o prelúdio de uma guerra atómica de consequências catastróficas. Cunhal chega a dizer (quando o Partido sente na própria carne as primeiras agulhadas do esquerdismo maoista) que aqueles que se dispusessem a alinhar com a China estariam a comprometer-se com a iminência de uma guerra nuclear: não passavam de uns loucos.
 
 
Era verdade que o oportunismo e o desvio de direita traziam os seus perigos, mas não deixava de ser também verdade que o dogmatismo maoista poderia constituir para o movimento comunista um perigo de maior envergadura.
O PCP dependia crescentemente do PCUS. Tinha portanto de empreender uma ginástica retórica de considerável monta para compatibilizar a ortodoxia das suas posições de restrito âmbito nacional com as directivas do comunismo à escala mundial. A URSS queria-se no papel de grande campeã da paz através de uma política de coexistência pacífica. O socialismo nunca por nunca se poderia dissociar da paz.
 
                                                      
 
E o antisovietismo entrava na ordem do dia. Começara a manifestar-se nos primórdios do decénio de 60 a partir do sector intelectual do Partido - antisovietismo que Pacheco Pereira não se esquece de acentuar não ser sinónimo de anticomunismo. Passados os acontecimentos contrarevolucionários e antisoviéticos de 1956 na Hungria, a estrela orientadora e o prestígio libertador da URSS e do PCUS começam a perder fôlego. Mais tarde, em 68, será a vez da Checoslováquia, a machadada fatal no prestígio da URSS.
 
 
Mas havia no PCUS, evidentemente, quem andasse a fazer a cama a Nikita Krutchev.
 
 
Se Cunhal teve alguma coisa a ver com a conspiração não se sabe - ou pelo menos Pacheco Pereira, não o explicita - mas a mim não surpreenderia se tivesse. Nunca afrontara Krutchev nem a direcção do partido soviético, é verdade, e compreende-se facilmente porquê, em vista das dependências de toda a ordem do PCP. E se Krutchev não era o homem do ideal do chefe do PCP, também era certo que a cúpula soviética krutchevista trazia o herói do comunismo português mais ou menos debaixo de olho e via-o com certa reserva ideológica – ele ter chamado desvio de direita à aplicação em Portugal da linha política saída do XX Congresso ainda lhes estava atravessado na garganta.
 
 
Nas gargantas de Brejnev, Suslov, Ponomariev, Shelepin e mais alguns também ainda estava atravessado o “discurso secreto” de Krutchev em Fevereiro de 56 que atirara Stalin para as ruas da amargura e instituíra a transição pacífica para o socialismo. E eles dão o golpe. Por essas e se calhar por outras.
No dia 14 de Outubro de 1964, Krutchev cai. Cai sem estrondo nem violência. Exila-se no interior.
 
                                                                    
 
Krutchev cai, Cunhal fica nas suas sete quintas, aumenta a cotação pessoal e política junto dos novos senhores do Kremlin, e assim o PCP se liberta das amarras que o subalternizavam face ao PC espanhol no quadro do movimento comunista mundial.
 
 
E se a nova direcção do PCUS começou por dar continuidade à linha de Krutchev, bem cedo iria marcar distâncias dessa linha com uma maior crispação no tocante ao imperialismo americano (já com o Vietnam na ordem do dia) e apoiando mais efectivamente os partidos comunistas e os movimentos que combatiam esse imperialismo, e porque se a URSS queria manter-se à testa do movimento comunista a urgência máxima estava em isolar ideologicamente a China.
Uma das palavras de ordem na literatura do PCP desde sempre e até bem depois do 25 de Abril – não sei se ainda hoje – é “unidade”. Uma unidade, ou um conceito de unidade, que instala as mais fundas suspeições nas outras forças políticas antisalazaristas. Suspeições que eram facadas na consciência da burguesia liberal.
 
                                                        
 
O conceito cunhalista de unidade implicaria, na prática, e dada a experiência e o know-how logístico e político do Partido, uma supremacia comunista na condução das acções, com a imposição programática logo à cabeça de uma revolução ainda não socialista, ainda só democrática e nacional.
Lenine exultaria no mausoléu. A unidade pretendida (apregoada) pelo PCP corresponderia à etapa primeira de um processo revolucionário de inspiração leninista a caminho de um socialismo que a burguesia liberal portuguesa, apesar de antifascista, execrava.
         A unidade (antifascista) vai Cunhal procurá-la em Argel, à sombra da personalidade escorregadia e belicosa do general Delgado.
 
 
Depois de lhe ter chamado “general Coca-Cola”, Cunhal repensa tácticas e estratégias e vai associar-se à trágica personagem de Delgado e à FPLN no chamado Grupo de Argel (segundo alguns reaças, o Bando de Argel, com os nomes de cartaz de Piteira Santos, Tito de Morais, o locutor Manuel Alegre e outros).
 
 
Fala do general para o seu médico em Argel:
         - Então diga-me cá, meu caro doutor Marcelo Fernandes… onde é que eu hei-de dar um tiro no estupor do Tito de Morais sem o matar?
         - Bom, eu diria num pé…
         Estavam as coisas precisamente naquele pé quanto à unidade antifascista dos exilados políticos em Argel.
Cunhal está com Delgado e a FPLN, e Delgado só quer ver-se como chefe guerrilheiro. Depois de pensar matar Salazar e lançar bombas por todo o país, o general pensa numa acção que me parece querer arremedar qualquer coisa como o desembarque na Normandia no dia D (salvas as devidas proporções, já se percebe), ou a invasão anticastrista de Cuba que ficou conhecida como o desastre da Baía dos Porcos (também guardadas as convenientes distâncias).

Delgado quer comandar uma invasão de Portugal a partir do Algarve, fiel à teoria da chispa que poderia incendiar o país e sublevar muitas unidades militares contra o regime – mais ou menos o que se pretendia no assalto ao quartel de Beja. Cunhal acha o projecto aventureiro, sem cobertura de massas, sem condições políticas internas para secundar o golpe.
Delgado evoca a revolução cubana, reflecte que os partidos comunistas de obediência soviética nunca fizeram porra de revolução nenhuma, e que mesmo o Partido Comunista Cubano pouco ou nada riscara para a revolução castrista. E corta com Cunhal. E corta com Argel. E sai de Argel em busca de sócios de duvidosa reputação conspirativa mas na aparência bastante inclinados para o acolitar numa revolução imediata. Desaparece por uns tempos, e em Fevereiro de 1965 o homem que procurava a fama e a glória dos feitos militares e políticos é miserável e ingloriamente assassinado nos arrabaldes de Badajoz.
 
                                                             
 
Por falar em Argel, não me admirava que Salazar risse à gargalhada de cada vez que a PIDE lhe apresentasse relatórios sobre as rocambolescas actividades da oposição portuguesa exilada em Argel, tal era a sorte dos desmandos e dos conflitos pessoais e políticos que por lá corriam.
 
 
Entretanto, temos o desvio esquerdista na cúpula do PCP, que também em Argel se fazia sentir com certo dramatismo por intermédio de Ruy d’Espinay e João Pulido Valente, que se estavam nas tintas para a unidade antifascista e queriam a luta armada, já.
Cunhal censurara abertamente os chineses pela interposta pessoa do ex-membro do Comité Central Francisco Martins Rodrigues, um dos “aventureiros renegados” que combatiam o PCP.
Francisco Martins Rodrigues, um teórico marxista-leninista de gabarito que sempre torcera o nariz às teses do XX Congresso do PCUS, companheiro de Cunhal na temerária fuga de Peniche, foi, por assim dizer, o primeiro quadro destacado a dar o pontapé de saída para o desvio de esquerda no Partido. É ele o primeiro comunista português pró-chinês.
Francisco Martins Rodrigues concordava em princípio com muitas das posições chinesas e não compreendia a orientação antichinesa do PCP, o que começou a isolá-lo no concerto dos dirigentes do Partido. Vai daí, toca a desenvolver críticas aceradas e internas ao oportunismo de Cunhal e do PCP a propósito da iminente guerra colonial e das posições (ainda hesitantes, talvez, mas a beirar o neo-colonialismo) do Partido face à descolonização – estamos em Agosto de 61.
 
                                                                                      
 

Segundo Francisco Martins Rodrigues, era o PCUS, e por extensão o PCP, quem favorecia a crise no mundo comunista. Também ele se marimbava para a unidade e era favorável à luta armada e à violência revolucionária. Começa a criar problemas e a cumprir mal as tarefas partidárias que lhe cabem – pelo menos disso o acusam os ortodoxos. Manifesta-se a favor da execução do traidor Rolando Verdial (membro do Comité Central, um dos evadidos de Caxias, que depois de mais uma vez preso passara a colaborar com a PIDE). O próprio Francisco Martins Rodrigues vem a executar pessoalmente um traidor e é chamado por Cunhal de terrorista – o PCP não era um partido de anarquistas nem de radicais pequeno-burgueses. Incompatibiliza-se com Cunhal quando o chama na cara de oportunista.
Em Moscovo, Martins Rodrigues não dá um passo sem ter um esbirro do KGB à ilharga. Teme que o obriguem a ficar na URSS e faz uma tentativa de chegar à embaixada chinesa em Moscovo no propósito de para lá fugir. Mas não. Mandam-no para Paris. De Paris apoia os esquerdistas de Argel e é lá em Paris que toma a decisão de abandonar o Partido. Acusam-no de roubo – uma máquina de escrever e papeladas. Vai trabalhar para uma fábrica por uns tempos e depois dedica-se por inteiro à política. Chega vivo ao 25 de Abril e funda o PCP-ml.  
 
 
Tenho a impressão de que toda a inquietude e todos os empolgantes acontecimentos daquele (para mim saudoso) verão quente de 1975 foi uma sequela muito viva, ainda, dos conflitos decorrentes da magna questão dos desvios de direita e de esquerda no PCP dos anos 50 e 60.
 
 
Chegado a 1968, Cunhal prevê o que se irá passar na Checoslováquia e apoia a URSS no caso. Percebe que o movimento comunista entrou em crise profunda e não quer contribuir para lhe apressar a queda. Prepara-se é para pisar os terrenos antes proibidos da acção armada, da violência revolucionária, do terrorismo, cavalgando a onda do desvio de esquerda que tinha ardentemente fustigado. É criada a ARA. Implicitamente, Cunhal reconhece a razão estratégica dos desviados de esquerda a quem nos anos 60 chamara de terroristas.


Já nos tempos de Marcelo Caetano o PCP perde posições nas lutas académicas em confronto com os maoístas, mas aparece finalmente à luz do dia em 25 de Abril, aureolado de mitologias passadas. Será um PCP debilitado, mas o povo em geral não sabe disso.  A campanha de propaganda é intensa, de forma a que esse povo compreenda que é o PCP  a  única força política organizada, dinâmica, mobilizadora de massas e com ojectivos estratégicos no marasmo imobilista da sociedade portuguesa.
(Na lógica dos antigos tempos de esquerda e direita radicalizadas e façanhudas, em que os ditames programáticos eram letra de lei, não sei se Jerónimo de Sousa, já sem o respaldo do PCUS, não estaria à bica para ser expulso do Partido ao desviar-se para a direita no seu compromisso histórico de incidência parlamentar e de viabilização de um governo PS. Que diriam os anos 60 a isso? Que diria Cunhal a isso?)
 
 
A fama de estalinista nunca abandonaria a figura de Álvaro Cunhal até ao fim da sua vida política. Isto, claro, do ponto de vista da direita dos interesses, porque do ponto de vista da esquerda mais pura e dura foi a fama de revisionista e contra-revolucionário que lhe ficou, e quando, ao ler o livro de Pacheco Pereira, fico com a convicção de que tanto um como outro dos pontos de vista não andavam fora da verdade. É nisto que está piada. Foi isto que contou para o carisma político, para o enigma e para o prestígio pessoal da personagem.
 
 
E enfim, era só para recomendar a leitura deste livro. Mas, calma, recomendá-lo a quem vai ficando velho e ainda persista em manter acesos os interesses de outros tempos, isto é, a relação memorial e afectiva com os passados homens de carácter nos enriquecedores dilemas antigos entre a esquerda e a direita, entre a passividade e a acção, entre o situacionismo e a revolução, entre o obscurantismo e o (problemático) aperfeiçoamento do Homem.
 
 

1 comentário:

  1. Ora bolas, "QUE DIRIA CUNHAL A ISSO?", que diria Cunhal a "isso" (o PCP viabilizar em 2015 um Governo do PS)??

    Diria obviamente que SIM.

    Sim, o Homem que em 1986 teve a coragem e a lucidez de pedir aos Comunistas portugueses que engolissem um "sapo" e votassem no seu mais odiado adversário político pessoal - Mário Soares, claro, que o derrotara definitivamente em 75 no frente-a-frente televisivo -, esse Homem tenho a certeza que não só teria apoiado em 2015 o Governo de Esquerda de António Costa contra a continuação da malfeitoria e da iniquidade moral e política da Direita cavaco-passista-portista, como inclusivamente NUNCA NA VIDA TERIA JUNTADO OS SEUS VOTOS A ESTA MESMA CANALHA NO MANHOSO CHUMBO DO PEC 4 E NO CONSEQUENTE DERRUBE DE JOSÉ SÓCRATES! Que, como todos descobririam tarde demais, apenas serviu para os pôr de novo ao leme, a lamber o POTE... e a foder Portugal!!!

    Pois é. A diferença crucial entre Álvaro Cunhal e a maralha, à Direita e à Esquerda, está também e sobretudo aí, na capacidade de destrinça entre essência e adereços, entre rumos estratégicos e fogachos tácticos. Que a ao invés Direita tanto confunde, quase sempre em seu benefício, mas muitas vezes para a sua perdição. Felizmente...


    E coube agora a Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, em boa hora, repararem essa trágica hora portuguesa do dia 23 de Março de 2011. Que ficará mais nos anais da História de Portugal, do que todas as restantes horas dessa desgraçada presidência do cavaco que serviu de pano de fundo a todas as horas que nos últimos quatro anos e meio nos levaram ao fundo.

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