sábado, 30 de abril de 2016


             shakespeare 400 – álvaro cunhal



        Álvaro Cunhal tradutor de Shakespeare. E logo do Rei Lear.
        Que tal?
 
 
        Já há muito quer qualquer coisa parecida me tinha chegado aos ouvidos, imediatamente assolapada pelo capricho das marés do meu esquecimento. Foi preciso a inestimável obra biográfica de Pacheco Pereira para me avivar o conhecimento que nesta tarda idade um homem tem sem saber que o tem.
 
 
        Foi na Penitenciária (a “estrela de seis pontas”), entre 1953 e 1955, que Cunhal deitou mãos à ponderosa tarefa – sem me esquecer de dizer que Shakespeare sempre foi um dos autores caros ao marxismo e aos marxistas.
 
 
        Não faço a mais pequena ideia de como seria o inglês de Cunhal. Fico a saber que recorreu a dicionários e obras várias de consulta levados para a Penitenciária pela irmã, que os requisitava no Instituto Britânico para leitura domiciliária.
        Tradução e notas que, na fé de Pacheco Pereira, chegarão à família de Cunhal e serão passados à estampa em 1962 a coberto de um pseudónimo, Maria Manuela Serpa.
 
                                                           

        Um pseudónimo que é outro dos mistérios da vida de Cunhal. Terá sido o militante Augusto da Costa Dias a entregar o original ao director da edição, Luís de Sousa Rebelo. Terá sido o mesmo Augusto da Costa Dias a sugerir o pseudónimo. Com o agrément de Cunhal não sei, já ninguém se lembra das circunstâncias. Depois do 25 de Abril, Cunhal chegou a ser perguntado sobre isso, não sabia da pessoa, não sabia da autenticidade do nome, não sabia se a pessoa, a existir, seria viva ou morta.
 
 
        É preciso chegar a 2002 para que a tradução veja a luz do dia assinada pelo seu verdadeiro autor. E ainda mais, ilustrada pelo próprio, um admirável desenho da cabeça de Lear.
 
 
        Voltando ainda atrás, à tradição marxista que muito prezou Shakespeare, dizem-me que Marx era um leitor fiel dele, que usava citações dele com profusão, incluindo algumas do próprio Rei Lear – parece que Trotzki também escreveu alguma coisa acerca do mesmo Rei Lear.
 

                        
        Claro que das dificuldades de tradução da obra será escusado falar e nas notas à margem Cunhal vai dando notícia dos espinhos do trabalho. Pacheco Pereira enaltece as prendas literárias de Álvaro Cunhal e salienta os primorosos traços de erudição contidos nas ditas notas.
 
                                    
 
        Aprendo ainda com Pacheco Pereira que nas tais notas à tradução do Rei Lear, Cunhal aflora (obviamente!) matérias ideológicas, a questão do poder, os conflitos de classe na Idade Média, acentuando a “elevação moral dos servidores, em contraste com a perversidade dos seus nobres amos”, detendo-se ainda em considerandos sobre a cegueira, assunto que o interessava – cegueira? Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago, militante comunista, alguma relação, pura coincidência?
 
 
        A figura de Lear fascinava particularmente Cunhal, e para lá da tradução, do prefácio e das notas, há outros escritos de Cunhal em que Lear é chamado à baila.
        Respigo o que li na Biografia Política de Pacheco Pereira:
        O Rei Lear é admirável exemplo da obra de um grande artista assente no espírito criador do seu povo, na fusão do génio individual com o génio popular.
 
 
        Shakespeare viera então dar forma nova, definitiva e superior, animando as velhas lendas com o espírito crítico da Renascença e com um ideal de justiça e humanidade que em O Rei Lear está mais constantemente presente que em qualquer outro dos seus dramas.
 
                                          
 
        Numa colectânea de textos genericamente intitulada A Arte, o Artista e a Sociedade, Álvaro Cunhal torna ao Rei Lear:
 
        
      
       O amor, a amizade, a lealdade, a frontalidade, a coragem, a generosidade, a gratidão, a piedade, o perdão, o remorso, a hipocrisia, a perfídia, o egoísmo, a traição, a crueldade, a ambição cruzam-se numa densa rede de inter-relacionamento e confronto. O Rei Lear convence do que é melhor e do que vale a pena no comportamento do ser humano.
 
                                                               

                              
      Remata Pacheco Pereira, dizendo que a paleta dos excelentes sentimentos que Cunhal observa na peça de Shakespeare é um repositório das qualidades individuais que Cunhal mais prezaria na vida e no trabalho políticos – também uma dialéctica de vícios e virtudes que Cunhal terá utilizado como veio condutor da relação das personagens da sua obra de ficção.
 
 

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