shakespeare 400 – álvaro cunhal
Álvaro Cunhal
tradutor de Shakespeare. E logo do Rei
Lear.
Que tal?
Já há muito quer
qualquer coisa parecida me tinha chegado aos ouvidos, imediatamente assolapada
pelo capricho das marés do meu esquecimento. Foi preciso a inestimável obra
biográfica de Pacheco Pereira para me avivar o conhecimento que nesta tarda
idade um homem tem sem saber que o tem.
Foi na
Penitenciária (a “estrela de seis pontas”), entre 1953 e 1955, que Cunhal
deitou mãos à ponderosa tarefa – sem me esquecer de dizer que Shakespeare
sempre foi um dos autores caros ao marxismo e aos marxistas.
Não faço a mais
pequena ideia de como seria o inglês de Cunhal. Fico a saber que recorreu a
dicionários e obras várias de consulta levados para a Penitenciária pela irmã,
que os requisitava no Instituto Britânico para leitura domiciliária.
Tradução e notas
que, na fé de Pacheco Pereira, chegarão à família de Cunhal e serão passados à
estampa em 1962 a coberto de um pseudónimo, Maria Manuela Serpa.
Um pseudónimo que é
outro dos mistérios da vida de Cunhal. Terá sido o militante Augusto da Costa
Dias a entregar o original ao director da edição, Luís de Sousa Rebelo. Terá
sido o mesmo Augusto da Costa Dias a sugerir o pseudónimo. Com o agrément de Cunhal não sei, já ninguém
se lembra das circunstâncias. Depois do 25 de Abril, Cunhal chegou a ser
perguntado sobre isso, não sabia da pessoa, não sabia da autenticidade do nome,
não sabia se a pessoa, a existir, seria viva ou morta.
É preciso chegar a
2002 para que a tradução veja a luz do dia assinada pelo seu verdadeiro autor.
E ainda mais, ilustrada pelo próprio, um admirável desenho da cabeça de Lear.
Voltando ainda
atrás, à tradição marxista que muito prezou Shakespeare, dizem-me que Marx era
um leitor fiel dele, que usava citações dele com profusão, incluindo algumas do
próprio Rei Lear – parece que Trotzki
também escreveu alguma coisa acerca do mesmo Rei Lear.
Claro que das
dificuldades de tradução da obra será escusado falar e nas notas à margem
Cunhal vai dando notícia dos espinhos do trabalho. Pacheco Pereira enaltece as
prendas literárias de Álvaro Cunhal e salienta os primorosos traços de erudição
contidos nas ditas notas.
Aprendo ainda com
Pacheco Pereira que nas tais notas à tradução do Rei Lear, Cunhal aflora (obviamente!) matérias ideológicas, a
questão do poder, os conflitos de classe na Idade Média, acentuando a “elevação
moral dos servidores, em contraste com a perversidade dos seus nobres amos”,
detendo-se ainda em considerandos sobre a cegueira, assunto que o interessava –
cegueira? Ensaio Sobre a Cegueira, Saramago,
militante comunista, alguma relação, pura coincidência?
A figura de Lear
fascinava particularmente Cunhal, e para lá da tradução, do prefácio e das
notas, há outros escritos de Cunhal em que Lear é chamado à baila.
Respigo o que li na
Biografia Política de Pacheco Pereira:
O Rei Lear é admirável exemplo da obra de um grande artista assente no espírito
criador do seu povo, na fusão do génio individual com o génio popular.
Shakespeare viera então dar forma nova, definitiva e superior, animando
as velhas lendas com o espírito crítico da Renascença e com um ideal de justiça
e humanidade que em O Rei Lear está
mais constantemente presente que em qualquer outro dos seus dramas.
Numa colectânea de textos genericamente intitulada A Arte, o Artista e a Sociedade, Álvaro
Cunhal torna ao Rei Lear:
O amor, a amizade, a lealdade, a frontalidade, a coragem, a
generosidade, a gratidão, a piedade, o perdão, o remorso, a hipocrisia, a perfídia,
o egoísmo, a traição, a crueldade, a ambição cruzam-se numa densa rede de
inter-relacionamento e confronto. O Rei Lear convence do que é melhor e do que vale a pena no comportamento do ser
humano.
Remata Pacheco Pereira, dizendo que a paleta
dos excelentes sentimentos que Cunhal observa na peça de Shakespeare é um
repositório das qualidades individuais que Cunhal mais prezaria na vida e no
trabalho políticos – também uma dialéctica de vícios e virtudes que Cunhal terá
utilizado como veio condutor da relação das personagens da sua obra de ficção.
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