shakespeare
400 – polanski
Nos
dias da sua juventude, inspirado pelo visionamento do Hamlet filmado por Laurence Olivier, Roman Polanski leu quase todo
o Shakespeare em polaco e sempre com ela fisgada:
como é que tudo aquilo resultaria em filme – quer dizer, num filme dele,
evidentemente.
Muitos
anos depois, lembrando as leituras de Cracóvia, aquele Shakespeare, aquele
desafio, entendeu ele que era tempo de deitar mãos ao trabalho.
Passou
em revista as grandes tragédias que já haviam sido tratadas em cinema e
verificou que faltava Macbeth. Ou
antes, a bem dizer não faltava, então e Welles?, então e Kurosawa? Sim, tinham
filmado Macbeth, mas, segundo ele, Polanski, com diferentes graus de sucesso, ou, pelo que me parecia, de fracasso.
Fala
com o produtor Andy Braunsberg.
- E porque não hei-de eu realizar Macbeth?
O
produtor gostou da ideia e lá vão eles para Londres, e depois para Nova York.
Precisavam do apoio de um grande estúdio. Passos dados em vão e voltar pelo
mesmo caminho, Londres, Kenneth Tynan, o afamado crítico e produtor teatral.
Entusiasmo. Estava feito. Tynan colaborava na feitura do guião.
Aquele
era o primeiro trabalho que atraía realmente Polanski desde o bárbaro
assassínio da mulher, Sharon Tate – a escolha da peça não teria sido
indiferente e combinava bem com a tragédia pessoal dele, sem dúvida, e havia de
pagar por isso em termos de crítica nos EUA.
Definir
os inevitáveis cortes em obra teatral tão longa. Evitar os clichés teatrais da tradição. Fazer aparecer os esposos Macbeth
jovens e bem parecidos. Porque, dissera-lhe judiciosamente Tynan, os Macbeth
não sabiam que estavam a viver uma tragédia e sentiam-se às portas do sucesso
previsto pelas bruxas, revelando com o andar dos acontecimentos o lado obscuro
da até aí ignorada natureza de cada um. Bem visto, acho eu.
As
bruxas. Shakespeare resolvera-se por três. Polanski, sem afinidades culturais e
artísticas com a tradição isabelina, achava que três era pouco para dimensão do
grande écran de cinema. Mais bruxas acrescentariam dramatismo à cena.
Cena
do sonambulismo: Lady Macbeth a aparecer nua; símbolo de vulnerabilidade, ou de
intrínseca humanidade; e porque naquela medieva época toda a gente dormia nua –
a camisa de noite era uma convenção teatral, e também porque, no tempo de
Shakespeare, os papéis femininos eram representados por rapazes.
Os
sicários enviados por Macbeth para assassinar Lady Macduff e os filhos traziam
a Polanski memórias de infância no ghetto
de Cracóvia, um oficial SS a passar-lhe em revista o quarto, a fazer vibrar uma
chibata na bota alta, a brincar-lhe desprezivelmente com o urso de peluche.
E se
nos tempos shakespearianos era interdito representar no palco o assassinato de
um rei e tudo se passava fora de cena, em cinema, nos anos 70, fazia todo o
sentido encená-la com o máximo de versão de sangue possível.
Ele
e Tynan de tronco nu (era verão) ensaiaram no escritório várias versões da cena
com uma faca de cortar papel. Os locatários de meia idade das janelas do prédio
fronteiro ficaram a olhar sem acreditar no que viam. Ergui o braço e convidei-os a juntarem-se a nós. À vista da minha
reacção voltaram costas, fingiram que não tinham visto nada, partindo
obviamente do princípio de que as nossas excentricidades faziam parte da
atmosfera sexual que naquela época se vivia em Londres.
Terminada
a escrita do argumento foi mostrá-la aos produtores – que depressa franziam o
sobrolho à menção do nome de Shakespeare. Mas na Playboy Productions gostaram. Acharam o argumento “brilhantemente
acessível”, e foram fechar o negócio a Marbella. As Playboy Productions avançaram milhão e meio de dólares e a
Columbia encarregou-se de distribuir o filme, desembolsando outro milhão.
Problemas
na produção e na rodagem não faltaram. O filme esteve a uma unha negra de ser
acabado por outro realizador. Aí, Polanski prescindiu de um terço dos
honorários. Toda a gente já ouvira falar no azar que comporta uma montagem de Macbeth (o incêndio do Dona Maria!),
Polanski também, e se não acreditava na maldição de Macbeth passou a acreditar
piamente.
Estreia
em Janeiro, em Nova York – um suicídio cinematográfico, segundo Polanski, toda
a gente prefere ficar em casa depois das festividades e das despesas do Natal.
O
envolvimento da Playboy no projecto
também não ajudava, e o público de cinema pensou na aparição de Lady Macbeth na
cena do sonambulismo vestida de coelhinha
Playboy, e todos se preparavam para ver Macbeth
em versão de comédia destravada.
Críticas
amargas. A Newsweek: racionalização de um
impulso psíquico… uma obra de arte à moda de Buchenwald, Auschwitz e dos
criminosos de Charles Manson.
Aquele
filme era a catarse de Polanksi.
Polanski que optara por Macbeth pensando que Shakespeare pelo menos o livraria de
preconceitos quanto a suspeitosas motivações.
Depois do massacre dos Manson era evidente que
qualquer filme que eu apresentasse a seguir seria tratado da mesma forma pela
crítica. Se eu tivesse feito uma comédia teria sido acusado de insensibilidade.
Os
prejuízos financeiros da Playboy
nunca foram recuperados.
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