sábado, 16 de abril de 2016


         shakespeare 400 – jorge luís borges

 


        Ao falar de um antagonismo artístico entre crença e incredulidade, Jorge Luís Borges aponta Coleridge. E em suma, naturalismo, realismo, simbolismo, representação. O espectador assiste à tragédia e sabe muito bem que não é Macbeth que está no palco. E daí, no entender de Borges, começa o jogo. Ninguém me pede para acreditar que é Macbeth himself quem está na minha frente.
 
 
        A Shakespeare nunca terá passado pela cabeça reproduzir o que o Macbeth real alguma vez na vida tivesse dito. Só quis, por palavras, dar a ideia do que Macbeth possa ter sentido, ou o que o verdadeiro Macbeth possa ter dito algum dia.
Shakespeare não procurou o realismo, ou seja, a verdade. Shakespeare saberia que o verdadeiro Macbeth nunca poderia ter falado assim, como ele escreveu, e pela razão óbvia de que Macbeth não era Shakespeare.
 
 
Para Borges, a palavra pode ter equivalências com a música no que se refere à expressão de certos estados de alma. E até de certos sentimentos.
Shakespeare teria pensado: ”vou achar algumas palavras que correspondam aos movimentos de consciência de Macbeth”– disse Borges.
 
 
Borges não considerava Shakespeare um pensador. Shakespeare sentia. E bastava. Sentia mais do que pensava. Sentia e jogava com as palavras. Precisava de palavras para compreender os estados de alma de Macbeth.
A questão do realismo, para Borges, consistia em disseminar algumas circunstâncias que pareciam verdadeiras, circunstâncias um tanto inesperadas que pudessem conferir um efeito de realidade, que é o que se passa frequentemente com Shakespeare. Mais, segundo ele, do que com Racine. Por exemplo.
 
 
Em El Hacedor, Borges interroga a natureza humana de Shakespeare, everything and nothing, ser tudo e nada, ser todos e não ser ninguém.
Ninguém existia nele: por detrás do seu rosto (que mesmo através das más pinturas da época não se parecia com nenhum outro) e das suas palavras, que eram copiosas, fantásticas e agitadas, não havia mais do que um pouco de frio, um sonho não sonhado por alguém.
 
 
Em Londres, Shakespeare habituara-se a fingir que era alguém, e só para que não se descobrisse que na verdade a sua era a condição de ninguém. Em tais condições só poderia ter uma profissão, a de actor. E assim que deixava de ser César ou Tamerlão tornava à condição de ninguém.
Só ele poderia ter criado a cortante personagem de Iago, pondo-lhe na boca as palavras-chave: eu não sou o que sou.
Só ele poderia ter dado vida histriónica ao rei Ricardo ao fazê-lo admitir que na sua pessoa fazia as vezes de muitos.
E Shakespeare morreu e enfrentou Deus.
 
 
E disse-lhe:
- Senhor, eu que tantos homens fui em vão, quero ser um: eu.
E ouviu, ribombante, turbilhonante, a voz mesma de Deus:
- Tão pouco eu o sou. Eu sonhei o mundo como tu sonhaste a tua obra, meu Shakespeare. E entre as formas do meu sonho estás tu, que como eu, és muitos e ninguém.
 
 

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