shakespeare 400 – jorge luís borges
Ao falar de um
antagonismo artístico entre crença e incredulidade, Jorge Luís Borges aponta
Coleridge. E em suma, naturalismo, realismo, simbolismo, representação. O
espectador assiste à tragédia e sabe muito bem que não é Macbeth que está no
palco. E daí, no entender de Borges, começa o jogo. Ninguém me pede para acreditar que é Macbeth himself quem está na minha frente.
A Shakespeare nunca
terá passado pela cabeça reproduzir o que o Macbeth real alguma vez na vida
tivesse dito. Só quis, por palavras, dar a ideia do que Macbeth possa ter
sentido, ou o que o verdadeiro Macbeth possa ter dito algum dia.
Shakespeare não procurou o realismo,
ou seja, a verdade. Shakespeare saberia que o verdadeiro Macbeth nunca poderia
ter falado assim, como ele escreveu, e pela razão óbvia de que Macbeth não era
Shakespeare.
Para Borges, a palavra pode ter
equivalências com a música no que se refere à expressão de certos estados de
alma. E até de certos sentimentos.
Shakespeare
teria pensado: ”vou achar algumas palavras que correspondam aos movimentos de
consciência de Macbeth”– disse
Borges.
Borges não considerava Shakespeare um
pensador. Shakespeare sentia. E bastava. Sentia mais do que pensava. Sentia e
jogava com as palavras. Precisava de palavras para compreender os estados de
alma de Macbeth.
A questão do realismo, para Borges,
consistia em disseminar algumas circunstâncias que pareciam verdadeiras,
circunstâncias um tanto inesperadas que pudessem conferir um efeito de
realidade, que é o que se passa frequentemente com Shakespeare. Mais, segundo ele, do que com
Racine. Por exemplo.
Em El
Hacedor, Borges interroga a natureza humana de Shakespeare, everything and nothing, ser tudo e nada,
ser todos e não ser ninguém.
Ninguém
existia nele: por detrás do seu rosto (que mesmo através das más pinturas da
época não se parecia com nenhum outro) e das suas palavras, que eram copiosas,
fantásticas e agitadas, não havia mais do que um pouco de frio, um sonho não
sonhado por alguém.
Em Londres, Shakespeare habituara-se a
fingir que era alguém, e só para que não se descobrisse que na verdade a sua
era a condição de ninguém. Em tais condições só poderia ter uma profissão, a de
actor. E assim que deixava de ser César ou Tamerlão tornava à condição de
ninguém.
Só ele poderia ter criado a cortante
personagem de Iago, pondo-lhe na boca as palavras-chave: eu não sou o que sou.
Só ele poderia ter dado vida
histriónica ao rei Ricardo ao fazê-lo admitir que na sua pessoa fazia as vezes
de muitos.
E Shakespeare morreu e enfrentou Deus.
E disse-lhe:
- Senhor, eu que tantos homens fui em
vão, quero ser um: eu.
E ouviu, ribombante, turbilhonante, a
voz mesma de Deus:
- Tão pouco eu o sou. Eu sonhei o
mundo como tu sonhaste a tua obra, meu Shakespeare. E entre as formas do meu
sonho estás tu, que como eu, és muitos e ninguém.
Sem comentários:
Enviar um comentário