shakespeare
400 – visconti
No imediato pós-guerra, Luchino Visconti
esteve quase a escrever uma adaptação cinematográfica de Othello – a ser interpretado pelo grande actor francês da época
Louis Jouvet. O projecto não foi para diante, e de novo, em 1965, esteve para
sair um Mercador de Veneza, que
também não fez.
Visconti também perseguia a miragem de um
teatro total, por ver no teatro aquilo que, de momento (o pós-guerra), o cinema
não lhe permitia, uma gama mais alargada de possibilidades expressivas. E será
pelo teatro, e pelas libérrimas ousadias de interpretação de texto e encenação,
que Visconti se impõe primeiramente às atenções do público e da crítica.
Forma uma companhia (Companhia Italiana de
Teatro de Prosa), precisamente a 12 de Novembro de 1946, com sede no Teatro
Eliseo de Roma. Arranca com Dostoievski, Crime
e Castigo - Rina Morelli, Paolo
Stoppa, Massimo Girotti, Giorgio de Lullo, Franco Interlenghi e outros no
elenco (Gassman e Mastroianni chegariam mais tarde). Segue com Tennessee
Williams; Cocteau, Alfieri, Goldoni, Sartre, Camus, Ibsen, Musset John Ford,
Dumas, Verga, PIrandello…
Era (foi) coisa artística importante, mas por
agora só me interessa Shakespeare.
1948. Teatro Eliseo. Novembro e Dezembro.
Shakespeare. Rosalinda, ou As You Like It, ou Come Vi Piace. As discussões e polémicas que suscita vão durar
algum tempo no meio artístico romano, e sobre um nome que vinha marcado de
neo-realismo cinematográfico desde Ossessione
e La Terra Trema.
O realismo no cinema. A fantasia, o
esteticismo, o formalismo no teatro. Quer dizer, o espectáculo pelo
espectáculo. Quer dizer, a fuga ao real (como alguns críticos lhe apontaram), o
recuo perante os temas políticos e sociais, o escapismo ideológico. E por isso
criticado asperamente pelos próprios companheiros de jornada, a revista do PCI Rinascita.
Shakespeare era um veículo para o projecto de
Visconti, a teatralização do real e consequentes problemas técnico-artísticos.
E nessa teatralização do real Shakespeare seria incluído como pretexto para uma
experimentação do fantástico.
Toda a representação era pontuada por
comentários musicais. Depuravam-se os elementos naturalistas. Deslocava-se a
representação dos referenciais históricos e ambientais. Dançava-se. Os
elementos realistas transfiguravam-se em formas e cores. No palco, Gassman,
Stoppa, RIna Morelli, Gabriele Ferzetti.
E o escândalo maior, por assim dizer: a
cenografia de Salvador Dali.
Como a
história é sem tempo, e tanto pode acontecer na grega Arcádia como numa
floresta da Escócia como num bosque dos pintores venezianos, veio-me à ideia
ambientar a peça num outonal século XVIII de cores, de alegria, de melancolia. Um
século XVIII fantasiado e nada histórico.
Dali aceitara a proposta para desenhar
cenários, luzes, adereços e guarda-roupa pela módica soma de um milhão de
liras. E teve a sua quota-parte autoral na encenação pelo que respeitava à
coordenação dos movimentos cénicos com a intensidade colorida da luz em
crescendos e diminuendos de natureza musical. É-lhe portanto devida a atmosfera
crepuscular a que Visconti se referia.
Parece que era uma festa para os olhos, um
espetáculo total, quase uma ópera (a que Visconti chegaria uns anos mais
tarde), em que o texto shakespeariano se não saía diminuído, quase.
É bom que
se tente compreender (o
crítico Vito Pandolfi) porque só assim se
chegará a apreciar devidamente o esforço se não tivesse pesado tanto sobre o
espectáculo a exibição supérflua, o gosto provinciano dos efeitos opulentos e
da super-abundância dos meios.
Outro crítico, Vincenzo Talarico: a arte não se julga pelo gasto milionário da
produção, e faz algum sentido ver grades actores como Rina Morelli, Gassman e
Stoppa misturados com balbuciantes intervenções de amadores.
Foi uma
oportunidade perdida (Giovanni
Gigliozzi) para um Visconti que se mostra
um verdadeiro poeta no insosso Adamo,
ou no inconsistente Zoo di Vetro e
fica como que paralisado por Shakespeare. Talvez por um respeito excessivo.
Era mesmo o que Visconti pretendia, o
encantamento paralisante que se pode obter por meios puramente teatrais, as
sensações visuais e auditivas que conduziam ao sonhado teatro total.
Há muito
que me apeteciam umas férias do cinema, um tempo de repouso que só em Shakespeare
poderia encontrar – notas de
Visconti no programa de sala.
Para ajudar à festa, Visconti encontra Dali
em Roma. Dali que estava e Roma para estudar Bramante, o arquitecto de São
Pedro. Era ele o cenógrafo bizarro e mágico que era preciso. E assim Dali passa
um mês a construir o que ele chama de floresta géometrique em árvores raphaelesques,
mais pastores, cortesãos e cabras atomiques.
E quanto a Shakespeare era preciso dize que As
You Like It, ou Come Vi Piace,
era uma comédia onde nada acontecia, em que as personagens viviam da caça, do
amor e de canções.
Para Gianni Rondolino, conhecido crítico e
estudioso de cinema, as circunstâncias da montagem de Come Vi Piace eram uma reivindicação de liberdade de poder
frequentar paragens estéticas bem distantes das apertadas cartilhas do realismo
socialista. Visconti arrogava-se o artístico direito a novas perspectivas sobre
a realidade humana e social. Por exemplo, a análise estético-teatral da
felicidade. E não, não era uma fuga ao real, era uma urgência de sondar outras
componentes dessa mesma experiência humana.
Um artigo do próprio Visconti sai em Rinascita em Dezembro desse ano de 48, Do modo de encenar uma comédia de
Shakespeare.
Consta
que montando Come Vi
Piace, de Shakespeare, eu abandonei o
neo-realismo. Pois que me perdoem os que simpatizam tanto com estas
terminologias imprecisas, mas… que quer dizer isso de neo-realismo? Deixando de
lado a minha experiência cinematográfica, posso demonstrar que em teatro fiz
neo-realismo até onde me foi possível fazê-lo, e foi quando me servi de
objectos e memórias da realidade que tanto se tinham afastado da convenção
teatral instituída.
No trabalho teatral de Visconti seguem-se
montagens de As Bodas de Figaro (Beaumarchais), Um Eléctrico Chamado Desejo (Tennessee
Williams), Oreste (Alfieri), Morte de um Caixeiro Viajante (Arthur
Miller), La Locandiera (Goldoni),
Medeia (Eurípedes), As Três Irmãs (Tchekov)… até chegar a um novo Shakespeare, Troilus and Cressida, italianizado para Troilo e Cressida, e aproveitando ainda a experiência de Come Vi Piace.
Convidado para um projecto operático, Orlando Furioso, de Vivaldi, no Maio
Musical Florentino, Visconti não se deve ter sentido bastante preparado abordar
o teatro lírico de modo marcante, e talvez porque tivesse ainda algo a dizer no
teatro declamado, e especificamente no mundo de Shakespeare.
Foi o então director do Maio Florentino,
Francesco Siciliani (um dos descobridores da Callas, por sinal), a propor-lhe
nova aventura shakespeariana. Que pensa
de Troilo e Cressida? Terei eu que lhe dizer do quanto um espectáculo desses se
adequaria maravilhosamente às características do ambiente natural dos jardins
de Boboli?
E foi, de facto, à cena Troilo e Cressida, entre 21 e 29 de Junho de 1949, justamente nos
jardins do Palazzo Pitti, em Florença.
Um grandioso espectáculo, como era de
esperar, ao ar livre, em cenografias de Franco Zeffirelli reproduzindo uma
cidade oriental da Idade Média, com os actores a declamar, a correr, a
baterem-se em duelo, entre cavalos e cavaleiros e fragorosas batalhas, no
imenso espaço de uma renovada intenção não só de teatro total como de um
conceito de teatro enquanto festa.
Outra vez o crítico Vito Pandolfi: Visconti, para lá de apreciar os ambientes
faustosos por si próprios e deliciar-se em cerimoniais feudalísticos, tem
tendência para menosprezar o ritmo e o equilíbrio do espectáculo.
Era uma encenação que se subdividia em partes
distintas, em espaços diferenciados, dando ao espectador a liberdade de seguir
mais de perto este ou aquele episódio, esta ou aquela personagem, ou ambiência.
Outra experiência de liberdade, ou
libertação, em face do cânone do realismo socialista a que Visconti começaria a
não querer enfeudar-se por demais. Uma libertação que, no entanto,
compreenderia a contradição aparente com
as concepções dele de um teatro como totalidade.
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