shakespeare 401 – SIR ALEC GUINNESS
No outono de 1955, Alec Guinness desembarca
no aeroporto de Los Angeles para participar pela primeira vez num filme de
Hollywood, O Cisne, com Grace Kelly e
Louis Jourdan.
Chega exausto,
depois de um voo de dezasseis horas desde Copenhaga. A argumentista do filme,
chamada Thelma Moss, foi esperá-lo e levou-o a jantar. Tentaram três
restaurantes de luxo e foram impedidos de entrar: Thelma estava de calças.
Resolveram-se então por um pequeno botequim italiano ainda distante do centro
da cidade onde não se esperavam restrições do género.
Foi um castigo primeiro que lá chegassem e
quando lá chegaram não havia mesa disponível para eles. Estavam para sair e
Guinness diz à companheira:
- Onde iremos jantar
e o que iremos jantar é-me indiferente. O que é preciso é…
Nisto, ouvem um
reboliço de cadeiras e aparece-lhes um jovem loiro de T-shirt e calças de ganga.
- Vocês querem uma
mesa? Podem vir para a minha – o jovem estende a mão, apresenta-se: - O meu
nome é James Dean.
Agradecidos pela
atenção, os dois seguem o rapaz, mas antes de se sentarem à mesa o rapaz faz um
desvio para uma porta e sai para um parque de estacionamento.
- Queria mostrar-vos
uma coisa…
No meio dos outros
carros há um prateado, brilhante, enfaixado em fitas festivas e com um grande
braçado de cravos vermelhos em cima da capota.
- Acaba de me ser
entregue – diz o rapaz, cheio de orgulho. – Estou ansioso por estreá-lo.
Os cravos vermelhos
impressionaram Alec Guinness. O próprio carro pareceu-lhe sinistro. Pergunta ao
rapaz a que velocidade aquela máquina poderia chegar. Aos 240.
Cansado e esfomeado,
e apesar da gentileza do loiro rapaz, Alec Guinness não estava nos seus dias, e
então ouve a sua própria voz dizer:
- Faça-me um favor,
não entre naquele carro – olha o relógio. – São dez horas, estamos no dia 23 de
Setembro de 1955. Se você se mete naquele carro e arranca nele e vai conduzi-lo
até aos 240, será encontrado morto a esta hora da próxima semana.
O rapaz loiro riu
que nem um perdido.
Guinness
desculpou-se. Aquelas palavras, aquela trágica profecia eram sem dúvida devidas
à fome e à falta de sono depois de tão longa viagem.
E lá foram jantar na
mesa do rapaz. E o jantar foi muito agradável. E por todo o jantar o rapaz não
se cansou de falar alegremente de Lee Strasberg e do Actor’s Studio, e nunca
mais se falou do carro.
Uma hora depois
separaram-se. A argumentista estava impressionada. Alec Guinness sentia-se mal
consigo mesmo. Às quatro horas da tarde da quinta-feira seguinte James Dean
estava morto, morto a conduzir aquele Porsche
prateado.
O ego dispara dos
bastidores perseguido pelos seus demónios, impaciência, irritabilidade,
susceptibilidade, frivolidade, preguiça, impulsividade, terror do amanhã, e
irrealismo. Di-lo (disse-o, escreveu-o) Sir Alec Guinness.
É o actor que quer
ser um artista e não passa de um actor.
Ser actor pode começar como sonho de
adolescente e tornar-se modo de vida por mais de cinquenta anos. Mais de
cinquenta anos a saber que um actor não é muito mais do que uma reunião de
elementos diversos, heteróclitos, e de que no total resulta um homem. Que
debita (por vezes interpreta) as palavras de outros homens. Um homem cuja alma
pretende revelar-se mas não pode, não ousa. Um homem e um prestidigitador cheio
de truques, tanto quanto um frio observador da natureza humana. Uma criança? Um
padre desconsagrado que por uma ou duas horas invoca o céu e o inferno para
hipnotizar um rebanho de inocentes criaturas?
Guinness lembra-se
de Peter Sellers como paradigma do actor cujo talento, depois de afirmar o seu
nome, vai entretendo o público na frenética busca da sua identidade.
Identidade. A dele
foi Alec Guinness de Cuffe, adquirida a 2 de Abril de 1914 em Londres, filho de
Miss Agnes de Cuffe e de alguém mais cujo nome não figura no bilhete de
identidade do grande actor.
Sobre os tormentos
identitários de Sir Alec não me alargarei. A história é longa e complicada e é
melhor remeter quem ainda me leia este blog
para Blessings in Disguise, título
original de um dos livros de memórias de Sir Alec de onde extraí as informações
que passarei a expor.
Em Bournemouth viu
um dia a célebre actriz Miss Sybil Thorndike e ficou encantado. E foi vê-la ao
camarim. Queria ser actor.
- Você gosta de
poesia? – pergunta-lhe Miss Sybil. – Conhece os Cenci? – Alec sentiu-se
comprometido. – Pois você precisa de ler muita poesia. Sabe uma coisa, eu
decoro um soneto toda as manhãs. Mas diga lá, de que tipo de poesia é que você
gosta?
Alec tremeu de
desconforto e balbuciou:
- Ó tu, esposa ainda
virgem da serenidade…
E parou. E ninguém
lhe pediu para continuar.
- É um poema
encantador – concedeu Sybil Thorndike. - Mas está na hora do meu chá. Obrigado
por ter vindo. Apareça por cá um destes dias.
Num almoço com ela
no Garrick Club, em Londres, muito mais tarde, já Miss Thorndike estava uma
velhota artrítica, disse-lhe:
- Aldous Huxley
escreveu que um actor não pode ser um homem bom, porque não lhe é permitido
cultivar a própria personalidade e tomar consciência da realidade. Que pensa
disto, Sybil?
- Disparates! Os
actores são seres bons. Sei de alguns que atiram mais para o estúpido. Também
pode ser que os haja más pessoas, mas desses não conheço nenhum. Os nossos
camaradas são boas pessoas.
Em 1938, Alec
Guinness, com um salário de doze libras por semana, estava no Old Vic a
representar sob a direcção de Tyrone Guthrie. Hamlet em trajes modernos. Versão integral. Mais de quatro horas.
- Não! Tu tens que
cantar o texto. Tra-la-la-la. Aliás, é o que não está a ir bem no teu Hamlet.
Tu não o estás a cantar.
Eram seis noites por
semana, mais a matinée de sábado.
Guinness não podia exigir muito às suas pobres cordas vocais.
E foi com esse Hamlet que Alec Guinness esteve em
Lisboa em Janeiro de 1939, integrado na companhia do Old Vic.
Ao
desembarcarem os cenários do navio – tinha de acontecer em Portugal – Guinness
assistiu horrorizado ao espectáculo de os ver “mergulhar majestosamente nas
águas do Tejo”, desaparecendo e emergindo, tornando a desaparecer e a emergir.
Tinha sido um
acidente, mas é significante Guinness dizer que nessa época os britânicos
estavam longe de ser populares em Portugal. Diz ele que por causa da guerra de
Espanha. Que estava a terminar, Barcelona em vésperas de ser tomada pelas
hordas de Franco, para grande contentamento – diz ele – dos lisboetas. O que
foi para ele deprimente. E mais deprimente foi ter visto em Lisboa luxuosos
automóveis britânicos a exibiram ao lado da Union Jack, a bandeira da cruz
gamada, e o pavilhão japonês, mais as bandeiras de Espanha e Portugal unidas.
Nessa altura a
companhia do Old Vic sentiu-se em Portugal estranha, isolada, ameaçada e cheia
de suspeitas quanto aos seus compatriotas a viver em Lisboa.
Daí a oito meses
rebentava a II Guerra. E os espectáculos ainda se fizeram com os salvados do
cenário. Julgo que no Dona Maria.
De Lisboa, a tournée do Old Vic seguiu para Roma, a
tempo de apanharem o luto pela morte do papa Pio XI. Guinness tinha sido
convidado para tomar chá com Mussolini, mas o encontro foi cancelado.
Representaram no
Teatro Valle, Hamlet, em roupagens
modernas, perante uma assistência toda vestida de preto. Muito cumprimentado
pelo diretor de cena pela interpretação de Hamlet, Alec Guinness não
compreendeu a razão dos excepcionais encómios. Que ele representara como nunca.
E Guinness perguntava-se porquê, se tinha feito tudo como sempre fizera.
Reflectindo, concluiu que só poderia ter sido por ver toda a noite diante dele
aquele público vestido de preto. Aquela audiência enlutada pela morte do chefe
da Igreja acordara nele alguma emoção nova que acabara por transmitir ao papel.
Em 1933, Alec
Guinness, com vinte anos, ganhava 30 xelins por semana como empregadeco numa
agência de publicidade e o que ele queria era fazer teatro, teatro a sério,
teatro e do bom.
Pede uma audição na
Real Academia de Arte Dramática com o fito de ganhar uma bolsa por dois anos de
curso gratuito e mais cinco libras por semana. Entrava com uma libra de
inscrição, para começar, e recebia uma lista de excertos de peças para estudar,
Henrique V, As Três Irmãs, Santa Joana
– com mais um texto à sua escolha. Era para daí a quatro meses.
Foi então que teve
uma ideia. Que considerou maluca: quem sabe se John Gielgud não estaria
disposto a dar-lhe umas lições; no mínimo uns quantos conselhos. Era grande
admirador de Gielgud, só o conhecia de nome e de vista, mas sabia onde ele
morava, Saint Martins Lane. Não lhe custa descobrir o número do telefone de
Gielgud. E liga. E Gielgud atende. Mostra-se amável, mas dá-lhe sopa. Diz-lhe:
- Tente com Miss
Martita Hunt. E ouça, ela não detesta dinheiro.
Guinness
apresenta-se a Miss Hunt. Todo penteadinho, fatito coçado, sapatitos
engraxados. Martita Hunt era alta e magra. Estava de blusa de seda azul e
branca, calças de seda azul-rei cortadas à marinheira, sandálias douradas.
- Você não é
propriamente um atleta – diz ela.
- Pois não, lamento.
Mas também só quero ser actor.
- Espero que os seus
sapatos estejam limpos…
- Engraxei-os ontem…
- Mostre-me as
solas.
Ao receber Alec
Guinness, e sem nunca ter ouvido falar dele, Martita Hunt esperava um tipo com
dinheiro e ao verificar as solas dos sapatos do rapaz deve ter-se arrependido.
Guinness dá-lhe
conta da ideia de concorrer à bolsa para a Academia e ela pede-lhe para ler
qualquer coisa. Ele começa a ler um texto que fazia parte do programa da
audição e Martita escondeu a cara. Ó Musa
de fogo… quando falamos de cavalos, quando tu os vês…
- Não vejo nada,
caro senhor, nada – cortou Martita, levantando-se de repente, indo para
Guinness e puxando-lhe o lábio superior. – Não há aqui músculos? Se você quer
ser actor tem que ter músculo no seu lábio superior. Como eu. Você trabalha num
escritório… quanto é que ganha?
- Trinta xelins por
semana.
- Tem outros
recursos?
- Cerca de vinte e
sete xelins por semana, mas por pouco tempo.
- Vou dar-lhe dez
lições de uma hora, a uma libra cada. Uma lição por semana. Começamos amanhã.
Agora pode-se ir embora. Estou à espera de uma pessoa importante.
Alec pediu as dez
libras emprestadas. As lições? Primeiro, libertá-lo dos tiques de amador,
ensiná-lo a pensar como um actor nos textos que tivesse para dizer; ensinar-lhe
que, salvo qualquer imperativa razão em contrário, é o verbo o elemento
dinâmico da frase, e como tal terá o primeiro plano na dicção, antes do substantivo,
sem relevo algum nos pronomes pessoais e deixando os adjectivos e os advérbios
arranjarem-se como puderem.
Mais importante que
tudo o que lhe possa ter ensinado, foi o ter despertado nele, pela
personalidade e pela elevada conversação, interesses artísticos e acesso a um
mundo bastante mais sofisticado do que o dos publicitários que ele conhecia.
Um domingo de manhã,
ia para a sexta lição, Alec chega a casa de Martita e vê a porta entreaberta.
Ouve-a a falar ao telefone, a voz vem do quarto, ela devia estar ainda deitada.
- É você, Guinness?
Entre, entre…
Deitada na cama, um foulard cor-de-rosa em volta da cabeça,
a falar ao telefone. A indicar uma mesinha.
- Meu caro, o seu
dinheiro está ali. As suas dez libras. Pegue nelas e faça-me o favor de se ir
embora. Não posso ensinar-lhe mais nada. Tente alguma coisa numa pequena
companhia de amadores. Ou deixe-se estar na publicidade que talvez seja o
melhor. Enfim, faça como quiser, mas esqueça o teatro profissional.
- Não posso esquecer
o teatro – diz tristemente Alec, fitando-a. – E quero continuar as lições
consigo…
Martita desliga o
telefone.
- É perder o seu
tempo e o meu. Não falando já do seu dinheiro…
- O dinheiro não tem
qualquer importância para mim…
Martita acende um
cigarro.
- Bom. Está bem –
diz, um pouco contrafeita. – Mas hoje não tenho coragem para lhe dar lição.
Venha amanhã à tarde.
E Martita deu a Alec
não só as lições combinadas como fez questão de continuar a dar-lhas por mais
algumas semanas. E quando Alec lhe diz que não tem dinheiro para mais, ela
diz-lhe que não importa, as lições seriam de borla a partir daí. E Alec começou
a pensar que ainda haveria alguma esperança para ele no teatro profissional.
No dia das audições,
nervosíssimo, Alec lá se apresentou na Academia. Foi recebido por uma senhora
de vestido verde.
- O senhor deve ser
Alec Guinness. Tentei comunicar consigo e não foi possível. Era para lhe dizer
que a bolsa a que o senhor queria concorrer não será atribuída este ano.
Desespero.
Encontra uma amiga.
Conta-lhe o caso. A amiga olha para o relógio. Ele que se deixasse de ideias
com a Academia. Ele que corresse a Baker Street. A amiga sabia que nessa tarde
haveria audições no estúdio Fay Compton de Arte Dramática e em que estaria
também em jogo uma bolsa. E dá-lhe a morada. Adeuzinho, gostei muito de te ver,
e ala para Baker Street.
Foi o último dos
vinte candidatos. Claro que declamou os textos preparados para a Academia e
ainda fez uma imitação de um actor então famoso (George Arliss) a representar
de Disraeli.
É submetido a um
interrogatório por um júri e a bolsa é-lhe atribuída. Dois anos de estudos
gratuitos, mas nem um tusto em dinheiro contado.
A partir desse dia,
Alec e Martita ficaram amigos.
Alec recebeu muitos
cumprimentos dos colegas do escritório e despediu-se. Como iria ganhar a vida
nos próximos tempos era um caso a ver.
- Entra pela
esquerda. Não! Não é essa. A outra esquerda. Alguém que lhe explique. Mas
porque é que tu és tão desastrado?
Era – diz Alec Guinness
– uma soberba voz de tenor que dava instruções contraditórias e fazia
comentários acerbos. John Gielgud. A dirigir os seus actores.
- Essa pintura a
ouro mão está mal. Ou antes. Talvez não. Não quero essa pintura. Tu! Vê lá se
páras quieto um minuto! Alec Guinness, tu não falas, tu cacarejas. Banbury, a
tua lança está torta. Sim, agora vais ao centro. Não é contigo! Do outro lado,
sim. Oh, mas porque é que nesta
companhia ninguém sabe representar? Porque é que vocês não procuram alguém que
vos ensine a representar?
Alec sentia-se quase
a soluçar de desespero. Era uma companhia que se propunha fazer Hamlet. Os outros actores eram Jack
Hawkins, Jessica Tandy, George Devine. Nos intervalos do trabalho, ou quando se
sentavam na plateia enquanto os outros ensaiavam, fingiam ler o jornal para
disfarçar o pânico.
Era a primeira vez
que Guinness era dirigido num teatro. E dirigido pelo seu ídolo, pelo homem que
lhe dera a primeira real oportunidade no teatro, o que lhe permitia viver por
dois anos, depois de se ter despedido da agência de publicidade. Viver,
digamos, com menos de 30 xelins semanais num sórdido quarto alugado para os
lados de Westbourne Road.
O caso começa pela
temeridade de Alec quando se dirigiu ao Wyndham Theatre onde Gielgud representava.
Não tinha certeza nenhuma de que Gielgud se lembrasse dele mas ainda assim
apresentou o seu cartão de visita.
Fizeram-no entrar no
camarim do grande actor – que devia estar habituado às visitas intempestivas de
jovens actores à procura de trabalho. Gielgud lembrava-se dele. E foi cortez. E
foi mesmo cordial. Alec contara-lhe a triste vidinha. Havia audições no dia
seguinte de manhã para duplos numa nova peça. Gielgud sugeriu-lhe uma imitação
de Douglas Fairbanks.
Alec foi à audição.
Não era vida para ele. Voltou a falar com Gielgud, que o mandou para outro
destino, para outro colega, Bronson Albery, podia ser que esse Albery lhe
arranjasse um papel numa outra peça. Nada feito, a distribuição estava
completa.
E porque não ir às
audições do Old Vic para um papel em Antonio
e Cleopatra? E Alec foi. Disse duas frases. Ouviu dichotes do encenador,
“você não é actor, o que é que veio cá fazer?, saia imediatamente do palco”.
Quarenta e oito
horas na vida de Alec Guiness em que viveu de duas maçãs e dois copos de leite.
Contou a Gielgud o
que se passara com ele no Old Vic.
- Sabes, eu acredito
em ti. Mas acho-te demasiado magro. Tu não comes o suficiente, rapaz! Toma lá
vinte libras enquanto não te arranjo trabalho…
Era bom dinheiro.
Mas Alec recusa. Questão de orgulho. Como poderia ele alguma vez pagar aquela
dívida? Disse que não, por amor de Deus, agradecia muito mas não tinha a mínima
necessidade de dinheiro.
Naquele tempo, em
Londres, 1934, devia haver teatros porta sim-porta não. Porque Alec passou em
Piccadilly, viu o cartaz de um theatre, entrou e pediu para falar ao director
da companhia. O director recebeu-o. Levou-o para um gabinete. Estendeu-lhe uma
folha de papel. Mandou-o ler o texto que lá estava escrito. Contratou-o como
duplo para todos os papéis masculinos da peça – incluindo um coolie chinês, um pirata francês e um
marinheiro inglês. Três libras por semana. Uma libra de adiantamento que lhe
permite nessa noite bater-se com um belo steak,
batatas fritas e uma cervejola.
Passam-se semanas.
Alec vai a uma récita de Ricardo II no Old Vic. Encontra Gielgud.
- Por onde é que
tens andado, homem? Tenho andado à tua procura por toda a Londres. Quero que me
faças o Osric do Hamlet. Os ensaios começam na segunda feira às oito no New
Theatre.
(Osric é um pequeno
papel de cortesão elegante do reino da Dinamarca.)
Alec Guinness
desliga-se do compromisso com o teatro de Piccadilly e prepara-se para ganhar
com o Osric sete libras por semana. Mal sabia para o que estava guardado
durante os ensaios.
Alec Guinness,
evidentemente admirava e respeitava John Gielgud como grande actor que era. Não
lhe conhecia era a faceta de rigoroso disciplinador, intolerante com a mínima
fraqueza, a mínima negligência. Gielgud era a impaciência personificada. Tinha
então trinta anos e estava no auge da carreira e da popularidade. Não lhe
faltava em nobreza, charme e modéstia – diz Guinness – o que lhe sobrava em mau
feitio.
Uma semana de
ensaios do Hamlet era passada e
Gielgud manda chamar Alec.
- Que é que se passa
contigo? Julguei-te bastante bom para o papel, mas afinal desiludiste-me, és
lamentável. Vai-te embora. Nunca mais te quero ver.
- Desculpe, Mr.
Gielgud… eu… eu estou despedido?
- Não! Sim. Isto é.
Não, claro que não. Mas vai-te embora. Aparece só para a semana. Quer dizer,
não. Sim! Arranja quem te ensine a representar. Vai ter com a Martita Hunt…
Ele já tinha ido. E
nem se atreveria a dizer a Martita o que se tinha passado.
Recolheu ao quarto e
resolveu pôr-se a chorar. E depois, por uma semana, vagueou por todos os
jardins públicos de Londres.
Passada a semana,
com a morte na alma, lá se apresentou aos ensaios.
Gielgud pareceu
encantado por tornar a vê-lo e desfez-se em elogios pela interpretação dele em
Osric, jurando ele que não fizera nada de diferente dos ensaios anteriores que
Gielgud detestara – a vida de teatro, digo eu, é muito isto.
Nos dois anos
seguintes Alec Guinness trabalhou com Gielgud numa quantidade de peças, até
passar uma temporada no Old Vic, e tornando a trabalhar com Gielgud no Queen’s
Theatre, em 1937, Ricardo II, As Três Irmãs e Mercador de Veneza.
Quando fez o Hamlet no Old Vic, dirigido por Tyrone
Guthrie, tanto ele como o seu director sabiam das suas capacidades e
incapacidades.
Guthrie não interferia quase nada na interpretação de Guinness,
só queria aproveitar tudo o que Guinness teria de original a propor para o
papel (que bem pouco era, segundo o próprio Alec Guinness), encorajando-o a
desenvolver as originalidades. Era sabido que
Alec Guinness nunca na vida poderia igualar os efeitos e o brilhantismo
de Laurence Olivier, e tão pouco o que ele chama de rigor clássico na versão de
John Gielgud. Era por demais inexperiente para “levar todo o peso da récita às
minhas fracas costas”.
Quando Guthrie
trabalhara com Olivier no Hamlet
precisara de se entregar à influência de um psicanalista freudiano, Ernest
Jones, alguém que escrevera um ensaio que era uma espécie de Bíblia da
interpretação de Hamlet. Com
Guinness, Guthrie não precisara de tal. Costumava resumir cada um dos grandes
monumentos shakespearianos a uma simples palavra, “inveja” para o Mercador de Veneza; “adolescência” para Romeu e Julieta; “ambição” para Macbeth. E para Hamlet? “Mamã!”.
Mas Guinness
confessa: não fazia mais com Hamlet
do que tentar uma pálida imitação de John Gielgud. E chama Samuel Johnson à
conversa: quase todas as aberrações do
comportamento humano resultam da imitação daqueles com quem nada temos em
comum.
Alec
Guinness lembrara-se de duas coisas para acrescentar ao seu Hamlet. A primeira, a atitude de Hamlet
para com Ofélia, a seguir ao to be or not
to be, no momento em que é costume Hamlet descobrir por acaso que a sua
conversa está a ser escutada por Polónio. Uma interpretação que ele recusava,
porque sentia que nessa cena Hamlet deveria estar convencido da duplicidade de
Ofélia para poder invectivá-la, injuriá-la, ou seja, dar rédea livre à sua
misoginia. Segundo, foi um tambor que num ensaio, inadvertidamente, Guinness e
pôs a rufar e que ficou a marcar um final de acto.
Toda a gente sabe
que Alec Guinness desempenhou deliciosamente o papel do príncipe Faiçal no
filme Lawrence da Arábia, com Peter
O’Toole e Omar Shariff. O que nem toda a gente sabe é que um ou dois anos antes
de rodar o filme, em 1960, Alec Guinness foi o próprio Lawrence numa peça do
dramaturgo inglês Terence Rattigan, intitulada Ross. E para se ambientar à personagem conseguiu o contacto de
alguém que conhecera de perto o próprio T.E.Lawrence, Sir Sydney Carlyle
Cockerell.
- Lawrence? Era um
aldrabão. Um grande aldrabão. E eu até um dia lhe perguntei: porque é que você
mente dessa maneira, homem? Sabe o que ele me respondeu? Que as mentiras dele
eram muito mais interessantes do que a verdade.
Durante a II Guerra Alec Guinness serviu na
marinha como oficial subalterno.
No dia em que foi chamado para o derradeiro
exame como cadete que lhe dava o direito aos galões estava numa pilha de nervos.
Encontra um oficial que era seu conhecido das vidas de teatro e fora também
mobilizado para a marinha, Roger Furse, um dos melhores cenógrafos do teatro
inglês da época e de momento ajudante de campo do almirantado de Portsmouth.
Ao ver Guinness quase em pânico antes de
enfrentar um júri de almirantes reunidos atrás de uma mesa comprida, oficial
Roger Furse que na vida civil era decorador teatral, diz-lhe:
- Não sei porque se enerva. Não tem nada
que saber. Represente simplesmente o papel.
Um conselho simples e admirável que ele
seguiu escrupulosamente durante todo o serviço militar.
Muito mais tarde, já actor mundialmente
famoso, os jornalistas tinham o hábito de lhe perguntar qual tinha sido o
melhor papel que representara…
- O de oficial subalterno… tão pouco
brilhante como eficaz… da Royal Navy. Foi a mais longa peça de toda a minha
carreira.
Nos primeiros anos 30, no teatro inglês, a
nenhum actor principiante passaria pela cabeça tratar o primeiro actor ou
actriz vedeta do espectáculo pelo nome próprio, e nem mesmo teria a lata de se
lhe dirigir sem que essa vedeta lhe tivesse primeiro dirigido a palavra. O
normal era “sim, Miss Evans”, “sem dúvida, Miss Compton”, “faça favor, Mis
Baddeley”. E quando muitas dessas actrizes foram agraciadas com o título de
damas do Império Britânico, ficou “se me dá licença, Dame Edith”, “bom dia, Dame
Peg”, “posso ser-lhe útil, Dame Lillian?”.
Nota Alec Guinness que nos tempos mais
modernos se instalou o estilo do “todos colegas, todos iguais, todos amigos”, e
assim o trabalho, a importância e o sucesso de uma vida inteira foi sendo
ignorado. Democraticamente ignorado.
O caso de Edith Evans. Alec Guinness era um
dos mais fervorosos admiradores de Miss Evans, ou de Dame Edith, e não faltava
a uma estreia em que ela participasse. Até que chegou o dia em que Guinness
integrou a mesma companhia da sua estrela idolatrada, um pequeno papel em Romeu e Julieta, dirigido por John
Gielgud. Teve então o privilégio de observar Edith Evans todas as noites, e sem
que ela alguma vez lhe tivesse dirigido a palavra. Ele abria-lhe as portas para
ela passar sem obter o mínimo aceno, já para não falar de um ”obrigado”. O que
não o chateava nada. Já era motivo de orgulho abrir uma porta que permitisse a
Edith Evans entrar em cena.
Mas um dia Guinness representa um papel
bastante curto, meia dúzia de linhas para dizer. Mete-se-lhe em cabeça que com
aquela curta intervenção pode ter alguma graça. Na estreia, entra em cena, diz
as frases, o público desata a rir, e mais: aplaude-o quando sai de cena.
Reentra triunfante nos bastidores e dá de caras com quem? Com a sua idolatrada
Miss Evans, sentada numa poltrona à espera do momento de entrar em palco, e que
não lhe passa o mínimo cartão.
Na noite seguinte, o mesmo. Salvo que os risos
não vieram e menos ainda os aplausos à saída de cena. Nos bastidores dá de
caras com a mesma Miss Evans, que desvia o olhar quando ele aparece. Na outra
noite o mesmo, nem um riso, nem uma palma. Reentra em cena. Dá de caras com a
mesma Miss Evans. Qu desta vez lhe diz:
- Você perdeu os risos.
Tremiam-lhe as pernas. Balbuciou:
- O que é que não funciona?
Miss Evans concede-lhe uma resposta:
- Você força demasiado. Você nem sabe como
é que conseguiu arrancar ao público aqueles risos e aquelas palmas da primeira
vez. Mas a solução está em si e um dia o efeito vai funcionar. Seja natural e
diga as frases como elas lhe ocorrerem. Esqueça os truques. E quando o efeito
funcionar por si, tome nota do que fez e do que não fez. As coisas têm que vir
de dentro - Alec desfez-se em agradecimentos, cumprimentou, e foi à vida. Mas
Miss Evans chamou-o: - Será preciso uma semana para o efeito resultar como da
primeira vez. E quando você conseguir o tempo e o tom certos nunca mais os
perderá.
E tinha razão. Uma semana depois o público
voltava a rir e Alec sentia-se de novo feliz da vida.
E em 1938 Edith Evans foi vê-lo no Hamlet. Não se fez notada mas falou com
Gielgud: apreciava a qualidade de Alec em não tentar fazer o que sabia estar
para além das suas possibilidades artísticas.
Alec Guinness reconhecia em Hamlet o tipo
de homem consciente dos seus limites humanos e capaz de aperceber os dois lados
de um problema, torturado pela aguda consciência da realidade e pelo dever.
“Os actores de vocação que só trabalham em
teatro no geral desprezam os que também fazem cinema. Até ao dia em que sejam
convidados para fazer cinema e descubram que o dinheiro pode proporcionar
tantas satisfações pessoais como a integridade artística.”
Alec Guinness admirou muitos actores seus
colegas, naturalmente, mas mais profunda e sentidamente três. Pierre Fresnay,
Charles Laughton e Cyril Cusack. Fresnay porque quando não era obrigado a
trabalhar em comédias de boulevard era
o comediante mais austero, sóbrio e intelectualmente rico que se possa
imaginar. Laughton era um génio (arrasado pela crítica inglesa desde que
começara a fazer filmes em Hollywood), o tal tipo de génio que podia ir mal mas
nunca deixava ninguém indiferente. Cusack era daqueles que, estivesse em que
sítio estivesse do palco, parecia estar sempre no centro da cena.
Sonhos? Pesadelos? Sim. Não. Quer dizer, Guinness nunca teve pesadelos relacionados com o trabalho no cinema. No teatro é outra conversa. Sonhava que entrava em cena sem saber uma linha de texto, o que me parece ser comum a quem trabalha no palco, sem rede. O que não é comum é ele não saber o que dizer e querer compensar alegremente o público com umas danças ridículas, enquanto se apercebia que tinha a braguilha aberta.
Outro pesadelo recorrente era enganar-se no
teatro onde devia comparecer e entrar em cena para grande estupefacção dos
outros colegas, a perguntarem-lhe o que estava ele ali a fazer.
Quando chegou a Havana para a rodagem de O Nosso Agente em Havana Fidel Castro
tinha três semanas de poder e a cidade estava num caos. Não se via um turista.
Viam-se camiões apinhados de camponeses para serem interrogados pelos
revolucionários.
À porta do hotel encontrou Kenneth Tynan, o
famoso crítico inglês. Tinha dois bilhetes para um espectáculo dessa noite.
- Você quer ir?
- Mas para ver o quê?
- Vão fuzilar dois jovens de dezasseis
anos, um rapaz e uma rapariga. Pensei que você gostasse de ver. Quando se é
actor deve ver-se tudo, não é?
Conheceu Hemingway. Que achou simpático –
às vezes. Que o convidou e à mulher (mais Noël Coward e o realizador Carol
Reed) para jantar na Finca Vigia.
A certa altura do jantar pareceu-lhe que
Hemingway já estava mais para lá do que para cá, e quando se levantaram da
mesa, Hemingway chamou Guinness de parte e foram os dois para o gabinete de
trabalho.
- Não aguento nem mais um minuto a
tagarelice de Noël Coward – disse Hemingway. – A quem é que interessam as
histórias de velhas actrizes inglesas? A mim não. E se ele agita no ar mais uma
vez aquele dedo estúpido estou capaz de lhe bater.
Apontou para os troféus de caça, as
cabeças de animais penduradas pelas paredes.
- Criaturas soberbas. Amamos o que matamos.
Por isso nunca seria capaz de matar Noël Coward. Acha que estou bêbedo?
- Um
pouco.
Hemingway pôs-se a rir.
No último dia de filmagens a equipa jantava
um tanto à pressa quando um homem de barbas e cabelos compridos apareceu na
tasquinha e anunciou que Fidel estava na Plaza Mayor. Toda a gente se
precipitou para a Plaza Mayor, mas Alec ficou a acabar de beber o café. Estava
nisso quando entrou um ajudante de campo de Castro a apontar-lhe o dedo e a
dizer que Fidel o esperava. Decide que lhe apetece outro café, manda-o vir, começa
a beber e o homem, em tom que Guinness classifica de severo, diz-lhe que Fidel
está à espera.
Levam-no à presença do grande chefe
revolucionário. Guinness não se lembra do que conversaram, só sabe que foi uma
conversa breve e que Castro lhe perguntou:
- Porque é que não fala comigo em espanhol?
- Porque o seu inglês é bem melhor do que o
meu pobre espanhol.
É geralmente conhecido que quem governou o
Haiti entre 1957 e 1971 foi o sanguinário ditador François Duvalier,
popularmente chamado de Papá Doc, e impondo o seu poder com o beneplácito dos
EUA, claro, e com o recurso a uma guarda pessoal extremamente violenta, os tonton macoute.
Duvalier também
cultivava o vudu e a magia negra (não
sei se as duas designações não serão sinónimos), mais ou menos a religião
oficial do regime.
Ora Graham Greene escreveu um romance
ambientado no Haiti de Duvalier, com o título The Comedians e na ideia de denunciar ao mundo as atrocidades do
regime, e Peter Glenville encarregou-se da passagem do romance ao cinema,
recorrendo a um elenco de estrelas super da época, Elisabeth Taylor, Richard
Burton, Peter Ustinov e, claro, Alec Guinness.
Obviamente que as filmagens de exteriores
não puderam ser feitas in loco, no
Haiti, e a equipa deslocou-se para um pequeno país africano, o Dahomey.
Correu então o boato de que o Papá Duvalier,
muito ofendido pela imagem que no romance Graham Green dera do Haiti, enviara
secretamente para o Dahomey um feiticeiro de vudu para prejudicar as filmagens.
Boato ou verdade, o facto é que logo no
primeiro dia de rodagem um elemento da equipa morreu afogado – segundo descrição
de Guinness, afogado em trinta centímetros de água e provavelmente na sequência
de um ataque cardíaco. Depois disso houve outros elementos da equipa a
queixarem-se de severas dificuldades respiratórias, problemas agudos de pele e
depressão, e tendo alguns deles sido evacuados para Inglaterra.
“O importante é estar pronto” – conselho de
um adas celebridades do velho teatro inglês aos mais jovens que queriam ser
actores.
Com os honorários da primeira semana de representações
da peça de T.S.Eliot, The Cocktail Party,
Alec Guinness comprou um belo relógio com banho de ouro que levava todas as
noites para cena e em que gravara justamente a máxima “o importante é estar
pronto”.
“Não que me tenha sentido verdadeiramente pronto
para o que quer que fosse, mas tinha a confusa impressão de ter chegado a
alguma parte, sabe Deus por que caminhos, e vindo sabe Deus de onde.”
Toda a vida Guinness procurou averiguar
quem era o pai e nunca o conseguiu. Era no quadro dessa obsessão que gostava de
alguns versos de Eliot.
No meu
princípio já está o meu fim.
Ou:
Nunca
cessaremos de procurar, e o objectivo da nossa procura será chegar ao ponto de
onde partimos e tomar conhecimento dele pela primeira vez.
Uma leitura fabulosa! Sempre.
ResponderEliminarPara quando crónicas-livros de tudo isto?
Uma espécie de "livro de criancinhas para adultos"!!! Agenda do (L)ar.
Abç e um ano 2017 profícuo e (des)pretencioso para outros vôos.
Mais uma Segunda-feira que passa e, perto da hora do almoço, naturalmente lembrei-me do saudoso "Questões de Moral" e vim aqui espreitar.
ResponderEliminarComo sempre, muito obrigado...
E aproveito para formular votos de um excelente ano de 2 017!
A gente vem matar saudades, da moral (da não-vigente que essa é de cão), daquela que nos fazia rir ou choramingar um pouco. Mas aprendíamos, sempre. Dialogando a música, o saber, as palavras. Aqui, pronto, nos encontramos!
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